Ontem, falei aqui de um juramento de bandeira ocorrido nas vésperas do 25 de abril, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Hoje, conto algumas coisas aí passadas imediatamente após o golpe de Estado.
Convém dizer que, contrariamente ao que tudo faria prever, o ambiente de harmonia política entre alguns oficiais milicianos, entre os quais eu me incluía, e o novo comando da EPAM não durou muito tempo. Por razões políticas e motivos militares.
As razões de natureza política prendem-se com as dúvidas que, desde a primeira hora, o texto do "programa" do MFA suscitou em alguns de nós. Em causa estavam as equívocas orientações sobre a política colonial e o estranho "wording" do texto sobre o associativismo político permitido. À época, desconhecíamos, por completo, que essa ambiguidade fora produto do compromisso, logo no "posto de comando" da Pontinha, entre a vontade do MFA e as posições de Spínola e da ala mais conservadora da recém-indigitada Junta de Salvação Naciinal.
Logo no dia 26 de abril, numa reunião ao final da tarde com o novo comando e os oficiais do quadro, tive o ensejo de suscitar, em nome de alguns colegas milicianos (outros, talvez a maioria, não colocavam grandes objeções ao curso das coisas), as nossas dúvidas e a leitura de que se tratava de um programa inaceitavelmente "recuado". Que o era veio a ser confirmado pelos factos: o processo descolonizador aceleraria quase de seguida e a realidade das ruas veio dar aos partidos a força e a dignidade que o "programa do MFA" ainda hesitava em conferir-lhes.
Algo se agravaria, contudo, algumas semanas depois. A recusa de dois milicianos de integrarem uma força militar que se iria opor ao movimento de greve nos CTT levou à prisão desses colegas, originando mesmo uma manifestação pelas ruas de Lisboa, sob o lema "Anjos, Marvão, libertação", que foi realizada não obstante a sua proibição e onde fiz questão de participar. Na nossa unidade, de onde eles eram originários, o ambiente de revolta era grande e muitos de nós não deixámos de o potenciar.
Por esses dias, ocorreria um juramento de bandeira, o primeiro após o 25 de abril. Embora a "Ação Psicológica" tivesse sido abolida (o que me deixava com muito pouco para fazer), a tarefa de orador coube-me de novo mim, muito embora a ninguém tivesse passado já pela cabeça "visar" superiormente o texto que eu ia escrever e ler. O que foi pena: o meu discurso acabou por ser de uma inaudita violência, contestando orientações e práticas do ainda jovem MFA. Lembro-me de nele ter perguntado, ironicamente, coisas tão insensatas como se, às forças armadas, passaria a caber o papel de se substituir às estruturas representativas da ditadura, na gestão violenta dos conflitos laborais. E dei também fortes "bicadas" no que considerei ser a "falta de vontade política" de fazer avançar o processo de descolonização. No geral, o texto era de uma inaceitável pesporrência. O meu radicalismo de então vinha ao de cima...
Não seria apenas o comandante da unidade a ficar desagradado comigo - o coronel Marcelino Marques, um homem excelente, a quem nunca cheguei a pedir a devida desculpa por toda aquela minha infantilidade. Dias depois, eu seria chamado à direção do Serviço de Administração Militar, bem como ao Estado Maior do Exército, onde fui objeto de duas repreensões orais sucessivas. A circunstância do "Diário de Notícias" ter publicado uma reportagem sobre o assunto e do "República" ter respigado desse texto um extrato que considerou uma aberta defesa da repressão (eu próprio fui ao jornal falar com o autor do texto, Mário Mesquita, para esclarecer o equívoco), num tempo complexo e já tenso como o que então se vivia, criou à minha volta um ambiente crescentemente desagradável. A situação agravou-se ainda mais em meu desfavor quando contestei abertamente, com outros colegas, uma punição militar decidida pela hierarquia da unidade a um soldado-cadete, já não me recordo porquê. Fui então convocado pelo comando da unidade e foi-me feito um ultimato: ou eu me comprometia a entrar "na linha" (no que subsistiam poucas esperanças) ou saía da unidade pelo "meu pé". Se continuasse com a atitude que vinha a ter, seria expulso. Optei pela segunda hipótese e foi assim que vim a ser colocado na "comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP", no início de junho de 1974. Fiquei colocado, por uns dias, no estabelecimento prisional de Caxias.
Desde então, e até passar à disponibilidade, em Agosto de 1975, ainda viria a ser assessor da Junta de Salvação Nacional (até à extinção desta, em fins de setembro de 1974), a integrar a 2ª divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (até à suspensão desta, em fins de abril de 1975) e a ser "fundador" do SDCI (Serviço Diretor e Coordenador da Informação) do Conselho da Revolução (de onde me demiti, em julho de 1975). Pelo meio, fui ainda relator da Comissão de inquérito ao motim dos agentes da PIDE/DGS (agosto/setembro de 1974), efémero integrante da "comissão ad hoc para investigar os acontecimentos de 28 de setembro"(outubro de 1974) e participei em várias Assembleias do MFA. Há um mistério que já desisti de resolver: explicar como me foi possível, ainda dentro desse mesmo período de um ano, fazer exame de uma cadeira universitária que tinha em falta e, após isso, concorrer, estudar e ser aprovado nas exigentes provas de acesso à carreira diplomática. Ah! e manter, em todo esse tempo, um emprego diário de quatro horas presenciais na empresa de publicidade Ciesa-NCK, fazer locução para filmes na "Cinegra", participar de forma razoavelmente ativa no Movimento da Esquerda Socialista (MES), bem como escrever e editar, com um amigo, um livrito chamado "O Caso República", aliás um dos grande insucessos editoriais da época. Quanto temos vinte e tal anos, de facto, tudo é possível.