domingo, janeiro 26, 2014

Trasladação

- Trago-lhe aqui um problema, senhor diretor-geral. Trata-se do pedido da viúva do embaixador que morreu há semanas no seu posto, lá na Ásia. Quer receber 12 mil euros, valor da trasladação do cadáver do marido para cá.

- Mas qual é o problema? O direito ao repatriamento do corpo existe na lei, não é?

- É, mas ela não possui nenhum justificativo.

- Está bem, meu caro, mas temos de ser flexíveis com a pobre senhora. São países complicados para se obterem essas papeladas. E, além disso, não me parece um montante exagerado. Ela que prepare uma declaração de despesa. Eu darei uma palavra ao ministro.

- Bom, mas há um pormenor que entretanto chegou ao meu conhecimento...

- Qual é?

- Soube que embaixador foi incinerado lá no país onde morreu...

História verdadeira, ocorrida no serviço diplomático francês.

sábado, janeiro 25, 2014

Portugal-Brasil


O dia de ontem havia sido longo, entre Paris e Lisboa. Chegado do aeroporto, ao fim do dia, cansado, sentei-me num sofá e liguei a televisão. Pensava ver as notícias e logo fechar o aparelho. Estava "a dar" futebol. A preto-e-branco. Era o Portugal-Brasil de 1966.  

Foi hora e meia de grande prazer. Aquele jogo que eu vira num pequeno écran, em minha casa, em Vila Real, há 48 anos, estava ali, pela primeira vez, à minha disposição, num écran "decente", com a possibilidade de rever com calma, e em "slow motion", os lances mais interessantes ou polémicos. Em fundo, ouviam-se os comentários acertados dos "magriços" José Augusto, José Carlos e Peres, recheados com histórias curiosas de bastidores.

O jogo foi excelente, com Eusébio em grande forma, a marcar aquele que ele consideraria, para sempre, o melhor golo da sua carreira. Simões fez um grande jogo, com um (raro) golo de cabeça. Alexandre Batista, Jaime Graça e José Augusto deram um espetáculo de bom futebol. Vicente marcou um hiper-lesionado Pelé, com maestria e decência, a contrastar com Morais, que visou o génio brasileiro sem dó nem piedade (Pelé vingar-se-ia nos últimos minutos, pespegando uma forte cabeçada ao seu agressor). O grande Hilário pareceu-me algo perdido com a rapidez da ala direita brasileira, não acertando as marcações, tal como Torres, um tanto sem posição, naquele seu jeito desengonçado de jogar "sem bola". Coluna foi decaindo com o tempo, mas foi sempre um pilar de serenidade e com uma excecional medida de passe. O 4-2-4 de Otto Glória era um "harmónio" dito harmonioso, com o ataque a recuar em apoio à defesa, com os laterais a subirem à linha, em reforço do meio campo. Bons tempos em que se atacava com quatro avançados!

José Augusto explicou ontem, finalmente, uma dúvida que eu sempre tive: a razão por que Carvalho fora substituído por José Pereira na baliza da seleção - onde, diga-se, fez um jogo impecável. Ao que explicou, o "lóbi" do Belenenses dentro da equipa técnica tinha obrigado à saída do guardião sportinguista - o qual, como é sabido, não comprometera, na estreia do Mundial. A mesma pressão que, porventura, levou a que Vicente substituísse José Carlos. Este último regressaria à seleção, Carvalho não. Coisas de Belém.

Foi uma grande noite de futebol. 

Das tentações

Frédéric Mitterrand foi um improvável ministro da Cultura de Nicolas Sarkozy. Sobrinho de François Mitterrand, surgiria no governo pela mão de Carla Bruni. No seu currículo figurava um livro algo comprometedor, que remetia para algumas suas práticas libertinas com jovens, nos terrenos do turismo sexual na Tailândia. Seria, contudo, muito injusto medir esse Mitterrand conservador apenas por esses pecadilhos. Trata-se de um homem inteligente, com graça, boa escrita, com obra feita na área cultural e mediática, que não tendo ofuscado minimamente a memória de Malraux, ou mesmo de Lang, acabou por ter uma prestação bem mais "honorable" que outras figuras que a história política francesa quase não notou no mesmo lugar.

Há dias, vi numa livraria parisiense que tinha publicado uma memória desses tempos de governo. Ainda não li o livro todo, mas não deixa de ser curiosa a confissão que nele faz sobre as tentações que teve face ao seu colega de executivo Laurent Wauquiez, a quem revela ter lançado "un regard langoureux" e que define da seguinte e elucidativa forma: "un beau gars dans le genre qu'on regarde dans les vestiaires après un match de foot et à qui on parle de filles en pensant éventuellement à autre chose". Estou curioso em conhecer a reação de Waquiez a esta declaração.

Por aqui se fica a perceber que a tentação, no seio dos Conselhos de ministros, é um tema a explorar. E por cá? Como terá sido, desde sempre?

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Notícias do caos

Foi uma relação de simpatia pouco vulgar aquela que se estabeleceu entre aquele credenciado diplomata português e um seu homólogo soviético, em tempo de Guerra Fria, num contexto internacional particular. A história ficou nos anais diplomáticos portugueses.

O tema da conversa era a França, onde o diplomata português estava colocado.

- É mesmo verdade que, em França, é possível a um cidadão estabelecer-se em qualquer cidade que seja do seu agrado, sem necessitar de autorização oficial?

- Claro que sim! Desde que tenha meios para isso, não há qualquer limitação no que toca ao lugar onde pretende morar.

- E a compra de carro? Falaram-me que não é preciso inscrição para a sua aquisição...

- Quem pretender um carro e tiver dinheiro para o comprar dirige-se a um stand e adquire-o. Pode ficar com ele de imediato.

A conversa prosseguia nestes termos, com questões sobre a liberdade de escolha dos cursos ou outras que acabavam por espelhar o contraste entre o modelo soviético e o quadro de liberdade das sociedades de mercado. A certo passo, confirmadas que tinham sido pelo colega português a liberalidade de várias dessas práticas de vida no Ocidente, o interlocutor soviético exclamou:

- Então não é só propaganda?! É mesmo o caos...

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Luis Gaspar da Silva

Foto de Alexandre Almeida
 
Foi uma tarde de verão de 1975, no gabinete do Nuno Brederode Santos, então diretor do gabinete de Estudos do MNE. Eu ainda não entrara na carreira, mas estava admitido, depois do concurso feito. Andava já pelos corredores da casa, pela mão de António Franco. Estávamos uns quantos à conversa. Entrou na sala Luís Gaspar da Silva, diplomata, socialista, grande, com um imenso vozeirão.

(O 4° governo provisório, que o PS e o PPD tinham abandonado, estava no seu estertor. Vasco Gonçalves fazia convites para o 5° governo, falhada que fora a hipótese do chamado "governo Fabião", uma construção melo-antunista que nunca chegaria a ver a luz do dia, por oposição da "esquerda militar" (leia-se, os oficiais próximos do PCP). Os socialistas estavam furiosos com o "companheiro Vasco", que, não sem alguma razão, consideravam um dos principais culpados da radicalização que o país atravessava. Os militares que eram considerados como próximos dos socialistas, o "grupo dos nove", tinham acabado de tornar público um "documento" que consagrava uma importante rutura dentro do Movimento das Forças Armadas. Os dias iam complicados, nesse "Verão quente".)

Gaspar olhou os circunstantes e, não me conhecendo, disse alto, apontando-me: "este tipo é de confiança?" Os sorrisos ou alguma palavra do Nuno Brederode ou do António Franco tê-lo-ão sossegado. (Na realidade, eu não era totalmente "de confiança". Não sendo um "gonçalvista", também não me revia então na linha dos "nove", mas os meus amigos sabiam-me discreto). Contou que um outro diplomata, então diretor-geral, Magalhães Cruz, tido como simpatizante de esquerda, havia recusado o posto de MNE. Julgo que era essa a aposta dos socialistas: nenhum diplomata aceitar ser ministro nas Necessidades, num governo Vasco Gonçalves. Isso iria acontecer. O lugar acabou por ser ocupado por Mário Ruivo. E, curiosamente, eu iria ser indicado para o seu gabinete, só não tendo tomado posse porque, breves semanas depois, o 5º governo "caiu".

Foi esse o dia em que conheci Luís Gaspar da Silva, que me disseram que morreu hoje.

Nunca fui seu íntimo, mas mantinha com Gaspar - era assim que a casa o conhecia - uma relação muito cordial, com ele a insistir que nos tratássemos por tu e eu sempre a recusar deixar de chamar-lhe "senhor embaixador". Fomo-nos encontrando pelas várias cidades onde a sua carreira diplomática e política (foi secretário de Estado da Cooperação num governo socialista) o levou.

Dele já contei duas histórias neste blogue. Que hoje deixam de ser anónimas.

A primeira é a da sua fantástica apresentação de credenciais como embaixador no Nepal, por ele próprio relatada numa divertida noite, em minha casa, em Luanda. Pode ser lida aqui.

A segunda historieta é também um "must" das Necessidades. Nela contei o resultado de um dos famosos amplexos que Gaspar dava aos amigos, em gestos de afetividade física que ficaram na memória da casa.

Conta-se um outro episódio no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Gaspar e Lara tinham convivido, nos tempos da universidade, em Coimbra. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo. Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar um amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo  o seu antigo colega da "Via Latina", a revista coimbrã onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.

Gaspar da Silva convidou-me um dia para ser seu nº 2 em Paris, lugar que, por razões que não vêm para o caso, não pude aceitar. E seria aqui em Paris, onde casualmente estou hoje e ele foi embaixador durante vários anos, precisamente na mesma sala onde agora escrevo esta memória, ao correr da tecla, que dele guardo a última imagem, em abril de 1988, na noite de uma eleição presidencial francesa. Estava toda a gente à volta da televisão. Vicente Jorge Silva estava na sala, de visita. Homem de certezas, Gaspar adiantava-nos percentagens "seguras", de fonte "limpa", credibilizando-as com a frase: "deu-mas o meu 'américas' ", aparentemente um contacto fiel que tinha na embaixada americana em Paris. Não faço ideia se acertou.

Por coincidência, e ao que me recordo, poderá ter sido essa a última vez que o vi. Há mais de um quarto de século. Trocámos cartas anos mais tarde, mas nunca mais nos encontrámos. Deixo aqui os meus sinceros sentimentos à sua família.

Gastronomia

Hoje, em Paris, começo o dia em estágio para uma laboriosa "session de travail" da "Académie des Psychologues du Goût", que se desenrola por cerca de três horas. Pela minha experiência destes pesados exercícios, dificilmente terei disponibilidade para escrever mais um post. Assim, até amanhã.

Em tempo: afinal, a morte do meu colega Luís Gaspar da Silva obrigou-me a escrever outro post, durante o dia de hoje.

Desde Rusia

No início dos anos 40 do século passado, o jovem oficial do Exército português António Sebastião Ribeiro de Spínola integrou, como observador, a "Divisão Azul" das forças armadas alemãs durante o ataque à Rússia.

Não sei qual era o grau de convívio de Spínola com os espanhóis que integravam essa "Divisão Azul", chefiado por Muñoz Grandes, que entre eles cantavam a canção "Desde Rusia", que tinha a seguinte letra:

En las estepas de Rusia,
España luta con ardor,
unida con Alemania
por una España mejor.

Y quando a España volvamos
de nuevo queremos luchar,
y al inglés echaremos
del Peñon de Gibraltar.

Nuestro grito de victoria
en el mundo entero lo oirán,
cuando recuperemos
todo Marruecos y Orán.

Solo esperamos la orden
que nos dé nuestro General,
para borrar la frontera
de España con Portugal

y cuando eso consigamos
alegres podremos estar,
porque habremos logrado
hacer una España imperial.

Descobri esta canção, bem simbólica de um outro tempo, num livro que hoje encontrei em Paris. Pergunto-me: Spínola conhecê-la-ia?

quarta-feira, janeiro 22, 2014

A Confiança no Mundo

No próximo dia 29 de janeiro, na Universidade de Trás-os-Montes, em Vila Real, vou apresentar o livro "A Confiança no Mundo - a Tortura em Democracia", de José Sócrates.

Trata-se de uma obra que aborda um tema muito controverso, que se tornou mais atual após o 11 de setembro.

Em tempo: a caixa de comentários está aberta...

Um diplomata na Revolução

Na passada sexta-feira, à volta de um café nos couros queirosianos do Grémio Literário, um capitão de abril lembrava-me que fora daquele mesmo local que, em 25 de abril de 1974, um diplomata português, então no exercício de funções políticas, organizara a mediação entre Marcelo Caetano e António de Spínola, que acabou com a rendição do chefe do governo, aquando da célebre deslocação de Spínola ao Carmo. 

O diplomata chamava-se Pedro Pinto e era, à altura, subsecretário de Estado da Informação. Morreu há semanas. Nesse dia, ao aperceber-se pela rádio do impasse que estava criado no largo do Carmo, com o quartel da GNR rodeado pelas tropas de Salgueiro Maia, que se confrontava com a recusa de Caetano de se render às forças do Movimento das Forças Armadas, Pedro Pinto tomou a iniciativa de enviar ao Carmo o diretor-geral da Informação, Pedro Feytor Pinto, acompanhado de Nuno Távora. Feytor Pinto, homem muito próximo de Caetano, constatou então a disponibilidade deste último de se render, evitando o assalto ao quartel pelas forças do MFA que estava iminente, desde que o poder "não caísse na rua". Caetano aceitou a hipótese de transmitir o poder a António de Spínola que, para tal, foi mandatado pelo Movimento, depois de uma chamada telefónica para o "posto de comando" do MFA, na Pontinha. 

A iniciativa de Pedro Pinto terá tido duas consequências importantes. Por um lado, terá evitado um número significativo de vítimas, que o assalto ao quartel e a reação das respetivas tropas iriam seguramente provocar, não apenas entre militares mas igualmente entre os milhares de civis que enchiam o Carmo, bem como nas famílias dos GNR, que com eles viviam no quartel. A decisão de ataque ao quartel fora já tomada, tendo Salgueiro Maia recebido ordem escrita de Otelo Saraiva de Carvalho para assim proceder, depois das muitas horas de impasse que se viveram.

Mas houve uma consequência política muito importante que a espetacular deslocação de Spínola ao Carmo acabou por ter. O general, que estava a par do Movimento mas que estava longe de ser o seu líder ou sequer a personalidade que o MFA pretendia ver à frente da nova Junta de Salvação Nacional, terá ganho, pelo protagonismo criado nesse momento, uma vantagem imediata na luta pelo poder. Esta sua momentânea proeminência desequilibrou, em definitivo, a relação de forças em seu favor, potenciando a retração de Costa Gomes para assumir a liderança da Junta. A História seria seguramente muito diferente se tivesse sido este último e não Spínola a titular a Revolução.

Se acaso Caetano se tivesse rendido a Salgueiro Maia, se tivesse sido preso e posteriormente julgado com outros responsáveis pelos crimes regime ditatorial, talvez tivesse sido possível fazer o processo do "Estado Novo", talvez os agentes da PIDE e os magistrados cúmplices dos Tribunais Plenários tivessem sido condenados. Nada assim aconteceu. Sem consultar o MFA, contrariando os termos do "memorando" assinado na Pontinha na noite de 25 de abril, a Junta decidiu, poucos dias depois, exilar Caetano, Tomaz e outras figuras para o Brasil. Se os mandantes tinham sido postos a salvo, que legitimidade tinha a condenação dos subordinados? 

Hoje, dia em que falo em Paris sobre a Revolução de abril, apeteceu-me lembrar este episódio e o papel histórico que um diplomata português acabou por nela desempenhar.

terça-feira, janeiro 21, 2014

O novo oásis

Num dia de Julho de 2011, ao tempo em que era embaixador em Paris, fui a uma televisão debater com um representante de uma agência de “rating” a forte degradação da nota portuguesa, pouco depois da assinatura do Memorando com a Troika. Em irónica esquizofrenia, puniam-se as novas medidas de ajustamento com que Portugal se acabara de comprometer dado o seu impacto recessivo. À saída, o meu interlocutor, disse-me: “Portugal não é o problema. A questão para o euro está na Espanha e na Itália. No dia em que a Europa conseguir convencer os mercados de que suportará aqueles países, a vossa vida tornar-se-á mais fácil”.

Tinha razão. A partir do momento em que a acção persistente do BCE convenceu os mercados da determinação europeia em sustentar a moeda única, quando os fantasmas sobre as economias espanhola e italiana começaram a dissipar-se, as pressões dos mercados atenuaram-se. Isso reflectiu-se sobre as taxas de juro portuguesas, ajudadas pelo facto da Troika premiar, em nome dos credores, o zelo do governo nas medidas para o ajustamento. Taxas que, contudo, continuam incomportáveis, afectando já bastante a taxa média da nossa dívida, o que suscita, aliás, questões de fundo a que todos fogem.

Gostava de voltar ao Memorando, que hoje já ninguém lê, e aos seus objectivos: “Reduzir o défice das Administrações públicas para (…) 5.524 milhões de euros (3% do PIB) em 2013, através de medidas estruturais de elevada qualidade, minimizando o impacto da consolidação orçamental nos grupos vulneráveis. Baixar o rácio da dívida sobre o PIB a partir de 2013”. Onde tudo isso vai!

Como dizia o outro, é fazer as contas. O défice não será de 3%, mas cerca de 5,5%, e, em lugar dos 5.220 milhões de euros previstos, os números mostram que estamos acima de 9.000 milhões “Medidas permanentes de alta qualidade” pouco se vêem, com meros cortes ad hoc a serem os responsáveis essenciais pelo conseguido. Quanto à minimização do “impacto da consolidação orçamental nos grupos vulneráveis”, estamos conversados. O rácio da dívida sobre o PIB não só não declinou a partir de 2013 como aumentou nesse mesmo ano. Não acertaram uma!

Abstenho-me de elaborar sobre um desemprego que se mantém a níveis altíssimos, não obstante uma emigração que está já nas médias mais altas do século passado (com um inédito “brain drain”), números impressionantes de falências, um forte empobrecimento da classe média e camadas mais indefesas, esmagadas por aumentos nos transportes, na energia, na saúde, etc. Esqueçamo-nos também de um país dividido como nunca, onde se incita o privado contra o público, os novos contra a “peste grisalha”, os activos contra os pensionistas.

A Troika vai sair, nós ficaremos por cá, na convalescença do “sucesso”, a caminho do novo oásis. As eleições são dias depois. Aposto em como vai haver dinheiro para os foguetes. 


Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, janeiro 20, 2014

A cultura da direita


Não faz parte da prática habitual deste espaço dar destaque a artigos de imprensa ou mesmo a textos publicados noutros blogues. Abro, contudo, e com gosto, uma exceção para dar conta de um interessante trabalho de António Araújo, intitulado "A cultura da direita em Portugal".

Não conheço António Araújo, nem creio ter lido antes nenhum seu trabalho. Mas fiquei impressionado e aprendi imenso com este artigo, que muito me ajudou a "arrumar" ideias e a organizar e moldar algumas perceções a que tinha chegado de forma impressionista.

Alerto já que não se trata de um texto de fácil leitura. É também um trabalho relativamente longo, com alguma densidade conceptual que pode afastar muitos leitores, menos habituados a uma linguagem que releva de alguma prática académica.

O artigo leva-nos pelo mundo da nova direita, explícita ou subliminar, no Portugal depois de abril, com os seus jornais, as suas revistas, os seus livros, os seus lugares, as suas músicas e até os seus blogues. É um trabalho muito completo. Senti, contudo, que nele talvez falte uma referência a um terreno de algum relevo - a nova historiografia, onde um inteligente revisionismo se insinua e tem vindo a progredir, de uma forma a que há que estar atento. Um ponto interessante é o facto do artigo destacar que a cultura de direita conseguiu, nas últimas décadas, uma muito maior qualidade intelectual e um justo reconhecimento, garantindo hoje um lugar no espaço público. Essa é a sua grande diferença face a uma certa escola antiga, tributária da ditadura, marcada por um tropismo "traulitano", por um reacionarismo pouco sofisticado, por uma espécie de nacionalismo primário e de seita, às vezes de um tradicionalismo bafiento. A nova direita portuguesa, mesmo para a esquerda que com ela convive, tem hoje muito mais graça, mais "mundo" e, não raramente, é politicamente inteligente. Porém, salvo algumas exceções, esta nova vaga de pensamento diretista deixa-se ainda frequentemente ficar, no plano estratégico, ao serviço de agendas partidárias de mero pragmatismo, de adubo doutrinário para alguns tropismos patrimonialistas. Mas não deixa de ser estimulante ter esta nova direita como adversário no domínio das ideias, em contraste com o que acontecia com aquela que, durante décadas, foi titulada por "reaças" e "fachos" sem a menor piada. Como no futebol, é muito mais interessante jogar contra equipas que "dão luta". E ganhar, claro.

Leia aqui o artigo.

domingo, janeiro 19, 2014

Jogos belenenses

Faltam cerca de dois anos para Cavaco Silva deixar o lugar ao seu sucessor em Belém. À direita, o debate começou já, em torno dos nomes possíveis. É um processo muito interessante, porque nele se cumulam ambições pessoais, polémica entre perfis e, muito em especial, estratégias partidárias.

Os presidentes moldam o sistema, porque a sua leitura sobre os poderes que a Constituição lhes concede vai variando, com as conjunturas e com as personalidades que titulam o cargo. Os últimos dois anos ensinaram muito ao país sobre o papel de um presidente da República. E, por essa via, ensinaram muito aos partidos, que disso retirarão as devidas conclusões.

No seu programa para reeleição como presidente dos PSD, Pedro Passos Coelho resolveu "lançar o fogo na pradaria", desenhando, com um traço carregado de intenção, o perfil do presidente que não quer vir a apoiar. Ficou óbvio que Marcelo Rebelo de Sousa era o nome visado, como o próprio reconheceu. Estará Marcelo excluído em definitivo? Com o "maverick" professor, Cristo pode sempre voltar à terra.

Na aldeia política da direita portuguesa, a zizania vai começar. O idílio Passos-Barroso pode indicar que o quase ex-presidente da Comissão tem agora uma hipótese forte para regressar à ribalta interna. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, um dos quais não deixará de ser filmado perto do largo da Misericória. "Faites vos jeux, messieurs"!

sábado, janeiro 18, 2014

Abril

Foi há dias. Estávamos a concluir um documento coletivo. Dei-me conta que o texto-base estava escrito segundo o Acordo Ortográfico. Porém, notei que os nomes dos meses se iniciavam com maiúsculas, o que fere as regras do Acordo. Um dos subscritores disse então: "Não me importo de escrever todos os meses com minúscula. Com exceção de Abril".

Ora aí está uma derrogação ao Acordo Ortográfico que aceito de muito bom grado.

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Brasil - Portugal

Não foram poucas as vezes em que, como embaixador português no Brasil, me perguntei a razão pela qual a relação luso-brasileira, para além de todos os discursos políticos, não flui com maior vigor e normalidade, independentemente das conjunturas. Num livro em que juntei, há mais de cinco anos, alguns textos que eram fruto da minha experiência naquele país, alinhei explicações possíveis para as distâncias que subsistem entre nós. Mas não tenho a certeza de ter conseguido descobrir todo o problema.

Lembrei-me disso na manhã de ontem, ao ouvir o chefe de Estado português referir-se, com procurado ênfase, ao Brasil, durante o seu discurso diante do corpo diplomático. Portugal e Brasil são hoje dois países com horizontes estratégicos específicos, operando em tabuleiros próprios, com ambições necessariamente diversas, mas raramente antagónicas. Contudo, não tenho a menor dúvida de que as respetivas agendas internacionais só podem ter vantagem em conjugar-se. Subsiste uma óbvia e natural assimetria no modo como cada um dos países olha o outro, os pontos de conjugação de interesses não são valorizados por ambos da mesma forma. E não vale a pena esconder: à cumplicidade bilateral não são indiferentes fatores políticos e pessoais. Por vezes, como é sabido, estes não coincidem.

É em tempos como estes que a diplomacia tem um papel essencial, na sustentação dos interesses permanentes. Um dia, numa intervenção pública que proferi no Rio de Janeiro, no início das minhas funções no país, afirmei que era chegado o tempo de abandonarmos a retórica nas relações bilaterais e passarmos a preenchê-las com a substância do relacionamento humano, cultural e económico desses novos tempos. No final dessa minha fala, o antigo embaixador brasileiro em Portugal, Alberto Costa e Silva, aproximou-se de mim e disse: "Não despreze a retórica, Francisco. Ela tem sido historicamente essencial ao nosso relacionamento bilateral. Foi ela a "almofada" de afetividade que permitiu sustentar as nossas relações, quando as coisas correram mal". Tomei nota dessa observação e, com os anos, vim a dar plena razão àquele nosso amigo.

É um facto que a diplomacia se apoia muitas vezes na retórica. Frequentemente, para um observador exterior, parece haver um gongorismo excessivo no modo como os diplomatas exibem um otimismo que pode parecer forçado e até artificial, ao abordarem o futuro das relações entre dois países. Ora os diplomatas devem ser os profissionais do otimismo. A eles compete assumir o voluntarismo de "puxar" em público pelo que corre bem e tentar resolver, em privado, o que, eventualmente, pode ir andando mal ou menos bem. É uma tarefa delicada, paciente, muitas vezes difícil e, não raramente, a ter de ser feita a contraciclo dos tempos políticos. E, às vezes, contrariando-os.

Portugal e Brasil dispõem, nos dias que correm, de um quadro mútuo de representação diplomática verdadeiramente excecional. Dois brilhantes diplomatas de ambas as carreiras - o brasileiro Mário Vilalva e o português Francisco Ribeiro Telles - têm vindo a revelar-se atores essenciais, na garantia da sustentação de uma presença diplomática ativa, diversificada e, sobretudo, inteligente. Julgo que, com eles, a diplomacia está a provar que, muitas vezes, nas relações bilaterais, é ela que pode fazer toda a diferença.

quinta-feira, janeiro 16, 2014

Ponto final

Já me tinha acontecido vestir fraque para, em conjunto com outros colegas diplomatas, apresentar cumprimentos de Ano novo ao chefe do Estado do país junto do qual estava acreditado. Mas nunca tinha previsto que isso me viesse a acontecer, como hoje sucedeu, junto do presidente da República do meu próprio país. O facto de ser diretor executivo do Centro Norte-Sul qualifica-me como representante do Conselho da Europa junto do Estado português. Não estive ali como português, mas sim enquanto chefe da representação em Portugal de uma organização internacional. Devo confessar que, pelo ineditismo da situação, achei graça à circunstância e àquele último passeio protocolar pelos espelhos e dourados de Queluz.
 
Salvo para algum casamento mais finaço, a minha labita entrou hoje, como o dono já estava, na merecida reforma. No final deste mês, por exclusiva vontade própria, vou deixar o cargo que tenho vindo a desempenhar, passado que foi um ano do seu exercício. Julgo que não poderia ter terminado essa função com uma nota mais curiosa. A cerimónia desta manhã acaba assim por ser o verdadeiro ponto final na minha ligação à diplomacia. Foram quase quatro décadas, muito interessantes. Mas, aqui entre nós que ninguém nos ouve, já não era sem tempo...

Moura

A fronteira é dos conceitos mais relevantes e interessantes da História. Em Moura, no dia 1 de fevereiro, vamos abordá-la em diversas dimensões.

quarta-feira, janeiro 15, 2014

Prós e Contras

Há uns anos, cruzei-me com Fátima Campos Ferreira num avião. Lamentou então que eu tivesse estado indisponível para aceitar um convite que, meses antes, me havia feito para participar num programa "Prós e Contras". Desconhecia por completo a existência desse convite. Explicou-me que, tendo telefonado para minha casa, a minha mulher lhe havia dito que eu não iria a esse debate. Terá achado que o tema me era inconveniente. Não há nada como ser casado com hábeis (e discretas) gestoras de imagem.

Há dias, estive no "Prós e Contras". O assunto era vasto: 2014. É sempre muito importante o futuro, porque, como alguém dizia, é nele que vamos passar o resto da nossa vida. O debate foi disperso, evoluindo por temáticas que, sendo previsíveis, eram de difícil preparação específica. Acabou por se polarizar, sem surpresas, entre dois dos convidados, que contrastaram posições e argumentos, na defesa tipificada de perspetivas totalmente opostas. Entre os amigos e conhecidos que ouviram as minhas quatro intervenções no programa, o sentimento maioritário foi de que eu falei pouco e que deveria ter sido mais interventivo. Alguns acham que fui pouco assertivo, outros que fui menos "diplomático" e mais "político" do que devia, com o primeiro qualificativo a ser tido por positivo e o segundo a querer ser negativo.

Ontem, num exercício entre o masoquista e o narcísico, revi o programa. No que nele me disse respeito, julgo que disse quase tudo quanto queria dizer. Ou dar-se-á o caso de estar a ser demasiado complacente comigo próprio?

terça-feira, janeiro 14, 2014

Remédio santo!

Era demais! Aquele embaixador português, conhecido notívago, abusava dos telefonemas tardios para os seus colaboradores, que assim viam o seu descanso interrompido, com as famílias já a protestar. Ninguém sabia bem o que fazer. Afrontar o chefe era uma opção arriscada, principalmente no caso dos conselheiros técnicos em serviço na embaixada, cuja renovação da comissão muito poderia depender do seu parecer. 

Um desses diplomatas, casado com uma americana, era a vítima mais regular das chamadas do embaixador. A sua mulher teve então uma ideia. Uma noite  o telefone tocou. A voz do embaixador surgiu do outro lado. O diplomata respondeu com um ar ensonado. E, ao lado, ouviu-se o arfar crescente da sua mulher, repetindo: "yes! Yes! YES!". O embaixador pediu desculpa e desligou. Foi remédio santo!

40 anos de abril

No dia 22 de janeiro, em Paris, vou ter o gosto de fazer uma palestra sobre o 25 de abril e as suas repercussões internacionais.

Espero que este ano de comemorações sobre a Revolução democrática se converta numa festa, que possa ajudar a colorir o cinzento dos dias que passam.

segunda-feira, janeiro 13, 2014

O toque do telefone

A introdução dos meus dados no computador prosseguia à velocidade necessária. Atrás do homem, um telefone tocou. O homem não atendeu. Passaram minutos. O telefone continuou a tocar. Passou um colega e perguntou ao homem a razão por que não atendia o telefone. O homem respondeu: estou a atender este senhor, respondo ao telefone quando terminar. Intervim para felicitar o homem, para dar-lhe razão, perante o colega que não deve ter gostado e algumas outras pessoas do público próximo, que senti divididas. Para mim, as coisas são claras: não se atende um telefone quando se está a atender alguém. É uma falta de atenção. Este episódio ocorreu há minutos.

Recordei-me então de duas cenas. A primeira foi "uma peixeirada", que, há uns anos, fiz ao balcão de banco. Estava a ser atendido por um empregado. Tocou um telefone e o empregado atendeu. Durante algum tempo, dedicou-se a dar informações pelo telefone, deixando-me de lado. Dirigi-me ao balcão ao lado e mandei chamar o gerente. O "meu" empregado continuava ao telefone. Pedi o livro de reclamações. O gerente estava aflito. Interrompeu o telefonema do empregado. Obrigou-o a tratar do meu assunto e a despachar a chamada telefónica. O empregado engrolou uma justificação de que tivera de interromper o meu assunto... porque o telefone tocara. Alto e bom som, deixei claro: "não admito que ninguém atenda um telefone quando está a tratar um assunto comigo. O telefone não pode ter prioridade sobre as pessoas que estão presentes.". Não sei se aprendeu.

Segunda cena. Uma grande figura da nossa diplomacia era conhecida por passar horas ao telefone. Sentávamo-nos em frente a ele no gabinete e éramos sistematicamente interrompidos por uma corte de amigos, conhecidos e personagens correlativos, a quem ele tinha dado o seu número direto ou para quem ele antes pedira um conjunto de chamadas, através da secretária. Esta consultava para tal a conhecida lista de telefones e endereços desse diplomata, manuscrita e há décadas rasurada, conhecida como "o livro de cozinha", com páginas soltas e nomes de mortos, que ele tinha pena de eliminar, o que chegou a originar confusões em fins de ano, porque para um deles chegou a estar preparado um cartão de Boas Festas, lamentavelmente tardias. Uma tarde, eu estava sentado frente a esse meu colega, tentando expor um determinado assunto e obter dele uma reação. A nossa conversa foi interrompida, sem exagero, aí umas seis vezes, por chamadas que chegavam. A certo ponto, "passei-me", levantei-me e fui para o meu gabinete. Telefonei-lhe. Respondeu-me de lá: "Anda aqui à minha sala. Ainda não acabámos a conversa!". Não hesitei: "Não vou. Se estou aí à tua frente, sou interrompido por algum telefonema. Assim, resolvemos isto pelo telefone, com a certeza de eu poder terminar o assunto". E assim fiz. Lembras-te, António?

... e logo se vai ver!

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