sábado, março 30, 2019

Por um fio


Já o tentei encontrar no Moledo, sem sucesso. Até pedi ao Francisco José Viegas, que sei que o conhece bem, para tentar que ele me recebesse, para lhe testemunhar em pessoa a minha admiração de leitor atento. Mas ter-se-á esquivado. Quando ainda existia o Ancoradouro, no Moledo, o Alfredo dizia-me que ele vinha por ali sentar-se, de vez em quando, a jantar com a sobrinha. Mas nunca o cruzei naquelas toalhas de quadrados vermelhos e brancos. Há meses, em Caminha, na tabacaria Atenas, disseram-me que tido ido lá buscar jornais nessa manhã. Mas já percebi que o meu destino é nunca o encontrar. 

Falo de António Sousa Homem, um cavalheiro que tem para cima de 90 anos e vive quase recluso no seu mundo, entre Âncora e Cerveira, e que continua a publicar deliciosas crónicas no jornal de Octávio Ribeiro, grande parte das quais a Porto Editora reuniu agora num volume intitulado “O crepúsculo em Moledo”. Comecei a lê-las na esplanada da Bénard e estou já quase a terminar as mais de 400 páginas.

Fixei uma frase que Sousa Homem cita no livro, do seu avô, bem dentro do século XIX: “Estamos por um fio, é o que é”. Ao observar o granel nos Comuns, na tarde de ontem, não pude deixar de pensar como isso é uma grande verdade, mas também, há que dizê-lo, que o fio deve ser de grande qualidade, talvez da Escócia.

sexta-feira, março 29, 2019

“Boa Vida”, na TSF


“Aquela voz, a falar sobre bacalhau, era-me conhecida”, disse-me um amigo, ao telefone, há pouco. Era eu, de facto, numa simpática entrevista feita por Augusto Freitas de Sousa, no seu programa “Boa Vida”, a propósito do meu blogue “Ponto Come” e dos restaurantes que por aí vai havendo. A avaliar pelas pessoas que me telefonaram, a TSF é, de facto, muito ouvida.

Quem quiser, pode ouvir aqui.

O senhor PSD


A morte de Zeca Mendonça (assim crismado pelos próximos, numa forma que o país adotou), hoje lamentada em todos os quadrantes políticos, suscita uma reflexão interessante sobre este tipo de personalidades que estão para além da transitoriedade dos líderes de turno e que, no fundo, dão corpo temporal às instituições, enquanto seu esteio de continuidade. 

Conheci muito mal, em termos pessoais, Zeca Mendonça, com quem falei, brevemente, meia dúzia de vezes, em ocasiões circunstanciais. Mas, na realidade, como muitos portugueses, “conhecia-o” bem, da imagem televisiva, daquela sua função de acompanhante, que pensávamos eterno, dos sucessivos presidentes do PSD - e não me tinha dado conta de terem sido 17!

Muitas vezes me perguntava, ao vê-lo ao lado de figuras com tão forte contraste entre si, quem seria, lá no íntimo, o seu líder preferido, naturalmente depois de Sá Carneiro, “benchmark” indiscutível da casa. Tenho as minhas suposições, que não vêm para o caso.

Ficou-me para sempre um seu momento “político”, quando um dia o vi subir ao palco do Coliseu, falando em nome de Cavaco Silva, num momento muito tenso de um Congresso do PSD, apelando à calma coletiva. Não era claramente o “funcionário” que estava ali nesse momento, era o militante empenhado e preocupado. Foi um momento interessante, raro, que um dia tive ocasião de lhe referir.

Não sei se Zeca Mendonça deixou memórias póstumas - e é pena se o não tiver feito. É que a sua experiência de tantos anos, no centro da máquina de um partido estruturante da democracia portuguesa, iria ser, com toda a certeza, um contributo valioso para a nossa história política contemporânea.

Agora, neste momento derradeiro, só nos resta deixar registada a nossa simpatia.

quinta-feira, março 28, 2019

Modelo Tancos


Ouvi, há dias, uma proposta “criativa” para uma “solução portuguesa” destinada à questão da fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, em caso de não acordo entre os 27 e Londres. Seria o modelo Tancos: colocavam-se postos de vigilância, redes já esburacadas e, depois, ninguém via nada. Assim, haveria formalmente uma fronteira e ... não havia controlo nenhum!

Uma cidade inglesa


Eram 19 horas, em Londres, ontem. As votações, nos Comuns, punham Theresa May num sobressalto. Já tinha anunciado que se ia embora, se conseguisse fazer passar o acordo negociado com a União a 27. 

Eram 19 horas, no Porto, ontem. Na sala da Fundação António de Almeida, no Porto, umas largas dezenas de pessoas juntaram-se, a convite do Instituto de Defesa Nacional, para ouvir o professor Teixeira Fernandes, da Universidade do Minho, e eu próprio falarmos sobre o Brexit, sobre o que poderá ser a União sem o Reino Unido e sobre Portugal nesse contexto. No final das nossas intervenções, muitas questões. Duas belas horas de debate.

O Porto sempre foi uma cidade muito inglesa, de que a Feitoria é uma bela amostra.

Interior, Norte


Alguém, no final, notou: se o debate tivesse tido lugar há uns anos atrás, o discurso dos intervenientes teria sido recheado de queixas sobre as acessibilidades, a aplicação dos fundos europeus, a ineficácia congénita do poder central, recados ao “senhor ministro”. Ontem, falou-se muito mais da atitude a ter perante os desafios do desenvolvimento, da escassez de recursos humanos qualificados, dos exemplos de criatividade, das parcerias que por aí brotam, do orgulho na audácia internacional das empresas. E, no que ao Estado toca, pediu-se essencialmente para não “desajudar“.

Foi ontem à tarde, numa iniciativa da Caixa Geral de Depósitos, organizada em Vila Real. O tema era o Interior Norte e a forma de o potenciar. Umas centenas de pessoas perderam/ganharam um par de horas a refletir sobre o que e o como fazer, com vista a dar um empurrão positivo a uma realidade sócio-económica em mutação ainda não suficientemente rápida. 

Foi interessante ouvir discursos pragmáticos, muito pouco “politiqueiros”, apostados na eficácia e entusiasmados com o que foi já feito. Nota-se que muitas pessoas, mesmo aquelas que manifestamente têm origens que pressuporiam uma atitude à partida menos articulada entre si, revelam agora uma matriz comum na ação cada vez mais larga. É, com certeza, um efeito da idade média dos intervenientes, gente com outras experiências, com um quotidiano menos “encostado” ao setor público, parte da qual teve de “dar o litro” e ir à procura de soluções nos mercados externos, nos tempos sombrios da “troika”. Gente que assim se autonomizou já bastante da subsídio-dependência que tinha sido o “modo de vida” de gerações anteriores.

Olhando várias caras naquela plateia, senti pena de não haver a oportunidade de se fazer uma recolha de experiências, de fracassos e sucessos, que fosse possível utilizar como manual de soluções para “dar a volta a isto”. É desta gente, às vezes com um ar simples e despretensioso, que é feito o Portugal das soluções. As suas questões são, em geral, muito práticas e concretas, fruto dos problemas diários que enfrentam e que estão cansados de ver teorizados em complexidades burocráticas que, afinal, parece não respeitarem o seu esforço.

A coragem de quem vive e teima em viver no Interior Norte, de quem ali investe e cria riqueza, é uma fantástica lição para um certo país que ainda existe, feito de quantos estão sempre à espera das ajudas “da Europa”, que têm a queixa por atitude e o outro como culpado de tudo o que de mal lhes acontece.

(Publicado no “Jornal de Notícias”, em 27 de março de 2019)

quarta-feira, março 27, 2019

O imigrante do Barroco


O italiano Nicolau Nasoni terá descoberto Portugal em La Valetta, através do grão-mestre da Ordem de Malta, o português António Manuel de Vilhena. O arquiteto viajou depois para o Porto, no início do século XVIII, e, a partir daí, deu à cidade um magnífico “banho” de Barroco, de que todos conhecem a Igreja e a Torre dos Clérigos. E muitas outras magníficas obras.

Pelo Porto casou, duas vezes, por ali teve filhos, ali morreu. Posso estar equivocado, mas acho que a cidade do Porto nunca deu a Nasoni, até no plano de destaque toponímico, a retribuição que este teria merecido.

Em Vila Real, será a “Capela Nova” uma obra de Nasoni, como, com segurança, se sabe ser a ala central do Palácio de Mateus? Para alguns isso é um facto, embora outros se inclinem para que, como à época era normal, tivesse cabido a discípulos seus essa responsabilidade. Eu não sou de intrigas, mas está hoje mais do que provado que o seu principal discípulo se chamava José de Figueiredo ... Seixas!

Acho essa paternidade indiferente. O importante é que a cidade dispõe desta magnífica peça arquitetónica (da escola) de Nasoni.

terça-feira, março 26, 2019

João Vasconcelos


Há notícias que são como um murro no estómago. É o caso da morte de João Vasconcelos, aos 43 anos, de que acabo de ter conhecimento. Trata-se uma brilhante figura da nossa nova geração política, que desde cedo me habituei a admirar e respeitar. Era um homem que impressionava porque olhava sempre o país com olhos de futuro, de que o seu papel decisivo no Websummit foi talvez a prova prática mais clara. Fica, como memória, este “selfie” por ele próprio tirada há uns meses, no quadro de um trabalho conjunto em que ambos estávamos envolvidos e em que agora o vamos perder. E, com ele, o seu confiante sorriso. Um abraço saudoso, João.

Brexit


Fora da Caixa


segunda-feira, março 25, 2019

Aqui havia uma curva


Foi Ilse Losa, uma escritora que merecia ser revisitada, quem um dia escreveu um pequeno livro intitulado “Aqui havia uma casa”, a propósito de um refugiado da guerra, como ela era, que regressou à sua terra natal, devastada pelo segundo conflito mundial.

Lembrei-me disso agora, sentado na esplanada da “Tosta Fina” das “boxes” (só quem é de Vila Real sabe o que isto é e que também há a Tosta Fina “sede”, a da Senhora da Conceição), a ver os carros passar na Avenida Aureliano Barrigas (um dia conto quem foi), uma artéria que mais não é senão um heterónimo local da Estrada Nacional nº 2.

Por aqui há hoje uma leve curva, que se deteta na imagem, mas, no passado, era bastante diferente: era então muito acentuada, francamente perigosa. A abordagem a esse ponto da estrada, que era estreita, tinha de fazer-se com grande prudência e, claro, sem ultrapassagens.

Esta era então parte do “circuito”, o que também tem a ver com as “boxes” e com Aureliano Barrigas, porque, em Vila Real, “isto anda tudo ligado”, como escreveu o jornalista e poeta Eduardo Guerra Carneiro, que, não por acaso, também era de Vila Real. E, para “compor o ramalhete”, é também por aqui perto que, quando venho a Vila Real, eu próprio “moro”.

Numa noite, que recordo quente, do início dos anos 60, a cidade foi abalada pela notícia: naquela curva, perto da hora do jantar, dois amigos, José Loureiro e António Guedes, duas figuras da cidade bem conhecidas, numa disputa de velocidade, muito típica numa terra onde o circuito foi sempre um chamariz para ousadias de acelerador ao fundo, haviam sido vitimadas num acidente de um automóvel em que seguiam, numa ultrapassagem imprudente, abalroando outra viatura. Não eram uns miúdos: eram homens feitos, casados, com família.

Tenho ainda na memória a consternação que atravessou toda a gente, chocada com a brutalidade do acidente do carro conduzido por José Loureiro, o “filho do Loureiro”, como os nada íntimos, como eu era, chamávamos ao condutor. Os funerais das vítimas marcaram a história da Vila Real de então.

Há meses, ao rever o magnífico “Il Sorpasso”, por cá “A Ultrapassagem”, de Dino Risi, um filme italiano de 1962, onde dois amigos, representados por Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, têm um trágico desastre numa ultrapassagem, lembrei-me do acidente do “filho do Loureiro”. Em que ano terá sido este útimo?

Agora, nesta tarde de extraordinário sol primaveril, com a Gomes fechada, sentei-me por esta esplanada a testar a bola de carne (uma eterna “competição” tradicional vila-realense, em que a Gomes costuma ter a medalha de ouro, mas em que, ao almoço de hoje, a que é produzida pela Alice, para consumo caseiro nas refeições no Lameirão, não lhe ficou nada atrás) e lembrei-me de que aqui havia uma curva.

Literacia empresarial


Foi significativa a onda de comentários surgida na imprensa e nas redes sociais, a propósito da entrada de Adolfo Mesquita Nunes para a administração da Galp, com funções não executivas. 

Um pouco de todo o lado – sem surpresa, de áreas da esquerda, mas, curiosamente, também de setores da direita – emergiram críticas à opção tomada pelo jovem advogado, reconhecidamente uma das personalidades mais brilhantes da sua geração política. Se alguns desses comentários relevavam da orfandade que a decisão suscitava no mundo da política em que Mesquita Nunes se movimenta, da grande maioria dessas opiniões emanou apenas um grosseiro viés preconceituoso. 

A ideia central, em alguns desses textos claramente expressa, foi a de que não pode haver nenhuma outra razão, para além do exercício futuro da atividade de lóbi ilegítimo e de tráfico de influências, que justifique que uma empresa contrate para um cargo alguém que haja tido um percurso político anterior. Nessa perspetiva, as empresas são tidas como meras forças interesseiras, determinadas em explorar, à margem da lei e da ética, todos os meios de possível influência. Que “bela” imagem do setor privado português ressalta da nossa comunicação social! 

Que uma perspetiva deste género tivesse surgido na boca dos habituais maluquinhos das teorias da conspiração, dos populistas do “eles são todos iguais!”, dos membros da brigada do “não é por acaso que”, que enchem o Facebook e as caixas adjetivadas de comentários, não seria surpreendente. Mas que esta agressão reputacional, feita de suspeições que descartam quaisquer provas, apareça subscrita pela pena de quem defende os valores da economia de mercado não deixa de ser um pouco bizarro.

E há ainda o outro lado, o dessas pessoas que se dispõem a ir trabalhar para o setor privado. Considerar que essas figuras, frequentemente com um percurso de vida e um comportamento irrepreensível em todas as funções até aí desempenhadas, se transformam, de um momento para o outro, por razões alegadamente venais, nuns títeres dos grupos empresariais - sem ética nem moral nem personalidade -, configura uma perspetiva insultuosa e altamente ofensiva. 

Mas não há e houve casos de gente que se comportou dessa forma? Claro que sim, tal como continua a haver jornalistas a soldo, como existem “ovelhas negras” em todas as áreas de atividade. Para controlar isso existem as leis e os tribunais, único meio legítimo de sancionar, com rigor, depois de devidamente provados, comportamentos incorretos ou ilegais. Mas, sempre, separando o trigo do joio! Arruinar reputações por mera estigmatização preventiva parece relevar mais de uma cultura populista de inveja do que de uma legítima preocupação ética.

A propósito do caso Mesquita Nunes, lembrei-me que talvez fosse útil a imprensa, nomeadamente a que se dedica a temas económicos, prestar alguma atenção ao esclarecimento do papel que o jovem advogado vai exercer na Galp – o de administrador não executivo. Essa seria uma interessante contribuição para a literacia do mundo empresarial.

Tenho notado que é comum o desconhecimento sobre o que essa função representa nas empresas contemporâneas. O surgimento, no seio dos conselhos de administração, de personalidades que estão desligadas do dia-a-dia da gestão é um modelo generalizado pelo mundo. O principal objetivo é garantir que personalidades independentes, com perfis profissionais reconhecidos e prestigiados, muitas vezes oriundas de setores de atividade muito diversos dos das empresas que passam a integrar, possam carrear para esses conselhos, à luz da sua experiência própria, uma leitura distanciada e, desejavelmente, mais independente, ajudando as empresas a absorverem perspetivas do exterior e, ao mesmo tempo, fiscalizando a ação da gestão executiva, num terreno distinto da matriz funcional dos conselhos fiscais. Os salários desses administradores não executivos são sempre muito inferiores aos dos gestores profissionais permanentes, premiando apenas a ocupação pontual do tempo de quem, em geral, exerce outras atividades. É isto que deveria ser explicado, para combater a demagogia e a má informação.

(Publicado no “Jornal de Negócios” em 22 de março de 2019)

domingo, março 24, 2019

A nossa direita

Acho muito saudável que a direita portuguesa se reúna, se manifeste, crie partidos, jornais e tudo o que lhe der na real gana. 

Foi (também) para isso que se fez o 25 de Abril, uma Revolução sobre a qual há, pelo menos, uma imensa certeza: não foi a direita que a fez.

MAYXIT


sábado, março 23, 2019

Brexit? Um Inferno!


Vejam como uma conversa, tida há meses, se mantém atual.

http://videos.sapo.pt/zZKYZ4Rz4Mnqkt882cSc

Pensar a Europa em Ílhavo


Uma excelente iniciativa de reflexão organizada, este fim de semana, pela delegação da Comissão Europeia em Portugal, num “retiro” em Ílhavo, com vista a colher ideias para o futuro das políticas europeias.

quinta-feira, março 21, 2019

O que é que correu mal?


Tenho na prateleira um livro sobre a civilização árabe que tem o título deste artigo. Lembrei-me dele ao ver, há pouco, nas televisões, a imagem da conferência conjunta de Donald Trump e de Jair Bolsonaro. 

Se, há meia dúzia de anos, alguém me dissesse que este cenário na Casa Branca era possível, teria dado uma gargalhada e, do alto da minha “ciência”, argumentaria, por A mais B, que a ascensão de um milionário megalómano e vaidoso à chefia dos EUA seria sempre travada pelo “establishment” do Partido Republicano e que, no caso da figura brasileira, se tratava de uma personalidade caricatural e risível, alguém cujo primarismo o Brasil nunca iria levar a sério. 

Depois, foi o que foi. O que é que aconteceu? Aconteceu que, por mais previdentes e “conhecedores” que sejamos, nunca conseguimos evitar que os nossos raciocínios acabem por ser conduzidos pelo quadro mental que se nos tornou confortável e que, no fundo, também padece daquilo que, na língua inglesa, se chama “wishful thinking”, que pode ser traduzido por um pensamento marcado por aquilo que, no fundo, desejamos. Tudo o que contrarie as ideias feitas é posto de lado ou tido como de escassa probabilidade.

Tal como no Brexit e nas eleições italianas, nos EUA e no Brasil houve fatores influenciadores do eleitorado que não vimos chegar. Deixámo-nos assim levar pela ideia de que havia uma “impossibilidade” objetiva de ocorrência de certos cenários, porque eles entravam em rotura com aquilo que pensávamos plausível.

Alguns dirão que foram situações excecionais, manipulações comunicacionais, medos induzidos e outros fatores anómalos e conjunturais que produziram esse resultado. Até pode ser verdade, mas o que verdadeiramente aconteceu foi uma expressão democrática de vontades, que teve a consequência que teve. 

A prática da democracia não aponta sempre num sentido democrático, como a História nos ensinou. Mas, para os democratas, a resultante do voto deve permanecer sagrada, salvo se vier a afetar o funcionamento do próprio sistema democrático. Isso não significa que não seja natural continuar a lutar por aquilo em que se acredita, mesmo que isso implique ficar numa posição minoritária e desconfortável.

Trump e Bolsonaro lá estão, graças ao voto popular. Quem deles não gosta deve colocar-se a questão: “O que é que correu mal?” E, se os quiser combater (a eles e aos outros de idêntico jaez), deve começar por “desconstruir” as razões do seu sucesso, refletir sobre os erros cometidos que tornaram possível a sua ascensão. 

quarta-feira, março 20, 2019

O "momento zero"


Ontem à noite, num restaurante, lembrei-me do Artur (Kiko) Castro Neves, um amigo que perdi há alguns anos, um homem com uma leitura da vida muito pouco comum, que pensava "fora da caixa" e que cultivava uma modernidade no seu olhar sobre as coisas que eu sempre invejei (e eu gabo-me sempre de nunca ter conhecido o sentimento da inveja). O Kiko era um homem do Porto, mas, na realidade, era um cidadão do mundo, de muitas artes e ideias, que, a espaços, aportava à Mesa Dois do Procópio, onde era sempre uma presença saudada e muito querida. (Quem o quiser conhecer melhor pode ver aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_Castro_Neves).

Costumava visitar-me em Paris (também o fez em Brasília), onde tinha estudado e trabalhado e onde, à época, ainda vivia a sua mãe. Um dia, foi por lá com a Isabel e convidou-nos para jantar num restaurante perto do Beaubourg. Era um restaurante americano (!), de que ele gostava, situado numa das ruas que tinham sobrado do desbaste feito na área, depois do fim do mercado Les Halles (que ainda conheci!), no início dos anos 70. Na minha memória restaurativa, a refeição, fosse pela sua qualidade objetiva, fosse pelo facto da conversa com o Kiko me ter feito esquecer o que tive sobre a mesa, não deixou marca impressiva. Recordo que era um local bastante movimentado, ruidoso e animado, de que deixo uma imagem. Mas tudo isso é o menos importante para o que aqui me convoca a escrita.

A refeição já ia avançada quando decidimos mudar de vinho, cansados da opção por um tinto do "novo mundo" que nos tinha sido impingido pelo empregado. Olhámos em volta, tentando "to catch the eye" de um dos fâmulos que, minutos antes, giravam pela sala. Qual quê! Ninguém aparecia!

Foi então que esse meu amigo se saiu com a exclamação: "Estamos no 'momento zero'!" Olhámos para ele, perplexos, desconhecedores do significado do comentário. Esclareceu-nos: "Desde há muitos anos que me convenci que, em todos os restaurantes, há, a certa altura, um 'momento zero'. Trata-se de um vazio momentâneo, que chega a durar minutos, durante o qual os empregados se somem, talvez para fumar um cigarro ou para outras pausas mais básicas, em que o patrão se recolhe por instantes ao escritório, em que o pessoal do balcão, por qualquer razão misteriosa, se eclipsa. Não há ninguém na sala! Ou, se acaso resta alguém, estão recolhidos em espaços inacessíveis, sempre de costas voltadas ou, mesmo se de frente, assumem um olhar vítrio e distante, neutralizados por um cansaço que os torna inoperacionais. É um 'momento' que normalmente acontece quando a refeição já vai adiantada, sem um novo turno de clientes no horizonte, em que se caminha para as derradeiras sobremesas. Ah! E então na altura dos cafés é uma tragédia: é quando geralmente acontecem os grandes 'momentos zero'!"

O tempo que esse amigo demorou a explicar-nos a teoria do "momento zero", que já tinha testado pelos muitos mundos que visitou - o "momento zero" é transversal a todas as civilizações gastronómicas, note-se - e que afirmou com a sabedoria cristalina de quem, como ele, vivia então em frente do palácio de Cristal, acabou por ser suficiente para que um empregado surgisse, finalmente, ao fundo, e, face ao agitar sedento dos nossos braços, nos trouxesse um "pichet" de aceitável "rosso" italiano, para substituir o australiano quer eu caíra na asneira de aceitar no início. O "momento zero" acabara.

Ontem, no Bairro Alto, aqui em Lisboa, num certo restaurante (por sinal excelente, onde já não ia há anos), houve um desses "momentos zero". Por vários minutos, não consegui pedir outra garrafa de um tinto razoável de Arcossó (terra da minha bisavó materna, por sinal).

E, nesse instante, lembrei-me do Kiko. Depois, senti-me culpado por ter sido por um motivo tão fútil que a memória desse excelente amigo me ocorreu. Mas acho que ele não se importaria e que, a propósito do vinho escolhido, teria, com certeza, uma história para contar. Como eu agora tive, ainda graças a ele.

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...