(«Não te metas nisso! Cai-te o Carmo e a Trindade em cima!» A conversa foi ontem no largo do Carmo, no fim de um almoço de amigos. Era a reação à minha ideia de escrever um artigo sobre a relação com regimes que estavam muito longe de ser «apresentáveis», em especial em matéria de Direitos humanos e de respeito pelos princípios essenciais do Estado de direito.)
Há dias, num programa de televisão, a propósito do 11 de setembro, decidi interrogar-me sobre um «segredo de Polichinelo» : depois daquilo a que assistimos no Iraque e na Líbia, com setores da comunidade internacional mobilizados no sentido de processos de «regime change», que acabaram por redundar numa disrupção gravíssima da estabilidade regional, com efeitos comprovadamente deletérios sobre a ordem internacional, será legítimo ter como política a reversão automática de ditadores, arriscando cair em situações potencialmente mais graves do que aquelas que pré-existiam?
No caso do Iraque, uma intervenção americana sem a menor legitimidade internacional, com o apoio seguidista de alguns poderes ocidentais (entre os quais o Portugal do dr. Durão Barroso), resultou num novo regime iraquiano que se consagrou desde o início como um «failed state», abrindo caminho para um grave desequilíbro regional, desencadeando uma dinâmica que acabou no Estado Islâmico. Como dizem os empregados de restaurantes: espero que gostem!
No caso da Líbia, a obscena ultrapassagem do mandato negociado no Conselho de Segurança da ONU, que tinha como limite a proteção da Cirenaica, acabou por ser aproveitado para derrubar Kadafi, sossegando pelo caminho a consciência de alguns inimputáveis europeus e, simultaneamente, abrindo espaço aos traficantes da morte no Mediterrâneo. Estão contentes?
(Um parêntesis para lembrar, a quem se tiver esquecido, que Hillary Clinton esteve ao lado de George W. Bush na invasão ilegal do Iraque e teve o essencial das responsabilidades na patética dissolução do Estado líbio. O facto de Clinton ser hoje a «nossa» candidata não deve obnubilar a nossa memória.)
A sociedade internacional não é uma congregação de «anjos». A maioria dos países que têm assento nas Nações Unidas ou são ditaduras ou têm regimes cuja observância das mais transparentes regras democráticas é muito discutível. Se um Estado tivesse a ousadia de só se relacionar com regimes «decentes», acabaria confinado a um quadro de relações externas muito limitado. No caso português, desde logo um país com uma imensa diáspora, é um imperativo óbvio de qualquer governo manter um relacionamento funcional tão bom quanto possível com todos – repito, todos - os Estados dos quais dependa o bem-estar das nossas comunidades e onde, simultaneamente, se possa criar um ambiente positivo para a absorção das nossas exportações, uma atratividade para o nosso turismo e a mobilização de investimento direto externo.
Dir-se-á que, ao participar neste «teatro», estamos a encenar uma peça de algum cinismo, de «realpolitik» e de alguma frieza. É uma pena ter de constatar isto, mas o mundo é assim mesmo. No nosso dia-a-dia como cidadãos, todos temos a experiência de termos de nos relacionar com pessoas de quem não gostamos, por ser essa a exigência da vida coletiva. A vida internacional não é muito diferente.
Portugal, na sua atuação externa como Estado, deve contribuir para a promoção dos valores democráticos, para a valorização dos Direitos humanos, para o respeito pelos princípios do Estado de direito. Deve fazê-lo através da sua contribuição e empenhamento no seio das instituições internacionais dedicadas à promoção desses valores. Mas seria totalmente despropositado e desadequado à sua dimensão como país que isso fosse executado no plano bilateral.
Percebo que possa ser mais cómodo não assumir algumas verdades. Mas nem pelo facto de as não assumirmos elas deixam de o ser.
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")