Aníbal Cavaco Silva sai amanhã da cena política. Em quase metade da minha vida como servidor público tive-o como ministro, primeiro-ministro e presidente da República.
Conheci-o ainda antes, como examinador, na minha prova oral de entrada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1975. Ele era então um jovem professor de economia, regressado de York, onde se tinha doutorado. Foi uma prova exigente, dura, mas correta. O tema - assuntos europeus - estava, à época, muito longe de ser a minha especialidade... Saí-me, creio, assim-assim. Tive a classificação que merecia.
Trocámos impressões sobre esse episódio, quatro anos mais tarde, na Noruega, era ele ministro das Finanças e eu diplomata na nossa embaixada. Notei o prazer que revelava por ter sido membro desse júri de admissão dos novos diplomatas. É, de facto, uma tarefa nobre e interessante. Também eu, anos mais tarde, fiz parte dos membros desse júri, ao lado de outro examinador que se chamava Marcelo Rebelo de Sousa.
Se, como ministro, Cavaco mantinha uma certa reserva, que sempre me pareceu fruto de alguma timidez e aversão a terrenos onde se não sentisse seguro, como primeiro-ministro fiquei com a sensação de que estimulou (ou aceitou, com agrado - a doutrina divide-se) a criação, à sua volta, de uma redoma de proteção, com uma hiper-segurança e uma corte reverente que o isolava. Creio que se sentia bem confortável assim, distante, parcimonioso na palavra, frio a um ponto de ser quase desagradável. É "um estilo", dizem alguns. Talvez, mas os estilos sujeitam-se a ser qualificados por quem se confronta com eles.
Por coincidência, fui o primeiro embaixador português a ser recebido por Cavaco Silva, enquanto presidente. Notei-o nesse dia mais solto, como se o regresso à política, noutro patamar, depois de uma década de travessia do deserto, lhe tivesse feito bem. Contudo, essa impressão não se confirmaria nos anos seguintes, onde o fui sentindo progressivamente crispado, como se o atravessasse uma desconfiança permanente, o receio de um passo em falso, um cuidado extremo em funcionar "by the book".
Na última vez que nos cruzámos, em 2013, estávamos ambos de fraque, nos dourados de Queluz. Eu, já reformado da função pública portuguesa, representava uma entidade internacional, o Conselho da Europa, na cerimónia anual de cumprimentos ao chefe do Estado pelo corpo diplomático estrangeiros acreditado em Lisboa. Era então diretor executivo do Centro Norte-Sul, curiosamente uma organização a que Cavaco Silva dedicou sempre grande interesse. Não tive tempo para lhe lembrar que, em 1989, fora eu, enquanto diplomata, quem lhe escrevera o discurso que fez na inauguração do Centro.
Nunca mais encontrei pessoalmente Aníbal Cavaco Silva. Neste que é o último dia da sua função presidencial, acho que o mínimo de elegância aconselha a não falar demasiado do lado político de Cavaco Silva, particularmente por parte de quem, desde o primeiro dia que com ele se encontrou, nunca teve um mínimo de sintonia com a sua forma de estar na política e no serviço público. Não duvido, longe disso, que Cavaco, como ontem disse, tenha sempre agido na convição de que o fazia "de acordo com o superior interesse nacional". Porém, se um político a quem o país deu quatro maiorias absolutas acaba com a popularidade mais baixa do que qualquer outro presidente teve no final do seu mandato, das duas uma: ou é ele que está enganado ou foi o eleitorado que se equivocou. A História irá escolher.