«Nada mata mais um escritor do que obrigá-lo a representar um país», disse um dia Julio Cortázar, citado por José Fernandes Fafe nas «Conversas durante anos» (Almedina 2002) que António Silva com ele teve. Não para concordar necessariamente com a asserção, mas para questionar ironicamente essa dicotomia nem sempre fácil de assumir. Na limitada abertura a quadros exteriores à carreira diplomática tradicional, que o poder democrático subsequente à ditadura decidiu levar a cabo a partir de 1974, José Fernandes Fafe, ao lado de Coimbra Martins, Álvaro Guerra e José Cutileiro, figura entre as personalidades oriundas da área cultural que vieram a ser escolhidas.
Ser o nosso novo homem em Havana foi o desafio que Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe lançou, quem sabe se lembrado de uma viagem clandestina que ambos haviam feito à ilha de Fidel, em meados dos anos 60. Fafe partilhava, há muito, uma sedução geracional pela revolta que havia deposto Baptista. Uma simpatia que tinha menos de ideológico – Fafe era um socialista moderado, com um pendor liberal – e bastante mais de romântico. Ele fora «David Alport», o pseudónimo com que assinou, para escapar ao crivo da ditadura portuguesa, aquela que é hoje considerada uma das primeiras biografias de Che Guevara.
O novo embaixador beneficiava da boa vontade política junto do regime cubano, num tempo em que alguns militares e outras figuras da Revolução portuguesa se deliciavam em romagens à terra dos heróis do «Granma». A memória das Necessidades guarda a ideia de que a densidade objetiva das nossas relações com Cuba estava, à época, algo aquém daquilo que uma figura com o prestígio e os excelentes contactos de Fernandes Fafe poderia ter proporcionado
Daí que, para essa memória coletiva da nossa ação externa, o seu posto seguinte, o México, se tenha consagrado como um ponto particularmente alto – eu diria, na perspetiva de um profissional da casa, aquele que o tornou verdadeiramente «one of us». A profunda interação cultural que aí conseguiu levar a cabo, com presença constante na imprensa e nos meios da cultura, viria a ser muito marcante, num país onde a imagem das ditaduras ibéricas permanecia ainda forte, com culturas de exílio a misturarem-se com os novos tempos. Mas seria ainda no México que Fernandes Fafe se iria «libertar» do estigma redutor que, um pouco por todo o mundo, sempre persegue as figuras da cultura convertidas à diplomacia: no forte impulso que deu às relações económicas bilaterais, nomeadamente aquando da sensível questão do abastecimento petrolífero a Portugal, as «esporas» de um embaixador completo viriam a assentar definitivamente a Fernandes Fafe.
Mas a cultura, com naturalidade, regressaria ao seu horizonte. Por um par de anos, o papel de embaixador itinerante para esse domínio caiu-lhe que nem uma luva. Diga-se que, com o brasileiro Celso Cunha e Lindley Cintra, Fernandes Fafe foi então um dos autores de um estudo sobre uma estratégia para a Lingua Portuguesa que ainda hoje ganharia em ser revisitado. Foi, aliás, nessa qualidade que o cruzei pela primeira vez, ao tempo em que eu próprio era diplomata em Angola.
Acabaria por ser também um país de lusófono, Cabo Verde, o seu terceiro posto de destino. Um país onde trabalhou muito e bem, como todos reconhecem. Cultura e economia foram pontos fortes dessa sua ação, marcada também pela dinamização do apoio às várias instituições do país, através das estruturas congéneres portuguesas. O êxito atual de Cabo Verde, o seu papel de «benchmark» para a África, rima muito com essa sua linha de trabalho.
A carreira de Fernandes Fafe viria a reencontrar a América Latina naquele que seria o seu último posto: Buenos Aires. Um desafio aos 63 anos, numa embaixada onde teria, contudo, um mandato curto. Dois anos depois, como mandava a lei, regressava a Lisboa.
José Fernandes Fafe foi um diplomata de abril, uma figura que levou o seu prestígio intelectual para as estruturas da política externa portuguesa. Serviu o país com brilho, empenhamento e qualidade. O seu desaparecimento, aos 90 anos, é um momento triste para a nossa diplomacia.
(Artigo hoje publicado no "Jornal de Letras")