terça-feira, novembro 22, 2016

Maria Eugénia Varela Gomes


Morreu Maria Eugénia Varela Gomes. Fui-lhe apresentado há muito tempo, no início dos anos 70, num almoço em Colares, num restaurante onde aos fins de semana se reunia gente da oposição, a maioria com ligações ao "Partido" (designação que, para os comunistas e "compagnons de route", significava o clandestino e perseguido PCP). Estava acompanhada pelo marido, João Varela Gomes, revolucionário do assalto ao quartel de Beja, saído da prisão meses antes.

É uma mulher-coragem aquela que vai amanhã a sepultar, depois de muitos anos de doença, com a morte do filho Paulo pelo meio, que se somou a uma vida de luta, de perseguições e de prisão, sempre marcada por uma imensa dignidade e verticalidade. Li, ouvi e sei o suficiente sobre Maria Eugénia Varela Gomes para ter por ela uma imensa admiração.

Deixo um abraço sentido ao seu marido, o coronel João Varela Gomes.

(Fica a sua fotografia no arquivo da Pide, retratos que é, em si mesmos, são medalhas para quem os possui)

segunda-feira, novembro 21, 2016

Sarkozy


A derrota de Nicolas Sarkozy, nas eleições primárias da direita francesa, ontem realizadas, terão significado o fim da sua carreira política? A forma como se despediu dos seus adeptos não deixa isso totalmente claro.

No fundo, isso não tem a mais pequena importância: em 6 de maio de 2012, depois de ter sido rejeitado nas presidenciais francesas, em favor de François Hollande, tenho bem presente a frase que proferiu na Mutualité, perante os seus apoiantes: "Je ne ferai plus jamais de la politique!". Depois, foi o que se viu: aproveitou a conflitualidade entre Fillon e Copé, tomou conta do partido, mudou-lhe o nome e aí surgiu ele, de novo, a tentar o "remake". Voltará? Sabe-se lá!

Pertencemos a um país onde um dirigente desportivo dizia que "o que é hoje verdade, pode não sê-lo amanhã", onde um político regressou às lides horas depois de considerar "irrevogável" a sua demissão. E isso era num tempo em que ainda era desconhecido o "trumpiano" conceito de "pós-verdade", que veio consagrar teoricamente as cambalhotas com as palavras e essa coisa despicienda que são os factos.

Estive várias vezes com Sarkozy, em reuniões privadas e públicas. Do que se passou nas primeiras serei para sempre obrigado, por dever profissional, a guardar algum recato. Mas, nesta nota, gostava de falar sobre o momento público em que, no Palácio do Eliseu, fiz, com outros embaixadores, a apresentação das minhas cartas credenciais, como novo representante diplomático português em França.

A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais. Em frequentes casos, o próprios chefes de Estado introduzem alterações às práticas nacionais, de acordo com os seus humores e com a sua personalidade.

Foi o que sucedeu com Nicolas Sarkozy, quando assumiu funções como presidente francês. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais ao chefe de Estado acaba por ser muito intenso.

Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, que antecedeu Sarkozy, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. François Hollande, ao que julgo, terá retomado o mesmo método. É um pouco assim, aliás, que as coisas se passam entre nós.

Nicolas Sarkozy, optou, desde o início, por um fórmula mais "leve", menos simpática para os novos embaixadores, mas bastante expedita. Foi a que me coube em sorte, em 2009.

Cerca de uma vintena de novos embaixadores foi colocada, lado-a-lado, numa grande sala do Palácio do Eliseu, numa certa manhã. O presidente entrou, acompanhado do secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do seu conselheiro diplomático, deu os bons-dias a todos em voz alta e, sem mais perda de tempo, dirigiu-se ao primeiro dos embaixadores, alinhados pela ordem da respetiva data de chegada a França.

Fiel às práticas que a profissão ensina, esse primeiro diplomata, tentou dizer a frase clássica: "M. le Président, j'ai l'honneur de vous présenter les lettres de créance qui me (...)". E preparava-se para transmitir-lhe os cumprimentos do seu chefe de Estado e, talvez, a honra que ele próprio sentia pelo privilégio de poder servir o seu país junto da França e coisas assim!

Era não conhecer Sarkozy! Não deixou sequer o homem acabar a primeira frase e quase que lhe arrancou da mão as cartas credenciais, que logo passou para trás, ao secretário-geral, avançando para o embaixador seguinte.

Tratava-se do meu colega de Marrocos, país com o qual a França tem relações fortíssimas e complexas. Com naturalidade, ele tentou passar uma mensagem de "Sa Majesté le Roi". Pois isso! Sarkozy cortou a conversa, nem dez segundos era decorridos (o homem, um velho amigo meu, ficou lívido e furioso).

E chegou a minha vez. Simplifiquei ao máximo a mensagem: "Mes respects, M. le President. Je suis le nouvel ambassadeur du Portugal" e passei-lhe as "cartas", assinadas por Aníbal Cavaco Silva. Sarkozy olhou-me por um segundo e disse: "Soyez le bienvenu, M. l'Ambassadeur!", e passou à frente.

A próximo chefe de missão era uma senhora africana. Sarkozy, que acelerava o processo, saudou-a num segundo e avançou. Notei alguma agitação física na embaixadora, que me segredou: "Esqueci-me de entregar as cartas credenciais!" - e mostrou-me, angustiada, o envelope com a carta do seu chefe de Estado para Sarkozy, que lhe conferia o título de embaixadora em França. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.

Entretanto, Sarkozy "aviara" já todo o grupo e com ares de alguma impaciência, convidou a colocarmo-nos frente a ele, em semi-círculo. Vi-o gesticular para que uns empregados, de casaco branco e botões dourados, expectantes ao longe, com tabuleiros com flutes de champagne, se aproximassem dos embaixadores. Quando verificou que todos estavam servidos, ergueu o seu copo, felicitou-nos pela nossa "entronização", nem sequer fingindo que bebia (Sarkozy não bebe álcool).

O presidente singularizou então no grupo o embaixador de um país que, na antevéspera, tinha sido atingido por um grave sismo ou inundação, e lembrou-lhe: "Espero que na sua capital tenham notado que a França foi o primeiro país a prestar-vos ajuda!". O homem, ultrapassando com garbo a deselegância, que se estendia aos outros Estados cujos embaixadores tinham acabado de apresentar credenciais e que não tinham sido tão lestos no gesto humanitário, balbuciou alguns agradecimentos.

Tinham passado menos de dez minutos desde o início da cerimónia. Visivelmente "morto" por lhe pôr termo, o presidente disse estar certo de que todos compreendiam que as suas responsabilidades o obrigavam a sair. Em jeito de compensação, explicou que ali deixava o secretário-geral do MNE e o seu conselheiro diplomático, com os quais poderíamos falar "do que vos interesse".

Disse "Rebonjour à tous!" e encaminhou-se para a saída da sala. Ao passar por mim, deu-me uma palmada no ombro e disse, de forma audível por todos: "Mes amitiés à Sócrates!". Os meus colegas ficaram visivelmente admirados ao ouvir aquilo. Quase tanto como eu. Nem tive tempo de assegurar a Sarkozy que não deixaria de transmitir a sua saudação ao então primeiro-ministro português - uma figura que, até ao último dia do respetivo mandato, manteve com o presidente francês uma forte empatia e uma relação de extrema cordialidade pessoal.

domingo, novembro 20, 2016

"Self-plagiarism"?

Foi há cerca de um ano. O telefonema do responsável pelo "copy desk" do jornal deixou-me confuso. Ao ler o texto que eu lhe mandara nessa tarde, para ser publicado no dia seguinte, ele ficara com a sensação de que era um artigo igual a outro já publicado por mim, meses antes.

Caí das nuvens: eu escrevera o artigo há escassas horas, "de raiz"! Que confusão era aquela? Ter-me-ia enganado no anexo que enviara com o email para o jornal? Interrompi o que fazia e regressei a casa. Ainda tinha algum tempo, antes do "fecho" do jornal, para resolver o assunto.

Fui ver os meus email: tinha mandado o artigo certo. Fui à procura de textos antigos, enviados para o mesmo jornal. A certo ponto deparei com um exatamente sobre o mesmo tema daquele que eu agora remetera ao jornal. Li-o e compreendi: não era o mesmo texto, mas a lógica do artigo era exatamente a mesma do anterior, com exemplos e argumentos repetidos. O assunto em causa voltara à atualidade, eu "revisitara-o" com o mesmo prisma de análise e, por isso, produzira dois textos basicamente similares.

A memória "clínica" do responsável pelo "copy desk", numa fantástica demonstração de perspicácia profissional, salvara-me de um embaraço. E lá fiz eu um outro artigo...

Este episódio veio-me à memória ao ler há minutos um artigo sobre a questão do "self-plagiarism", num site estrangeiro, em torno do debate académico sobre se um autor pode, ou não, republicar textos seus, isoladamente ou inseridos num outro contexto, sem deixar explícito de que não se trata de um original.

O tradicional plágio - utilização não identificada de textos ou ideias escritas de outros - é uma praga que a internet tem vindo a facilitar. E o chamado "auto-plágio", a repetição de textos ou ideias próprio? O tema é interessante, porque tem uma inescapável dimensão económica. Com efeito, se eu tiver sido pago pela escrita de um artigo e, mais tarde, voltar a publicá-lo, ou com outro título ou inserido noutro texto, sem esclarecer que se trata de um texto antigo, voltando a ganhar dinheiro com ele, isso é legítimo? Creio bem que não.

Mas isso suscita outra questão. Como é sabido, o plágio vai para além da simples cópia exata de um texto, situando-se tamvém no domínio das ideias. Eu serei acusado de estar a plagiar se repetir, sem deixar isso previamente claro, um corpo de ideias inserido num texto de um artigo ou de um livro, mesmo que para isso utilize outras palavras, que mude os vocábulos. Isso não deixa de ser um evidente plágio. Mas, pelo mesmo princípio, estaria também estaria impedido de repetir, não os meus textos, mas as minhas próprias ideias. É que eu não posso ser obrigado a mudar de ideias, só para não me repetir... Como diria o Narciso à dona Rosa, à entrada do Pátio das Cantigas: cruel dilema!

sábado, novembro 19, 2016

Charla amigável

"Fulano é teu amigo?", perguntaram-me ontem ao almoço. Respondi que não, que o conhecia de nome mas que nunca o tinha visto pessoalmente. "É que escreve na tua página de Facebook", esclareceu quem me interpelava. "Ah! Isso sim!", respondi. "Era isso que eu queria dizer" fechou a conversa o meu interlocutor.

Tenho o maior respeito pelo conceito de "amigo" que o Facebook nos trouxe. É uma realidade simpática, que alarga os nossos contactos, ainda que virtuais. A verdade, porém, é que ele não deixa de induzir alguma confusão face ao estatuto tradicional de relação. 

É que ainda sou do tempo em que, para além dos nossos reais amigos, só os comunistas tratavam por "amigos" aqueles que, não sendo "camaradas", lhes eram simpáticos. Ainda farão isso? Ando distraído.

Portugal, a Europa e o mundo


sexta-feira, novembro 18, 2016

Os inglusos


São uma raça tão à parte que não sei bem o que lhes irá acontecer com o Brexit. Às tantas, ficam apátridas. Nasceram em Portugal (ninguém é perfeito), mas têm o coração numa grã-ilha a que pertencem por direito natural. Idealmente, a maternidade do St Antony's College seria o seu berço óbvio, mas têm de contentar-se com o facto de S. Sebastião da Pedreira figurar no seu Cartão de Cidadão. Falam e vestem como eles acham que os ingleses ("bem") devem falar e vestir. Quando atingidos pelos "blues" da vivência nesta "piolheira", à falta dos coiros de Pall Mall, vão tomar chá à York House, numa tarde pardacenta, como a de hoje. Adoram Churchill e os Church's. Ao todo, são aí uma vintena. Conheço-os de ginjeira. Escrevem (às vezes, bem), bebem (alguns já tiveram melhores fígados) e todos resmungam (de preferência, por escrito) contra este país onde não há um "Spectator" decente, um lugar que verdadeiramente os não merece - no que têm toda a razão: Portugal nada fez de mal ao mundo para ter de os aturar. São os inglusos. Nem são nem ingleses nem lusos. São uma espécie de náufragos do autocarro, mas do tempo em que a Carris era britânica. Ah! E os ingleses nem sabem que eles existem. E ainda bem, senão riam-se de nós! É que eles detestam imitações baratas. Já lhes bastam os "leftovers" do seu império!

Gastronomia


Na próxima semana, a Academia Portuguesa de Gastronomia comemorará os seus 25 anos de existência. Criada sob a direção de Jorge Gonçalves Pereira, a APG é hoje dirigida por essa personalidade referencial da gastronomia portuguesa que é José Bento dos Santos – uma figura que o país conhece dos livros e das televisões, um homem que tem dedicado grande parte da sua vida a promover os valores da nossa cultura gastronómica, com os vinhos como parte integrante da mesma. 


A Academia, de um modo discreto, sem o menor apoio público, tem levado a cabo um persistente trabalho de identificação de “boas práticas”, destacando a valia dos profissionais do setor da restauração, premiando as melhores obras publicadas e, em particular, procurando apoiar quantos se distinguem na preservação e promoção dos valores da tradição culinária portuguesa.


Em Portugal, só nos últimos anos é que a gastronomia começou a ganhar um estatuto cultural mais firmado. Por muito tempo, foi vista como um passatempo de comilões, de epicuristas ociosos, de folgazões com apetite. Ora a gastronomia vai muito para além disso, releva das culturas regionais, insere-se nas produções agrícolas locais, é hoje um instrumento essencial na promoção turística, com um impacto económico fortíssimo. Basta ver aquilo que países como a França ou a Espanha fazem neste domínio, com reflexos à escala global, para se perceber o extraordinário potencial daquilo que entre nós já existe.


Portugal vive um momento raro na exposição internacional da sua gastronomia. Chefes portugueses começam a ser conhecidos internacionalmente, organizam-se programas turísticos centrados na oferta da nossa restauração, os excelentes vinhos portugueses servem de eixo promocional e, cada vez mais, os nossos restaurantes de qualidade surgem destacados nas principais publicações que atraem os visitantes. Portugal, como é sabido, está internacionalmente “na moda” e o seu tecido de oferta gastronómica tem muito a ver com isso.


Mas a gastronomia é também a arte de alimentar de forma saudável, pelo que uma melhor educação nesse domínio é hoje tida por essencial, como forma de combater hábitos pouco convenientes e desenvolver nesse domínio uma consciência atenta, que deve começar nas escolas.


Portugal, onde hoje se pratica uma “dieta mediterrânica” muito variada, com um toque atlântico, é o primeiro consumidor de peixe “per capita” da Europa (e o terceiro do mundo), pelo que parte de uma base muito interessante para poder garantir, a prazo, uma posição destacada na promoção e desenvolvimento de programas para uma alimentação racional e saudável.


Apoiar e promover a gastronomia portuguesa é uma tarefa da maior importância para o futuro do país.

O adeus à Liberdade


Hoje é um dia triste para o "Diário de Notícias". Com a saída da mítica casa da Avenida da Liberdade, levada na voragem da lógica "remax", saem também dali muitos anos de história de um jornal que faz parte do património do país. Nesta data, que sei triste para eles, deixo um abraço aos bons amigos que lá tenho.

E repito a imagem magnífica do meu conterrâneo Stuart, onde fica mais evidente o projeto arquitetónico que quis evocar no edifício a rotativa de um jornal.

Presidentes e reis


Leem-se por aí comentários críticos da cena em que o presidente Rebelo de Sousa conversa com a rainha britânica sobre temas leves e, muito em particular, da vénia e do beija-mão que a antecederam. Não nego a cada um tem o direito de dizer o que lhe apetecer e, no caso vertente, de aproveitar esta oportunidade "soberana" para exercitar o seu jacobinismo. 

Por mim, que também tenho esse direito, e que talvez saiba alguma coisa "da poda", gostava de deixar claro que me pareceu perfeitamente adequado o comportamento do chefe de Estado português. E, mais do que isso, não considerei que o meu feroz republicanismo tivesse ficado minimamente afetado pela cena, onde não vi a menor sujeição de um regime sufragado a uma magistratura hereditária e não eleita. Mas, enfim, eu não sou do "Podemos"...

Marcelo Rebelo de Sousa, num gesto de educação e de respeito pelas regras do protocolo, fez uma vénia ao saudar a senhora e beijou-lhe a mão. Recordo-me do "escândalo" também provocado em algumas almas, já há alguns anos, quando Obama teve uma atitude precisamente similar. O nosso presidente esteve bem no gesto. Ponto.

Quanto ao facto da conversa ter assente no pormenor das visitas da raínha a Portugal, e a circunstância de Rebelo de Sousa ter mencionado ter sido testemunha presencial das mesmas, só quem não conhece o ambiente destes encontros se pode espantar com o facto desta interlocução tratar de minudências irrelevantes. A soberana britânica não se ocupa das questões políticas, sendo, no plano dos poderes formais, aquilo que se costuma designar como "uma raínha de Inglaterra" - sendo, aliás, a própria... A evocação feita pelo presidente foi, assim, em tudo adequada, configurando uma nota de simpatia pela vetusta homóloga de um país com o qual Portugal tem uma relação histórica muito antiga. E os chefes de Estado, sejam presidentes ou reis, são isso mesmo: símbolos da continuidade do passado histórico dos respetivos países.

quinta-feira, novembro 17, 2016

Peixes

Foi preciso vir a uma conferência sobre Sustentabilidade para aprender que Portugal é o terceiro país do mundo que mais peixe consome e, a uma imensa distância de qualquer outro, o maior consumidor de peixe na Europa.

Acho até que, se quisessemos promover o  nosso peixe, ligando-o a outras amenidades, podíamos criar o moto "Em Portugal, o peixe é bom mas a carne é fraca*..."

*Já sei que há quem vá ler isto "à letra", mas é a vida!

Tropas


Já lá vão 43 anos. Mas não esqueço. Estávamos em Mafra, no primeiro ciclo do curso de oficiais milicianos. O 25 de abril seria um ano depois, mas então ninguém podia prevê-lo. A possibilidade de irmos parar "com os costados" à guerra colonial era muito elevada. 

O meu pelotão - trinta marmanjos - era uma mescla engraçada. Ia desde gente madura, casada, com filhos, curso superior e profissão interrompida, até uns miúdos quase imberbes. O ambiente induzia a algum infantilismo, brincadeiras, com muitos de nós a tentarmos, por via do humor, da ironia e de uma controlada indisciplina, não nos deixarmos tomar pelo formalismo daquele mundo pintado a fardas verdes e ordens irracionais. Um dia contarei um pouco da minha leitura dessa experiência, comum a muitas centenas de milhar de portugueses.

Para o que aqui hoje me interessa, anoto que, quase no final do curso, tinha lugar a chamada "semana de campo". Eram uns dias passados algures nos arredores de Mafra, para onde marchávamos longas horas, montando tendas para noites incomodíssimas. No dito acampamento, havia lugar a exercícios, um dos quais consistia num "ataque" noturno de surpresa ao nosso "bivaque", feito por soldados, com tiros de bala simulada, operação à qual nós deviámos reagir, montando um "dispositivo", em posições "defensivas", previamente definidas.

Eu e um pequeno grupo de colegas, politicamente mais motivados, pouco disponíveis para alinharmos num "script" de uma peça em que éramos relutantes atores, gizámos um plano para fazer abortar o "teatro" em que nos queriam como comparsas. Entre nós, combinámos levar todo o pelotão a não reagir, quando fosse "atacado", respondendo com gargalhadas, palmas e apartes, com pedidos de "bis", por ocasião da operação. Não foi fácil convencer alguns "chicalhões" (mais dados a levar a "tropa" a sério), bem como os temerosos (com o argumento de que a noite os protegeria) e outros tíbios, preocupados com as eventuais consequências disciplinares do ato. Mas a nossa "contra-operação" fez-se, com pleno êxito. E escândalo.

A reação da oficialagem do quadro foi a esperada: raiva, berros e um imenso furor. Porque nestas coisas há sempre uns "bufos", o meu nome e de um outro dos mais ativos promotores do "levantamento" chegou ao ouvido do comando da companhia. E, já tarde na noite, vieram buscar-nos a ambos às tendas. Durante mais de meia hora fomos interrogados, num ambiente pretendidamente intimidante, com focos de luz na cara e (não esqueço!) pistolas nas mãos de um tenente e de um alferes - cujas caras e nomes anotei para sempre. Queriam saber das motivações do ato, pretextaram "subversão", ameaçaram com desgraduação, processo disciplinar e coisas assim. Só faltou chamarem a Pide. Nenhum de nós fraquejou e, sob a raiva evidente dessas figuras, regressámos às tendas de madrugada. Nada aconteceu, mas até ao final do ciclo essas duas figuras olhavam-nos pela parada de Mafra com ar grave, ameaçador.

Um ano depois, veio o 25 de abril. Os dois interrogadores, sem surpresa, vieram a revelar-se zelosos seguidores da nova ordem. Um deles, o tenente, destacou-se a prender legionários, acabando na indústria automóvel. O outro, passeou-se com gravidade pela 5ª divisão nos idos do PREC e viu-se por aí. Por uma qualquer, mas bem concreta, razão, lembrei-me há pouco deste último. E mais não digo.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Non sense


Já não me recordo se escrevi por aqui uma frase ouvida, há uns meses, numa "tertúlia especializada" que frequento: "Não ouvi o que tu disseste, mas acho que não estás a dizer coisas certas".

Acho esteticamente graça (mas só isso, atenção!) a este tipo de expressões, feitas de preconceito e de apriorismo, que se pretendem chocantemente afirmativas, no limiar da presunção. Como o que passou a ser "chic" dizer-se, a propósito de livros: "Não li e não gostei". Olho este tipo de exercícios apenas pela curiosidade do seu estilo, pelo seu "non sense", mas não os respeito minimamente, convivendo com eles com uma medida dualidade no apreço.

Porque é que me lembrei hoje do assunto? Porque acabo de ver o título do próximo espetáculo de Vitorino, que vai na mesma onda: "Não sei de que é que se trata, mas não concordo". É uma frase citada do alentejano Zé Embirra, elevada a mote estimável, na lógica de que "o que é popular é bom".

A frase tem (a tal) graça, mas não deixa de ser uma patetice, sintetizando, no fundo, a atitude triste de muita gente perante o quotidiano.

Uma dúvida incómoda


Na trapalhada em que se converteu, a propósito das questões que envolvem a sua administração (desde a humilhante recusa pelo regulador do formato inicialmente proposto, passando pelos montantes salariais até chegar à saga das declarações de rendimentos), a questão da Caixa Geral de Depósitos parece ter esquecido dois aspetos importantes e, estranhamente, nunca ter suscitado a resposta a uma outra dúvida essencial.

O primeiro ponto, que a espuma dos dias parece ter feito diluir, foi o imenso sucesso em que o processo de recapitalização se converteu. De "tabu" para as instituições europeias, como argumentava falsamente a antiga maioria, que assim foi deixando irresponsavelmente afundar a instituição, talvez com vista a força a sua privatização, a Caixa viu aprovado o processo de reforço do seu capital, sem que essa operação venha a contar para o défice (embora nele se reflita de forma limitada, pelo impacto inevitável no serviço da dívida). Mário Centeno e António Costa nunca foram devidamente saudados pelo país por essa importante vitória.

O segundo é um tema em que só alguns "teimosos" insistem ainda em suscitar. Parece haver fortes sinais de que o estado a que a Caixa tinha chegado, para além das naturais decorrências operacionais de qualquer instituição financeira, se ficou a dever a erros e vícios de gestão de algumas das administrações "políticas" que nela preponderaram nas últimas décadas. Como essas administrações o foram no âmbito de um "bloco central" PSD/PS (alargado pontualmente aos centristas), parece ter-se agora gerado um "omertà" no sentido de passar uma esponja sobre esse passado, numa lógica de "o que lá vai lá vai". 

Ora isto é muito injusto para gente competente e eticamente impoluta que passou pela administração da Caixa, embora ligada a partidos, cuja gestão proba não pode ser confundida com a de alguns "apparatchik" que, por incompetência ou dolo, tomaram decisões danosas para o interesse público, que importa conhecer em detalhe, chamando de uma vez por todas os bois pelos nomes. É fundamental separar as águas e, com toda a franqueza, não consigo vislumbrar a menor validade no argumento de que uma sindicância ao passado pode vir a afetar a estabilidade da instituição, agora que a recapitalização está adquirida. O silêncio conluiado sobre as zonas sombrias desse mesmo passado é que afeta a dignidade da Caixa e dos agentes políticos que nada tenham a temer - até porque essas seriam lições para um futuro que se deseja não prossiga na mesma linha de irresponsabilidade e fuga às mais elementares regras prudenciais e até de "compliance".

Dito isto, resta-me uma imensa dúvida.

A Caixa foi capitalizada com capitais públicos, como devia ser, fugindo às tentações de quantos pareciam apostar na sua fragilidade para fazer entrar dinheiro privado no seu capital social. Mas se o Estado "meteu" dinheiro público na Caixa, pelo qual todos vamos pagar juros, foi, seguramente, com o objetivo de que o funcionamento futuro da instituição se oriente pelo interesse público, isto é, que a Caixa venha a ser um instrumento operativo das políticas públicas, naturalmente dentro das regras de gestão básicas que qualquer instituição bancária deve seguir.

Ora o que tenho lido daquilo que se espera da nova equipa não é bem isto: a narrativa em torno da Caixa baseia-se na ideia de que uma gestão "independente" deve transformar a instituição num banco "como qualquer outro", razão pela qual a "despolitização" da gestão foi a preocupação central do novo modelo de governança. 

E é aqui que a minha dúvida assenta: se a Caixa passa a ser um banco "como qualquer outro", isto é, orientado apenas para ter lucros nessa atividade, sendo essa a razão pela qual que se foi escolher uma gestão profissional "pura", por que diabo o Estado foi lá colocar mais dinheiro? Que me interessa a mim, ou ao leitor, ser transformado num "investidor" numa banca igual à privada, pagando juros pelo capital investido e entregando a gestores técnicos o modo de gerar futuros lucros? 

António Domingues é um profissional reconhecido pela sua excecional competência, mas é também conhecido por ter feito parte da administração do BPI, de onde aliás trouxe alguns colegas, uma instituição com uma excelente gestão, mas que sempre seguiu, talvez por virtude da composição do seu capital acionista, uma filosofia muito própria em matéria de crédito, bastante longe daquela que se espera de uma entidade como a Caixa, nomeadamente no que respeita ao crédito às empresas, em especial das pequenas e médias. Circunstância que se torna mais premente, agora que já se perceberam os limites dessa estranha criatura que (não) é “Banco de Fomento”.

O país não precisa de ter uma Caixa Geral de Depósitos que seja, muito simplesmente, uma "máquina" para fazer dinheiro, como é normal ser o desiderato da banca privada. Precisa de ter um banco público que, sem ceder às manipulações político-partidárias e de compadrio que, no passado, iam provocando a sua desgraça, prossiga uma orientação em matéria de política de crédito determinada pelos poderes públicos legitimamente eleitos. Uma gestão prudencial não é contraditória com a circunstância de estarmos perante um banco ao serviço do Estado e dos interesses que este tem obrigação de implementar nas instituições que tutela. Quero com isto dizer, de forma clara, que a nova administração da Caixa não pode ter as "mãos livres" como alguns parece pretenderem que tenha, talvez como passo para um dia reclamarem de novo a sua privatização.

(Artigo que hoje publico no jornal "Público")

O grande dia adversativo


Ele aí está, o imenso dia adversativo, as horas encavacadas, em que oposição, e os seus comentadores económicos encartados, irão engolir em seco.

É demasia areia para aquela carroça: são as estatísticas económicas favoráveis aos objetivos do governo para o país, é a luz verde ao orçamento por Bruxelas, é o fim da ameaça da suspensão dos fundos comunitários e, no topo do bolo, a cereja do anúncio do abandono, dentro de algum tempo, do procedimento por défices excessivos. É demais para um só dia, concedo!

Hoje, para todos esses deserdados das más notícias, é o dia dos muitos e diversos MAS.

Vão ser aos montes os "porém", os "no entanto", os "não obstante" e coisas assim, às vezes travestidas de sábia prudência, na disfarçada esperança de que o 4° trimestre, afinal, acabe por não ajudar à festa da Geringonça.

Não vai ser fácil o dia de hoje para a rapaziada do MAS, para os viúvos da austeridade. Bruxelas e o INE - esses ingratos! - deixaram-nos cair. Isto não se lhes fazia.

Estejam bem atentos, ouçam-nos e leiam-nos com atenção. E se acaso descobrirem algum desses opinadores - um só! - que seja frontal e não tenda a relativizar os números, prometo fazer a minha penitência.

terça-feira, novembro 15, 2016

Universidade


Gostei muito do exercício em que estive envolvido esta manhã, na Universidade de Aveiro. A convite do respetivo Conselho Geral, presidido por Eduardo Marçal Grilo, e do Reitor, Manuel Assunção, tive oportunidade de dar a minha perspetiva sobre os principais desafios portugueses no quadro internacional, concentrando-me, em especial, no papel do ensino universitário nesse contexto. Foram quase duas horas de muito interessante debate, no qual também deixei refletida a minha experiência (2009/2012) como presidente do Conselho Geral da UTAD, bem como as funções consultivas (Coimbra e Nova) e docentes (UAL e Europeia) que atualmente exerço noutras universidades.

A Universidade de Aveiro, onde no passado já orientei teses de mestrado, é hoje uma das mais dinâmicas do país e foi muito curioso constatar que as interrogações que atravessam o seu Conselho Geral refletem a maturidade da reflexão que nela tem vindo a ser empreendida.

No âmbito da Fundação Calouste Gulbenkian, com figuras como Marçal Grilo e Júlio Pedrosa, tenho igualmente integrado, desde há alguns anos, um trabalho sobre a inserção regional do tecido universitário e politécnico, ligando autarcas e empresários - um caminho que parece essencial para um melhor aproveitamento da fantástica rede educativa superior que a nossa democracia criou.

Por modesta que esta contribuição possa ser, acho ser meu dever tentar dar alguma utilidade àquilo que tive o privilégio de aprender, em quase quatro décadas de serviço público dedicado à ação externa.

segunda-feira, novembro 14, 2016

A idade da lua


Dizem que a lua que hoje nos está a maravilhar a noite, e que há pouco vislumbrei por cima da Fraga da Almotolia, arrasando em luminosidade a concorrência local (na minha infância, de um carro com grandes faróis dizia-se: "parece o arraial da Senhora da Pena!", mas esta lua...! ), só terá tido um exempłar similar em 1948. Ainda bem. Gosto da ideia de que a mais bela lua antes desta teve o privilégio de nascer comigo. E, melhor ainda, gosto bastante de andar por cá a ver esta. E espero ainda ver "muitas luas", como dizem os índios que têm o senhor Trump por presidente. Mas esta é lindíssima, de facto!

Miguel Veiga


Morreu um homem livre, que pensava exclusivamente pela sua cabeça, mesmo que isso o obrigasse a ficar sozinho, contra tudo e contra todos. O que algumas vezes aconteceu. Tinha a coragem própria dos que não dependem dos outros, de quantos não mendigam lugares ou prebendas, tendo como única ambição serem eles mesmos. Social-democrata de gema, num espaço político-partidário onde essa espécie quase já só se encontra à lupa, era um saudável heterodoxo, senhor de um discurso afiado e irónico, onde ao traquejo da barra se somava uma convivência íntima com os clássicos e um mundo de debate criativo onde sempre brilhava.

Como pessoa, era uma figura encantadora, culta, cosmopolita, muito agradável, com histórias deliciosas. Gostava das coisas boas da vida, era um epicurista felizmente incurável. E era um cultor feroz da amizade.

Um dia de dezembro de 2002, no Porto, num jantar oficial, num tempo em que eu fora objeto público de uma vilania, aproximou-se de mim e disse: "Meu caro, vi o que lhe fizeram. Deixe-me dar-lhe um abraço forte, com a minha solidariedade". E, como homem do Norte que era, deixou na conversa um qualificativo adequado aos fautores da patifaria. Nunca esqueci esse gesto, vindo de quem vinha.

Estive com Miguel Veiga, pela última vez, na evocação de Artur Santos Silva (pai), que ele fez com brilho, na Fundação Mário Soares, há cerca de dois anos. Senti-o já bastante frágil, longe da graça, quase adolescente, que era a sua imagem de marca. Mas sempre com a inteligência viva e a palavra certa.

Homens livres como Miguel Veiga fazem muita falta ao país cinzento e burocrático que aí anda.

domingo, novembro 13, 2016

Diplomacias

É um "bem elaborado telegrama", com antes se dizia nas Necessidades, aquele que o embaixador britânico nos Estados Unidos enviou, ao final da passada 3a feira, ao seu governo, analisando a vitória de Donald Trump. Nele faz, por exemplo, delicadas avaliações sobre a personalidade do futuro presidente e discretas recomendações sobre o modo como o seu governo deverá atuar perante ele.  Estou certo que, ao escrevê-lo, o diplomata estava longe de pensar que eu ia ler o seu texto, caso contrário não se teria permitido o tipo de comentários que fez, convencido como estava de que a sua análise iria permanecer no secretismo próprio deste tipo de comunicações. Só que assim não aconteceu: eu vim a conhecer o telegrama e, agora, posso dar-me ao luxo de especular abertamente sobre um trabalho profissional que não era previsível que tivesse lido. Eu e os largos milhares de leitores do "Sunday Times", o jornal britânico que, há horas, comprei no aeroporto de Munique, onde vem escarrapachado o texto assinado por sir Kim Darroch.

Fazer diplomacia desta forma, sujeito a estes percalços, não deve ser fácil. A minha sincera solidariedade vai para o diplomata britânico.

sábado, novembro 12, 2016

Berlim, os aviões e eu


Tenho pena que o aeroporto de Tempelhof, aqui em Berlim, onde estou hoje, tenha acabado . E parece que não estou sozinho. Até Angela Merkel terá votado, sem sucesso, contra o fim daquele símbolo da Guerra Fria, um belíssimo edifício do tempo nazi que, desde há alguns anos, permanece sem préstimo, com as pistas transformadas em jardins. As imagens da ponte aérea dos anos 60 do século passado vinham-me sempre à imaginação, nas várias vezes que tive de apanhar aviões em Tempelhof. Por que diabo não tirei uma fotografia de um desses momentos?

Mas não era sobre os aviões a aterrar em Berlim que eu hoje queria aqui falar. Era sobre aviões de papel. A sério!

Entre 1997 e 1999, coube-me coordenar, por Portugal, sob a orientação do primeiro-ministro António Guterres, as negociações financeiras do orçamento comunitário, que viria a vigorar entre 2000 e 2006. Foi um trabalho interessantíssimo, em que Guterres e Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, se foram progressivamente envolvendo, à medida o processo saiu do terreno técnico e passou a estar no domínio das decisões políticas. A conclusão dessa negociação iria caber à Alemanha, durante a sua presidência da União Europeia, no primeiro semestre 1999. (Sendo o principal financiador da União - também o maior ganhador, há que lembrar - é sempre "confortável" ver a Alemanha a assinar os cheques...) A administração alemã fazia, por esse tempo, a sua transição entre a antiga capital, Bona, e Berlim. 

Recordo-me de, nesses escassos meses, ter feito várias viagens a ambas as cidades alemãs. Os meus interlocutores foram variando, nesse período em que a nova coligação no poder, entre o SPD e os Verde, revelava fortes dificuldades de coordenação entre si. 

Nunca esqueci uma tarde, em Bona, em que, saído da Chancelaria Federal, onde tinha ido falar com um colaborador de topo do primeiro-ministro Gehrard Schroeder, recebi um telefonema de um alto responsável do ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, estrutura que tinha sido afastado dessa fase na negociação, pretendendo saber ... o que me tinha sido dito na sede da chefia do governo do seu país! E ainda dizemos nós que somos descordenados!

Mas voltemos ao avião de papel.

Gunther Verheugen, o ministro adjunto para os Assuntos Europeus, passou, na fase derradeira da negociação, a ser o meu contraparte quase diário. A sua relação com o seu ministro "verde" Joshka Fischer não era das melhores, mas o primeiro-ministro Schroeder, como ele socialista do SPD, tinha-o por colaborador direto. E a palavra de Verheugen, a partir de certa altura, era "his master's voice". E isso, para nós, era o essencial.

A negociação tinha uma multiplicidade de vetores, desde as políticas estruturais às questões agrícolas. Foram muitos meses de trabalho, porque partíamos de uma muito má proposta da Comissão Europeia, que foi necessário retificar, quase ponto por ponto. A presidência alemã, depois de um início bastante hesitante, percebeu bem o nosso problema e ajudou-nos, muito graças ao modo construtivo como António Guterres se comportou - procurando identificar e promover os interesses dos outros parceiros que não fossem contraditórios com os nossos.

Os dias finais de Berlim - em Conselho Europeu muito "dramático" - foram muito complexos. Pela nossa parte, tentávamos obter verbas para diversos setores (do leite ao trigo duro e muitos outros produtos, cuja produção nacional desejávamos que fosse apoiada financeiramente). A soma final era importante, até porque seria sempre comparada com o período anterior - e isso não era indiferente politicamente, como se compreenderá. 

Portugal tinha aquilo que Guterres considerava ser um "número mágico" (que não revelávamos) - nosso objetivo ideal. Mas, chegados a Berlim, uma SMS que recebi de Verheugen não nos sossegava. O número que a presidência alemã nos dedicava estava ainda distante do nosso. Recordo ter-lhe respondido, com uma adaptação da frase do Marquês de Sade, na "Filosofia de Alcova": "Alemans, encore un éffort!". Nunca cuidei em saber se ele percebeu a graça...

No dia seguinte à nossa chegada, para a reunião decisiva dos líderes, Guterres, Gama e eu reunimos com Schroeder, Fischer e Verheugen. Verheugen ficou à minha frente na mesa. A conversa era em inglês, entre Guterres e Schroeder, com este a entrecortar com frases em alemão, traduzidas já não sei por quem. 

A certo passo, vi Verheugen pegar numa folha branca de A4 e começar a fazer o que me pareceu ser um avião de papel. E era. Ninguém notara, a não ser eu, que olhava para a cara risonha do meu contraparte, entretido no processo construtivo, com aqueles óculos muito grossos que eram a sua imagem de marca. No final, o "avião" cruzou, baixo, a nossa mesa, aterrando à minha frente. Fiquei com a ideia de que todo o lado alemão não notou. Vi que Guterres ficou curioso, mas não mais do que eu, que, estudadamente, sem qualquer pressa, abri o avião. Lá dentro, havia um número, com dois algarismos: melhor do que o que ele me enviar na véspera, quase igual ao nosso objetivo máximo. 

Olhei para o meu amigo Gunther Verheugen e, com um sorriso, fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça. A tática a isso obrigava. Guterres, à minha direita, continuava curioso. Antes de lhe passar o papel, com o número, recomendei, sussurrando: "Faça uma cara descontente". Guterres olhou para Vereugen, também sorriu e fez um discretíssimo "não". Puxei o papel para mim. Do outro lado de Guterres, vi surgir o rosto impassível de Jaime Gama: naturalmentr, queria saber o que era aquela semiologia. Por detrás de Guterres, passei-lhe o número. Não reagiu. Do lado alemão, atento às palavras de Schroeder, ninguém parecia ter notado o avião de papel de Verheugen. Ou talvez eu esteja errado.

A negociação só terminaria já muito dentro da madrugada do dia seguinte. Para a pequena história, vale a pena registar que conseguimos algo mais do que o nosso "número mágico", um número acima do montante que "aterrara" no avião de papel que Gunther Verheugen me enviara. 

De toda a forma, para mim, Berlim ficou para sempre muito ligado à memória de aviões. E agora, se me permitem, vou imprimir os cartões de embarque para o regresso à pátria.

sexta-feira, novembro 11, 2016

Alfredo Bruto da Costa


Morreu Alfredo Bruto da Costa, um grande homem de bem, uma figura muito rara em termos de consciência social, de preocupação com os mais pobres e desfavorecidos - um imenso lutador contra as desiguadades.

Portugal perde uma personalidade cujo modo sereno e responsável de refletir sobre as grandes divisões sociais lhe grangeava uma natural consideração e um merecido prestígio. Pessoalmente, perco alguém que tinha o privilégio de ter como amigo, com quem, nas últimas décadas, fui mantendo um contacto regular, que sempre me enriqueceu.

O elefante na sala


E se escrevesse sobre Pedro Dias, que a mediocridade mediática promoveu no dia errado? E por que não sobre a Caixa e as suas trapalhadas? Ou, então, a "cultura de balneário" em Alvalade, depois do último jogo? Por fim, fui tentado a adiantar alguma coisa sobre aquilo que, ontem, disse em Berlim, sobre segurança europeia. Mas escrevesse eu fosse sobre o que fosse, o "elefante na sala" ia impor-se: lá está ele a fugir às coisas incómodas!

Falemos então do "elefante", símbolo do Partido Republicano, cujo inesperado representante acaba de ganhar a liderança, por quatro anos, da principal potência mundial. 

Donald Trump ganhou com toda a legitimidade, por muito que isso custe a ouvir. É claro que a sua campanha assentou em propostas e ideias marcadas por um imenso primarismo, por muitas mentiras e meias verdades, pelo apelo a sentimentos básicos, a preconceitos e mensagens perigosas e divisivas. Mas a América é um país livre, onde tudo se pode dizer. Trump teve contra si imensos setores da comunicação social, que, embora em alguns casos sem grande entusiasmo, favoreceram a sua competidora.

E, no entanto, Trump venceu. Venceu porque soube representar, à sua maneira, essa imensa, e pelos vistos maioritária, massa de descontentes, os deserdados da globalização, os temerosos da imigração, os incomodados com o novo curso do “melting pot” que fez o seu país e, principalmente, os enraivecidos com a máquina federal que Trump diabolizou e a que, agora, ironicamente, vai presidir. Trump é a vitória da democracia, no seu lado mais sombrio.

A vitória de Trump tem, para além de tudo o resto, que é muito, um “side effect” perverso, na minha perspetiva. É que ele, e aquilo que ele representa, são a condenação explícita de tudo quanto a presidência Obama trouxe para a América -  a tolerância, o equilíbrio, a atenção às dimensões sociais e étnicas que a “selva” tinha condenado. É o regresso de uma outra América, feita de uma agenda negativa de medos, disposta à clivagem e ao confronto. Mas – repito, para que se não esqueça – essa América é hoje maioritária e, pelas mesmas razões por que nos desagradava a ideia de Trump de que não aceitaria um resultado que lhe fosse desfavorável, as regras da democracia obrigam todos a respeitar esta escolha.

Agora, há que viver com Trump, ou melhor, há que saber desenhar o modo como nos relacionaremos com a América de Trump. Desde logo, na Europa, onde o exemplo do que se passou nos EUA deve ser bem refletido, no caminho para sufrágios que aí vêm. Vai ser um tempo estranho, inédito. Mas o mundo é assim, embora, com Trump, seguramente vá ser um mundo muito mais difícil.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, novembro 10, 2016

Os neo-americanos

Estiveram silenciosos, quase sempre, durante a campanha eleitoral americana. A diabolização de Trump e a expressão maioritária de uma vontade de eleição de Hillary Clinton manteve-os discretos. Dizer bem de Trump e daquilo que ele representava não era politicamente correto. Agora, estão "vingados". Trump ganhou e eles, pouco a pouco, vão emergir dessa clandestinidade. Já podem dizer mal de Obama, sentem-se confortados democraticamente pelo resultado de Trump. E aí surgem  eles nos comentários, cavalgando a onda da nova América, "free-riders" daquilo que ontem mudou. São os "neo-americanos". Alguns colaram-se à agenda dos "neocons" no tempo de Bush, agora aí os veremos colados à nova conjuntura de Trump. O oportunismo sabe adaptar-se às cores dominantes. Nada que seja surpreendente, mas que vale a pena lembrar.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Outro mundo


Há não muitas semanas, num seminário na Ucrânia, ouvi da boca de Leon Panetta, figura grada de administrações democráticas, a afirmação de que Donald Trump teria “muito fortes possibilidades” de vir a ser o próximo presidente americano. Devo dizer que, até esse momento, dava a hipótese completamente por absurda, irracional, sem sentido. Talvez porque, como muitos, transformei em certezas os meus desejos, num processo mental que os anglo-saxónicos designam por “wishful thinking".

Os impactos negativos potenciais de uma vitória de Trump eram para mim tão evidentes, a fragilidade das suas propostas tão óbvia, que qualquer racionalidade mínima tornava o cenário implausível. Só que a nossa racionalidade não se impõe à liberdade do voto secreto, por muito que às vezes sejamos tentados a desvalorizar a sua legitimidade.

Talvez mais do que um feito a crédito de Trump, a sua vitória é a constatação, clara e chocante, de que uma parte importante da América se rege por estímulos extremamente simples, assentes em ideias-chave quase caricaturais, por inseguranças e medos, por preconceitos e crenças, muitas vezes incapazes de passarem no teste da verdade dos factos. 

Sabia-se que essa América existia, ironizava-se com esse mundo bizarro que víamos nos filmes, herdeiro moderno das “vinhas da ira”. Não se pensava que a cumulação de todos esses múltiplos fatores de descontentamento e de mal-estar viesse a ter uma expressão tão forte. Trump teve a arte de saber captar em seu favor a chave para transformar esses sentimentos em votos. E, goste-se ou não, a democracia também é isto.

E agora? Trump presidente terá, com toda a certeza, um discurso diferente de Trump candidato. Mas até que ponto? Conseguirá a máquina republicana rodeá-lo com gente responsável, que ajude a transmutar uma caricatura num estadista? Em que medida algumas das suas propostas radicais, nas políticas internas ou na ordem internacional, irão claudicar no contraste com a realidade? Grande parte do mundo, para quem a liderança americana não é de todo indiferente, está agora em estado de choque. Eu também, confesso. Mas é a vida! Agora, temos de aprender a viver com Trump.

(Artigo publicado no "Publico" online)

terça-feira, novembro 08, 2016

O que aí pode vir

A emergência na eleição americana, com hipóteses reais de sucesso, de um candidato com um perfil fora do sistema suscita uma questão de fundo sobre a própria essência do modelo político em vigor nos EUA.

Ninguém pode colocar em causa a representatividade de Donald Trump, o facto das suas propostas configurarem uma agenda de preocupações que atravessa largas faixas do eleitorado americano. Pode argumentar-se que algumas dessas ideias assentam numa perspetiva preconceituosa e caricatural, num primarismo perigoso, às vezes apoiado em mentiras e distorções.

E quem é o juiz nessa avaliação? Se o maior dos ignorantes tem um voto idêntico ao do mais sábio dos cidadãos, então há que convir que o valor político das ideias de ambos, por muito diferente que seja a respetiva informação, se equipara democraticamente no momento do sufrágio.

Nos EUA, no passado, as elites republicana e democrata foram sempre capazes de produzir candidatos oriundos do sistema, com um perfil que respeitava uma espécie de ideologia do "mainstream", não obstante as suas diferenças. Um voto radical de qualquer dos lados acabava por ser recolhido pelo candidato que lhes estava mais próximo, embora ele próprio estivesse longe de traduzir uma agenda extrema.

Nesta eleições, a candidatura democrática conseguiu (pela última vez?) preservar esse modelo de seleção. Hillary Clinton foi capaz de derrotar nas "primárias" Bernie Sanders, uma figura com uma agenda “liberal” (na leitura americana da palavra, que se aproxima da europeia “esquerda”) algo radical. Agora, Clinton espera que os potenciais votantes em Sanders, quanto mais não seja para travar Trump, a apoiem, isto é, reforcem no sufrágio a candidata da elite democrática.

O mesmo não sucedeu no campo republicano: por uma "desblindagem" do processo de seleção, somada à emergência de uma concorrência medíocre nos candidatos da elite republicana, Trump acabou por ser o escolhido. A sua agenda programática acaba por ser uma tradução mecanicista (perdoe-se-me o conceito marxista) da vontade das bases. No fim de contas, poder-se-á mesmo dizer que, em termos de representatividade, Trump está mais próximo da vontade da esmagadora maioria de quantos o apoiam do que Clinton. É chocante escrever isto, mas é uma realidade.

O futuro do sistema político americano poderá vir a depender desta eleição.

Se Clinton ganhar, há quem sustente que a máquina republicana irá repensar o seu sistema de seleção, de modo a evitar novos Trump, mesmo com as consequências que isso possa vir a ter na revolta de franjas republicanas. Trump assusta muitos republicanos, muito embora o seu sucesso tenha contribuído para consagrar aquela que já era uma acentuada radicalização conservadora, a qual num passado recente, afetou seriamente a governabilidade do país. Uma vitória de Clinton, em si mesma uma presidente que entraria na Casa Branca sem a menor onda de entusiasmo ou prestígio mobilizador, se não vier a ser acompanhada por uma mudança no Senado favorável aos democratas, poderá converter os EUA num país bloqueado na sua decisão interna.

Se Trump ganhar, os Republicanos não mudarão, pelo que a assustadora deriva do sistema irá aprofundar-se, tanto mais que, no campo oposto, Clinton só conseguiu o apoio de Sanders pela promessa de que futuras “primárias” reflitam mais diretamente os “humores” populares. Uma “desblindagem” do Partido Democrático, num tempo presidencial de Trump, abriria a América a uma bipolarização que faria com que a eleição presidencial de 2016 acabasse por ficar para a História como o debate “civilizado” que esteve muito longe de ser.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

segunda-feira, novembro 07, 2016

François Hollande


Com a publicação de um livro da autoria de dois jornalistas, em que são reportados comentários de François Hollande a várias figuras e instituições francesas, o atual ocupante do Palácio do Eliseu deu uma machadada final naquela que era já uma muito remota hipótese de recandidatura. A França é muito dada a este tipo de indiscrições escritas, pelo que o livro de José António Saraiva nunca seria um escândalo por lá. 

(Tenho algures um outro livro, também de dois jornalistas, com conversas com Nicolas Sarkozy, igualmente "politicamente incorretas", mas que não iam tão longe como as do político socialista e que, se bem me recordo, em nada contribuiram para a sua derrota, em 2012. Contra Hollande, recorde-se.)

Sei que isto não deve ser muito popular, mas devo confessar que gosto de Hollande como pessoa. Conheci-o em Lisboa, creio que em 1999, quando cá veio a uma conferência no Hotel Ritz, numa iniciativa promovida por Mário Soares e António José Seguro, em que ambos falámos sobre o estado da Europa. Revelou-se um homem cordial e afável, brincalhão e bem disposto. Tenho um fraco por pessoas assim.

Politicamente, Hollande nunca foi "grande espingarda". Assessor de Mitterrand, nunca por este (nem por Jospin) foi levado para o governo, o que pode querer dizer alguna coisa. Gestor hábil da máquina socialista - um "saco de gatos" muito difícil - acabou por emergir como uma espécie de "média aritmética" nas primárias que levaram à sua seleção como candidato da esquerda às eleições presidenciais, numa França então muito cansada da hiperatividade arrogante de Sarkozy. Ganhou com um discurso bastante mais à esquerda do que presidência que depois faria. Portugal deve-lhe uma política fiscal contra os "ricos", que fez com que para cá emigrasse muito capital, que comprou meia Lisboa.

Como presidente, Hollande demonstrou não ter uma estratégia clara para os problemas internos do país, da questão da competitividade à integração social das comunidades, dando sinais contraditórios com algumas escolhas que fez para o executivo. Mas portou-se bem nas questões da segurança. No plano externo, revelou um elevado sentido das responsabilidades globais que competia à França assumir - de que a sua ação no Sahel fica como um marco significativo. Na área europeia, não conseguiu disfarçar a crescente fragilidade da França. O saldo global, como se vê com os seus 4% (!) de aprovação, é, contudo, abaixo de medíocre.

Custa-me dizer isto de um país de que gosto muito: o problema francês, isto é, a inadequação que me parece evidente das suas ambições face à realidade, tornam o seu problemático futuro - quem que seja quem a dirige - numa questão para todos quantos dependem da sua capacidade como poder para reequilibrar a balança europeia, principalmente agora que dizemos adeus a Londres no quadro comunitário.

Em 2012, François Hollande afirmou querer ser um presidente "normal", para contrastar com a imagem de Sarkozy. Infelizmente, acabou por ser um presidente banal, tocando mesmo alguma vulgaridade, em especial no modo como geriu as dimensões públicas da sua vida sentimental. 

Posso estar a ser simplista, mas, nestas derivas afetivas, creio ter vislumbrado em Hollande algum "mitterrandismo" tardio, uma teatralização à Feydeau da vida meio-política-meio-pessoal em que os franceses são mestres, a qual não deixa de colher os favores da minha nostalgia. É que Hollande manteve sempre em tudo isso um registo humano com que não consigo deixar de simpatizar. É também por isso, para além das dimensões políticas, que tenho pena que acabe por sair da cena da História desta maneira.

domingo, novembro 06, 2016

"Não problema"

Perguntado sobre quais eram as três questões, tidas como prioritárias, para o seu país, no contexto europeu, aquele deputado estónio foi claro: "Rússia, Rússia e Rússia". Nenhuma surpresa. Se a pergunta tivesse sido formulada a um letão ou a um lituano a resposta seria seguramente a mesma. E imagino que um polaco não reagiria de forma muito diversa. 

O imenso receio da Rússia, a incerteza quanto à sustentação de uma atitude de firmeza da União Europeia face a Moscovo e a ideia de que a NATO (isto é, os Estados Unidos) permanece como o principal fator em que assenta a sua segurança marcam muito do pensamento dos países do Báltico nos dias que correm. A isso acresce um novo sinal de preocupação: os sinais de reforço militar russo em Kalininegrado (antigo Koningsberg), a península russa separada do resto do país, com fronteira com a Lituânia e com a Polónia.

Desde a recuperação da independência, a relação dos bálticos com Moscovo nunca viveu momentos fáceis. E o estatuto das minorias russas nestas três Repúblicas mantém-se com problemas (sendo hoje o caso letão talvez o mais preocupante). A liderança de Putin e o autoritarismo interno na Rússia - com o comportamento de Moscovo na Geórgia e na Ucrânia a funcionarem como elementos de prova - servem hoje de forte desculpa para a firmeza nacionalista nos três países. E para a recolha de apoios de outros parceiros europeus para solidariedade com essa linha política.

Um jovem intelectual estónio de origem russa resumiu bem o seu dilema: "Sou russo mas sou cidadão estónio, tenho uma lealdade total ao meu país mas quero ajudar a garantir que os russos que nele vivem têm um estatuto de cidadania plena e que o facto de o serem não os transforma em vítimas colaterais permanentes da tensão que a Estónia mantém com a Rússia. Os russos da Estónia são estónios, não são uma "quinta coluna" da Rússia."

Esta perspetiva, que parece ter toda a lógica, pressupõe a aceitação, pelos bálticos não russos, de que há um problema com as minorias russas, que é preciso reconhecer e ajudar a resolver. Mas não é exatamente assim: o mesmo deputado estónio que referi no início do texto, perguntado separadamente sobre o tema, respondeu-me, com uma frieza irritada: "esse é um não problema". 

Este tipo de questões, envolvendo origens que conflituam com o estatuto nacional onde as pessoas vivem, é de muito difícil perceção para alguém que vem de um país como o nosso, com fronteiras com quase nove séculos, uma identidade indiscutível e indiscutida, bem como uma um maioria étnica esmagadoramente coincidente com a sociedade nacional. Que percentagem de pessoas de outra origem étnica tem a sociedade portuguesa? - perguntava-me um outro estónio (não russo), que chegou a pertencer ao parlamento soviético. Respondi que eram cerca de 5%. "Os problemas só começam a aparecer depois dos 10%", replicou-me com total segurança.

Nunca conseguiremos entender por completo os problemas - e também os preconceitos - dos outros. Mas tentar refletir sobre eles é meio caminho andado para compreendermos o que é diferente e para ajudar reforçar a nossa cultura de tolerância. 

No Panteão Nacional

No dia 8 de janeiro de 2025, José Maria Eça de Queirós entrará no Panteão Nacional.  Finalmente!