Há dias, a propósito do curso que estou a orientar para preparar os candidatos ao ingresso na carreira diplomática, alguém ficou surpreendido quando revelei que são aceites a concurso os titulares de qualquer cursos universitário. Questão é que as pessoas sejam capazes de ultrapassar as várias provas, desde um teste de cultura geral a exames exigentes de português e inglês, seguidos de provas sobre História Diplomática, Direito Internacional e Economia Política, com as questões europeias a assumirem natural destaque. O meu interlocutor ficou mesmo surpreendido quando lhe disse, não sem um certo gozo por esse ecletismo, que há hoje na carreira pelo menos um arquiteto e um médico. "Um médico?" e abriu a boca de espanto!
Foi a propósito disso que me veio à memória uma história divertida, passada algures no mundo, há já muitos anos, com um diplomata cuja nacionalidade não quero revelar e que, não sendo ele próprio médico, nem sequer sendo um evidente hipocondríaco, tinha sobre as questões de saúde algumas teorias que se situavam um pouco à margem da medicina convencional, e desde já aviso que isto é um "understatement". Para além de afirmar, com grande convicção, que o champanhe, "um bom champanhe", tinha efeitos muito positivos na cura do cancro, debitava sempre teorias muito pouco usuais, muito pessoais, sobre o efeito de certos produtos em certas doenças.
Era um homem só, solteiro, à época bem mais velho do que nós (já morreu há muito), uma pessoa com uma cordialidade educada que atenuava alguma distância que o seu modo de estar algo formal criava nas pessoas que com ele conviviam. Ouviamo-lo com delicada atenção e só aqui ou ali, quando a extrema bizarria das teorias nos fazia passar do sério, é que deixávamos escapar um comentário menos concordante. Um dia, porém, foi um pouco longe demais.
Em casa desse diplomata, um grupo estava a bebericar uma taça de champanhe - sempre o champanhe!, para ele a mezinha com alargadas virtualidades medicinais - quando alguém que estava presente referiu que estava um pouco constipado, fruto do clima desse país longínquo, que andava um tanto instável.
Nesse instante, o nosso homem, com um ar seguro, saiu-se com esta frase:
- Isso é um problema de intestinos! O champanhe ajuda muito a acabar com as constipações.
Lá vinha o champanhe, outra vez! Todos nós, seus convidados, olhámo-lo, surpreendidos, em particular um médico meu amigo, que ali estava pela primeira vez e que esboçou um pequeno comentário distanciador da estranha interpretação da sintomatologia da constipação que acabara de ouvir. Mas o homem não se desarmou.
- Ah! O meu caro amigo é médico! Desculpe, esqueci-me disso! É portanto um adepto das teorias da medicina moderna. Está no seu papel, é evidente! O que eu disse tem a ver com outras áreas da ciência que a sua medicina não acolhe, porque não dão jeito, não fazem o jogo dos laboratórios que nos encharcam de medicamentos e, claro!, que têm de fazer o seu negócio. Percebo bem que não possa sair dessa visão convencional da medicina...
Disse isso com um ar condescendente. E eu olhei para o meu amigo, temeroso de que se não contivesse perante o comentário, que tinha algo de provocatório. Mas ele manteve-se educadamente calmo. A brincar, a brincar, o jantar ainda não tinha sido servido...
O diplomata, "médico" por convicção, dispôs-se a dar uma explicação mais detalhada da sua teoria e, voltando-se de novo para o verdadeiro médico presente, deixou cair uma interrogação críptica:
- O meu amigo não subscreve, estou certo, o "princípio do alambique", ligado às constipações, pois não?
O médico "a sério" fez uma cara de surpresa. O "princípio do alambique"? Terá mesmo, por um instante, inquirido a si mesmo se lhe não estava a falhar alguma tese fundamental da medicina. E, perplexo ao limite, acabou por confessar que não, que não conhecia o "princípio do alambique".
Foi o que o nosso diplomata quis ouvir. Ganho já o terreno, recolocou-se no centro diretor da conversa e, com assumida generosidade, deu-nos a conhecer a "verdade":
- Ora bem! Como os meus amigos seguramente sabem, dentro de nós persiste, fruto das deficiências de "limpeza" do nosso sistema digestivo, uma certa percentagem de resíduos - as senhoras presentes que me desculpem o termo, mas trata-se de "excrementos" - que se vão acumulando ao longo de meses nos intestinos. Essa massa, se não for expelida a tempo, chega a um ponto em que começa a fermentar e, ao fazê-lo, decanta uns eflúvios. Esses gazes, que a fermentação tornou mais quentes do que o resto do corpo, começam a fazer um percurso ascendente através dos tecidos. Como todos sabem da escola, "o ar quente sobe". À passagem pelos brônquios e pela garganta, por exemplo, provocam inflamações - daí a tosse e as dores de garganta. Mas esses eflúvios vão continuar a subir e chegam à cabeça. O contacto com o cérebro é tudo menos pacífico e pode então provocar dores de cabeça e estados febris.
A sala estava em êxtase com a sofisticação desta delirante teoria. O meu amigo médico olhava para o diplomata sem saber bem o que dizer. Recostou-se no sofá, como que exausto com o que acabara de ouvir. Eu fixava-o para tentar que a "tampa" lhe não saltasse... Mas o melhor estava para vir.
- Mas eu ainda não acabei!, ameaçou o prolixo diplomata, enlevado na lógica irrecusável da sua teoria. Ora esse eflúvios, ao chegarem à cabeça, entram precisamente em contacto com uma das poucas partes do nosso corpo que, geralmente não está coberta, não é verdade? E, então, o que é que acontece? É aqui que entra o princípio do alambique. Como esses eflúvios entram em contacto com uma superfície mais fria, têm tendência a condensar, tal como acontece nos alambiques. E, como se sabe, a condensação converte os gases em líquido, o qual, naturalmente, precisa de escoar. E por onde escoa? Pelo nariz, claro! É por essa simples razão que, quando nos constipamos, há secreções líquidas que nos saem pelo nariz. Nunca ouviram recomendar às pessoas constipadas para manterem a cabeça protegida por um chapéu ou por uma boina? É precisamente por isso: quem andar com a cabeça quente, tem menos tendência a ter vontade de assoar-se.
O silêncio que se seguiu a esta laboriosa e completa explicação foi talvez excessivamente pesado. Nenhum de nós ousava arriscar uma palavra, pelo respeito que o homem nos merecia, perante a bizarria da teoria. Eu olhava, em controlado pânico, para o meu amigo médico, que pressentia prestes a explodir, ou de riso ou de raiva. Alguns anos de diplomacia ensinaram-me a dizer coisas um pouco "redondas", para sustentar precisamente este tipo de situações:
- Muito interessante! Mas há certeza de que isso é mesmo assim? Como é que se explicam, por exemplo, as sinusites, que provocam um forte corrimento nasal?
O que eu fui dizer! As sinusites, estava bem de ver, não eram nem mais nem menos do que uma inflamação produzida no caminho ascendente dos eflúvios em direção à cabeça. Tudo estava explicado!
A conversa acabou, para grande alívio dos presentes, com a chamada urgente para a mesa, onde havia o risco de um souflé poder baixar, se perdêssemos mais tempo. Ou ganhássemos, tudo dependente da credulidade de cada um.
Já longe do local do jantar, trocadas umas boas gargalhadas sobre o momento "médico" que o havia antecedido, alguém se lembrou: "pensando melhor, a expressão inglesa "constipation", para significar problemas instestinais, é bem capaz de vir daí..."
(Dedico este texto ao meu querido amigo Manuel Serra, médico e estóico auditor da historieta que aqui lhes contei. Acho que ele vai divertir-se ao relembrá-la.)