Posso correr o risco de estar a ser injusto, mas tenho a sensação de que Leon Brittan, o antigo comissário europeu que agora faleceu, não tinha um especial apreço por Portugal. Digo-o com a convicção de quem com ele lidou diretamente durante alguns anos, em especial no tempo em que dirigiu a Política Comercial da União Europeia. Nunca o vi demonstrar simpatia pelos interesses específicos do nosso país, num tempo em que o desmantelamento pautal da UE, quer no quadro da Organização Mundial de Comércio quer nos acordos bi-regionais ou com países terceiros, se fez muito à custa dos Estados membros cuja produção tinha um grau de sofisticação tecnológica que ficava aquém da média europeia.
Visitei-o uma primeira vez, logo em fins de 1995, acompanhando Jaime Gama. A corrente claramente não passou entre o então ministro português dos Negócios Estrangeiros e Brittan, que era um poderoso vice-presidente da Comissão, ao tempo sob a frágil liderança de Jacques Santer. Gama expôs-lhe as dificuldades de Portugal, com um tecido industrial em curso de reconversão, em poder praticar cedências no tocante à "oferta" comunitária nas negociações comerciais. Brittan não deu sinais de ter ficado minimamente sensibilizado. Era essa, aliás, a impressão dominante na direção-geral dos Assuntos Europeus onde eu, até então, fora subdiretor-geral.
Brittan tinha um estilo snobe, um sorriso que era um meio esgar e que facilmente podia ser lido como cínico. Sabia-se que fazia o que muito bem lhe apetecia no âmbito da Comissão, e isso mesmo tinha ficado claro para nós durante um anterior encontro com Santer, que manifestamente o não controlava e deixava disso nota. Liberal até à medula, achava que a salvação da indústria e dos serviços da Europa se faria pelos ganhos de mercado exterior dos seus setores mais avançados, com os restantes a terem de suportar o facto de estarem condenados a desaparecer. Quando lhe falávamos das falências que entretanto se sucediam em Portugal, em setores produtivos ainda com uma dimensão apreciável de mão-de-obra e sem esperanças de reconversão por qualificação, percebia-se que isso lhe era praticamente indiferente.
Sir Leon Brittan, que havia sido "knighted" pela soberana britânica antes de ingressar na Comissão Europeia, foi uma figura com certo destaque na política interna britânica, onde havia sido ministro do Interior e teve um importante cargo no "Treasury". Era uma personalidade brilhante, de uma inteligência rápida, embora com uns modos arrogantes e "untuosos" que não éramos os únicos a considerar supinamente irritantes.
Guardo dele ainda duas outras recordações pouco agradáveis.
A primeira, um segundo encontro, no seu gabinete, em Bruxelas, quando manifestamente se mostrou enfadado com algumas outras nossas pretensões, já não recordo em que área. Deu a certo passo um grande suspiro. Irritado, levantei-me e, caminhando para a porta, lancei-lhe: "You look very tired! I'll be back when you'll feel better". Arregalou os olhos, balbuciou umas coisas e eu saí, de cara fechada. Dois dias depois, o seu chefe de gabinete telefonou-me para Lisboa, anunciando umas ligeiras concessões, quase "microscópicas".
A segunda vez foi em Singapura, durante a reunião de lançamento da OMC, em 1996. Pedimos-lhe um encontro, eu e o Fernando Freire de Sousa, secretário de Estado do Ministério da Economia, à margem da reunião preparatória da UE. Foi difícil mobilizá-lo para a ocasião. Transmitimos-lhe a nossa reação negativa face a um inesperado ajuste à lista de "oferta", que excedia o mandato que antes tinhamos acordado em Bruxelas. Eram mais concessões, sempre à nossa custa. Leu o "non-paper" que lhe entregámos, olhou para as "posições pautais" nele inseridas e exclamou: "Oh! Your textiles, again!". Ouviu então uma ou duas coisas de que não gostou. Transmitimos à presidência da UE a nossa posição e o mandato acabou por não "evoluir" muito em nosso desfavor. Mas não por cedência de Brittan, suponho.
Ao longo dos mais de cinco anos em que tive responsabilidades de governo na área dos Assuntos Europeus, Leon Brittan foi talvez o comissário, dentre algumas dezenas com que lidei, com quem senti mais dificuldades de entendimento.
Ao longo dos mais de cinco anos em que tive responsabilidades de governo na área dos Assuntos Europeus, Leon Brittan foi talvez o comissário, dentre algumas dezenas com que lidei, com quem senti mais dificuldades de entendimento.
Um dia contei aqui uma história passada num encontro entre António Guterres e Jacques Chirac. Hoje revelo que o comissário europeu referido nesse episódio era Leon Brittan. Que descanse em paz!