segunda-feira, agosto 01, 2016

Moniz Pereira

Já quase tudo foi dito, nas últimas horas, sobre Mário Moniz Pereira, essa grande figura de sportinguista e do atletismo português. E, curiosamente, também da música portuguesa, onde assinou alguns grandes êxitos. Moniz Pereira morreu ontem.

Nunca tive o ensejo de conhecer ao vivo aquele sorriso simpático de homem que dava ares de estar de bem com a vida, pelo que quero apenas recordar algo de que muito dificilmente alguém se lembrará nas notas necrológicas produzidas nestas horas. 

Em 1974/75, no auge da Revolução, surgiu entre nós uma vaga de "associações de amizade" entre Portugal e, em grande maioria, países socialistas, da URSS a Cuba ou Angola. Os partidos maoístas tomaram conta do seu "pelouro" (China, Albânia, Coreia do Norte). Nos restantes, se bem me lembro, foi a intectualidade à volta do PCP (militantes ou "compagnons de route") que esteve na origem dessas estruturas, que pretenderam alargadas a outras áreas da esquerda. Eu próprio, que à época estava bastante distante do PCP, integrei a direção da Associação de Amizade Portugal-Polónia, com Luiz Francisco Rebelo, Jacinto do Prado Coelho, Jorge Peixinho, Maria Lúcia Lepecky e Carlos Eurico da Costa.

Não tenho a menor indicação sobre qual era a orientação política de Mário Moniz Pereira, mas posso presumir que, com toda a legitimidade, não se revisse no proselitismo esquerdizante daquelas áreas. É que um dia, Moniz Pereira surgiu, numa inesperada conferência de imprensa, a anunciar a criação de uma "Associação de Amizade Portugal-Portugal". Percebi a "mensagem", justificada pela necessidade de tentarmos gostar mais de nós mesmos e que funcionava como um irónico contraponto aos ventos então dominantes. Era precisa alguma coragem para surgir a público com essa proposta, apreciando ou não o caráter ligeiramente provocatório da mesma. A partir desse dia, passei a ter muito maior consideração por Mário Moniz Pereira.

domingo, julho 31, 2016

A utilidade marginal


Há dias, num quiosque na praça da República, em Viana do Castelo, comprei uma revista francesa, apenas porque trazia na capa o anúncio de que vem aí, daqui a poucos meses, uma nova aventura do "Blake & Mortimer". 

Claro que a autoria destes novos episódios já não pertence ao traço genial de Edgar P. Jacobs, mas, com altos e baixos, estas sequelas continuam a ter a sua graça. E eu, sem falha, continuo a comprá-las.

Sou fã, desde sempre, desta série de banda desenhada. Considero mesmo que "O Mistério da Grande Pirâmide" é talvez o melhor album de BD de sempre - mas aqui sei que estou a entrar num terreno que se presta ao debate. Os "tintinófilos", os admiradores de Astérix e Lucky Luke e, principalmente, os fanáticos do Corto Maltese não me perdoarão, eu sei! Como me dizia, há semanas, olímpico, um destes últimos: "Pratt é ouro!" 

Este texto, contudo, não busca a polémica, embora talvez lhe não escape. 

Como qualquer pessoa, quando estou a ler, pela noite, um livro que me interessa muito, deixo-me por vezes ficar, por horas perdidas, com a luz acesa. Detesto contrariar o meu "vício" de leitura, mesmo que isso se note em olheiras posteriores.

Em criança, lembro-me de que o "apaga a luz!" era a inevitável e indesejada palavra de ordem. E porque a banda desenhada era, a par dos Salgari e dos Verne, o meu regular alimento noturno, os meus pais cometiam, noite após noite, esse imperdoável "crime" que é interromper uma aventura imaginária juvenil.

Um dia, numa das minhas férias anuais em Viana do Castelo, olhei para uma cómoda em casa da minha avó e descortinei sobre ela uma pequena estatueta de Nossa Senhora, presumo que de Fátima. Era daqueles modelos fluorescentes que, depois de apagada a luz ambiente, refletem, por minutos, uma declinante claridade. Já estão a imaginar, não estão? A partir daí, havia alguns minutos de "prolongamento", de leitura sob os lençóis. 

Difícil foi justificar perante os meus pais aquela súbita "fé" em Nossa Senhora, que me levava a "requisitá-la" para a minha mesa de cabeceira. Só anos mais tarde lhes revelei a utilidade marginal que descortinei para aquele símbolo de uma religião com a qual, na vida, nem ao de leve me encontrei.

sábado, julho 30, 2016

Conversas no Pereira (1)

- Já viste o rebuliço que vai na direção dos mídia? 

- É verdade! É a TSF, é o Público, é o DN... Tudo com diretores novos. 

- Achas que, no fundo, vai mudar alguma coisa? 

- Duvido. Mas, confesso, a mim só me interessa que não mude a direção de um único jornal.

- Qual é?

- É o "Diário da República"...

Férias grandes


Começavam sempre num dia como o de hoje. Um sábado de fim de julho ou início de agosto. Dia em que, nesse tempo, toda a gente partia de férias. Tenho memória viva do imenso calor ao atravessar, a pé, a ponte metálica, a caminho da estação de Vila Real, onde o meu avô materno se ia despedir de nós, metendo discretamente no meu bolso algumas notas de vinte escudos, que me aguentariam as "extravagâncias" nesse mês que começava. Depois era a hora de viagem na linha do Corgo, com receio das faúlhas do carvão, no meio do fumo da máquina que nos invadia nas curvas, que nos entravam pelos olhos e que deles só saíam com uma incómoda operação de alívio, feita com um lenço, pelos pais. Comprados na Régua os rebuçados às mulheres de avental branco, a sede por eles provocada matava-se umas estaçōes adiante, quando surgia à venda a água fresca, em bilha de barro ("Água e bilha, quinze tostões!"). Já entre o Porto e Viana, ficou-me para sempre a imagem insólita do comboio parado por instantes, inclinado em curva, na estação de Nine - a primeira palavra em inglês que o meu pai por aí me ensinou. Passava-se o tunel do Tamel e regressava a memória contada da família. Fora por ali que o meu bisavô paterno tinha morrido, ainda no século XIX, caindo de um muro, numa rixa brava, a defender uns ingleses, envolvidos nas obras do túnel, e que se haviam recusado a ajoelhar à passagem de uma procissão (será o jacobinismo hereditário?). Num filme saltitante e entrecruzado através dos ferros da ponte de Eiffel, com Santa Luzia ao fundo, surgia finalmente Viana, então ainda sem o famigerado prédio Coutinho. No cais, invariavelmente, estava à nossa espera, prescutando a carruagem certa, o meu tio Tone, com a restante família a aguardar no hall da estação - porque, por esses tempos, era necessário comprar "bilhete de gare" para ter acesso ao cais. Em "corta-mato" pelas ruas estreitas, para escapar ao calor, descia-se finalmente até à rua de Santa Clara, à casa grande do largo Vasco da Gama (dizem-me que mudou de nome), onde nos esperava o sorriso acolhedor da minha avó.

Depois, era a rotina: a praia diária no Cabedelo, as tardes na praia Norte (para "apanhar iodo") ou no Barco do Porto, as Festas, as brincadeiras com os primos, um mês diferente dos outros onze. Férias grandes? Grandes férias! 

sexta-feira, julho 29, 2016

Uma equação fácil

Se tivessem sido aplicadas sanções a Portugal, a culpa era do governo, não era? Não haveria bicho careta fora da "geringonça" (e alguns dentro dela) que não achasse que teria sido uma grande derrota para António Costa. Estamos de acordo nisto, não estamos?

Pois muito bem, passemos então à frente. Não houve sanções. Então, por um raciocínio de lógica meridiana, se não houve uma derrota para o governo, houve uma vitória para o governo. Nestas coisas ninguém empata (é como a gravidez: ninguém está "um bocadinho" grávido). 

Será que, neste caso, os potenciais críticos, no caso de um resultado diferente, estarão preparados para felicitar o primeiro-ministro do seu país por aquilo que constituiu, sem a menor sombra de dúvida, uma vitória de Portugal? E uma vitória é, apenas e simplesmente, o contrário de uma derrota, ou a lógica é uma batata.

E há o Brexit, lembram-se?

O folhetim das sanções obnubilou, na comunicação social, a restante política europeia. E ela existe.

Ninguém pode prever, com um mínimo de certeza, os efeitos que, da anunciada saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE), resultarão para os diversos países que fazem parte do “clube”. Uma coisa é certa : o abandono da segunda economia da União, também o seu segundo contribuinte líquido, a sua primeira potência militar, um relevante membro do G8, com lugar permanente no Conselho de Segurança, não deixará de ter consequências no equilíbrio dos “vinte e sete” restantes - também no orçamento, também nos fundos comunitários. As consequências serão assimétricas entre os Estados membros, pelo que a posição de cada país no quadro negocial que aí vem não será necessariamente a mesma.

Há uns meses, os líderes europeus ofereceram ao RU um conjunto de “facilidades”, que reforçavam as muitas “exceções” de que Londres já beneficiava. Fizeram-no já à luz daquilo que era o denominador comum dos interesses a salvaguardar. Na altura, tratava-se de proporcionar a Londres peças para um argumentário que pudesse convencer os seus eleitores a decidirem-se pela permanência na União. Com o Brexit, esse compromisso caducou, mas nele não deixam de estar representados alguns dos pontos que nos interessam no futuro.

O Brexit será sempre um desastre para a UE. E pode sê-lo para nós. Há assim que consensualizar linhas que permitam à diplomacia atuar com uma retaguarda política sólida. Resta esperar que as clivagens políticas não debilitem oportunisticamente essa nossa ação externa.

Há interesses específicos que Portugal tem de cuidar, naquilo que vier a ser o saldo da negociação que aí vem. Mas, atenção!, quem fará essa negociação não somos nós, é a União, através da Comissão, pelo que é na definição do respetivo mandato negocial que o essencial dos nossos interesses ficará, ou não, preservado. Ter a ilusão de que é possível bilateralizar com a “Velha Aliança” algumas questões seria uma imensa ingenuidade. Aliás, só agravaria as nossas debilidades e fragilizaria a nossa posição.

Como sempre acontece nas relações externas da UE, importa transformar os nossos interesses em interesses europeus. Eles situam-se, no essencial, nas questões que decorrem dos temas da livre circulação de pessoas e suas consequências, nomeadamente em matéria das políticas sociais. É aí que devemos concentrar esforços e isso passa, desde já, por identificar os parceiros comunitários que comungam dessas preocupações, com os quais há que constituir, desde muito cedo, uma rede pontual e específica de alianças.

O maior erro que Portugal poderia cometer no quadro desta negociação seria esperar para ver o projeto de mandato que a Comissão irá apresentar ao Estados membros, na sequência da invocação por Londres do artigo 50° do Tratado de Lisboa, que, cedo ou tarde, aí virá. É a montante dos primeiros esboços desse mandato – que todos sabemos estar já a ser esquissado no seio da Comissão – que a diplomacia portuguesa deve atuar. Se o fizer isoladamente, Portugal está condenado a um rotundo fracasso, dada a sua fragilidade e irrelevância, nos dias que correm, na máquina europeia. Para ser eficaz, a intervenção de Portugal tem de ser imediata, junto dos Estados membros com problemas similares, avançando com propostas concretas que a Comissão deva acolher no seu mandato, gizando posições comuns possíveis, onde os nossos interesses (também) estejam refletidos. É preciso que a diplomacia portuguesa entenda que a negociação do Brexit já começou. Ontem.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Negócios")


Vem aí um país melhor!

A senhora, já de uma certa idade (a minha?), deslizou subtilmente para o lado contrário do balcão do café, fugindo a colocar-se no final da fila, na qual esperavam duas japonesas e uma nórdica com cor estival de lagosta.

O neto, aí com uns oito anos, um pouco à distância, reagiu, alto:

- Ó avó! A fila não é aí! 

A senhora, embaraçada, olhou em volta, esperando que ninguém tivesse reparado no aviso cívico do neto. Depois de uns segundos de hesitação, decidiu permanecer no lugar onde estava, porque isto ser ser golpista de filas está no ADN de muitas gerações.

Foi então que a neta, mais pequena, aí com uns quatro anos, "dez reis de gente", saiu da companhia do irmão, estendeu a mão à avó, puxou-a e, em silêncio, levou-a para o fim da fila. 

A senhora ficou com um sorriso amarelo e não gostou, estou certo, do meu, que a olhei de frente, deliciado com a prevalência geracional da ética. Vem aí um país melhor!

Foi ao final da manhã de hoje, na estação de Campanhã, no Porto.

"Evasões"


Na revista "Evasões", que hoje é distribuída com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias", publico uma nota gastronómica sobre o restaurante "Aleixo", no Porto, cujo texto poderá consultar aqui.

Justiça financeira


O espetáculo dado pelas instituições europeias, ao longo das últimas semanas, relativamente a um eventual processo sancionatório a Portugal (e à Espanha) por incumprimento, em 2015, dos limites de défice das contas públicas face às metas previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento, teve contornos patéticos. Não me interessa aqui a questão de fundo, mas apenas a lamentável forma desse processo.

Foi impressionante ver essas entidades convertidas em fautoras de um processo de dramatização que, qualquer que viesse a ser a sua resultante final, funcionaria sempre como um “name and shame”, com a óbvia certeza de isso acabar por ter efeitos deletérios na apreciação dos mercados. Uma prova disso? Ontem mesmo, a não aplicação das sanções reduziu fortemente o “spread” das nossas taxas de juro, o que significa que o “ruído” europeu tinha contribuído para as fazer subir.

Se, no final de contas, tudo veio a resultar na não fixação de uma sanção, que sentido teve então toda aquela coreografia – da Comissão para o eurogrupo, desde para o Ecofin e volta –, o espetáculo das declarações ameaçadoras, a estranha mistura dos “desvios” de 2015 com as desconfianças relativas a 2016? 

Dir-se-á que é a “liturgia” do processo europeu. Talvez, mas compete às instituições proteger os interesses dos Estados e não atuar de forma a não prejudicá-los, como danos colaterais da bizarria do seu mecanismo decisório. 

Há já bastantes anos, fui testemunha silenciosa de uma curiosa conversa. Um ministro das Finanças e um seu adjunto, que aliás haveria um dia de ascender a esse mesmo lugar, louvavam a ideia do Banco Central Europeu e teciam loas àquilo que consideravam ser o futuro automatismo das políticas financeiras da moeda única. Ficou-me esta frase: “Vai funcionar um pouco como na justiça. Também haverá códigos, com penas correspondentes aos delitos cometidos. O importante, neste caso, é retirar qualquer margem de discricionaridade, que pode existir na avaliação das pessoas mas não pode prevalecer no caso do comportamento dos Estados. Mais do que a justiça humana, a justiça financeira deve ser cega”.  

Era assim que a mentalidade liberal via o mundo. E, provavelmente, ainda vê. Desta vez, a “justiça financeira” não foi cega. A Comissão foi forçada a assumir a sua responsabilidade política, ao decidir o óbvio e ao não arriscar adotar uma medida cuja dimensão seria imensamente desproporcionada face à quase irrelevância da falta e ao impacto social que teria. Mas, tal como os ministros nos conselhos europeus, atuou, ao longo destas semanas, com uma leviandade que revela bem quanto as instituições europeias constituem hoje uma parte muito significativa dos problemas desta Europa.

quinta-feira, julho 28, 2016

Secretos

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, as telegramas qualificados de "secretos" têm, como é natural, uma distribuição muito limitada, que segue a regra britânica do "need to know".

Um pouco antes de deixar o posto em Paris, procurei saber se um determinado colega, em Lisboa, tinha lido um "secreto" que eu tinha enviado, dias antes. Cuidando em não falar pelo telefone da substância do texto - o que infringiria as chamadas "regras de cifra" - eu queria ter a certeza de que o telegrama lhe chegara, porque sabia que o assunto, por razões que não vêm ao caso, lhe interessava. Recordo que foi um pouco difícil contactá-lo, tendo a minha secretária apurado que só era possível encontrá-lo em casa. Estranhei, mas foi isso o que foi feito.

- Olha lá! Viste um "secreto" que há dois dias mandei para aí?

Resposta pronta:

- Ó homem! Então não sabes que eu já estou aposentado? Para mim, agora, secretos só de porco...

(Republicação de um texto aqui editado em 22.10.2011)

Remakes


Até início de setembro, sem prejuízo de textos novos que a atualidade proporcionar, tenciono republicar alguns textos antigos, que por aqui já surgiram há alguns anos, mas que talvez ainda "sobrevivam" a uma segunda leitura.

quarta-feira, julho 27, 2016

Ainda as sanções

No dia 12 de julho, há precisamente duas semanas, ainda antes da reunião dos ministros europeus das Finanças, escrevi por aqui isto:

"A minha leitura (...) leva-me a concluir, depois do "eurogrupo" (ministros das Finanças dos países do euro) de ontem, que o Ecofin (ministros das Finanças de toda a UE) irá propor sanções (o facto de ser anunciado que será "por unanimidade", exceto o próprio país em causa, significa que Portugal votará a favor de sanções à Espanha e vice-versa) que caberá depois à Comissão decidir no detalhe. 

Porque Portugal e Espanha não são masoquistas, quer-me parecer que o "deal" passa por aprovar o princípio das sanções e ter a garantia (já negociada com a Comissão) de que essas sanções serão iguais "a zero". 

Fica salva a "honra do convento" e, na prática, as sanções são teóricas e sem incidência orçamental. Os países mais radicais ganham a aplicação do princípio e os "faltosos" a não punição efetiva.

Uma hipótese que sempre me pareceu implausível, no atual contexto (Brexit) seria uma "linha dura" no Ecofin reclamar sanções efetivas, obrigando à "recolha" de votos para conseguir uma minoria de bloqueio. Nem os tempos estão para isso, nem o "mood" da Comissão dava garantias de que esta pudesse "obedecer" substantivamente a um conselho de ministros "severo" (mesmo com "instruções" de Berlim).

Aliás, as conclusões do colégio de comissários de há dias já apontavam no sentido da Comissão não querer o "odioso" de propor as sanções: o Ecofin que as decida politicamente e a Comissão lá estará para as definir (previamente deixando claro que serão igual "a zero"). A Comissão passará, por esta vez, a "bom da fita".

(...) Mas posso estar completamente enganado e acabar por não ser nada disto que escrevi. Logo veremos."

Não estava.

Os "amigos" de Marcelo


Encontro-os (mais "as", curiosamente) todos os dias (e noites). São as gentes da direita desencantadas com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Emitem ironias, encolhem os ombros, estão "cansados" com a agitação que vai por Belém. Detestam-lhe as "selfies", os beijinhos, a ubiquidade, a palavra a toda a hora. Verdadeiramente, nunca foram "marcelistas": votaram nele porque não havia mais ninguém "do nosso lado". São órfãos de um estilo que já lá vai e que identificavam com a "pose de Estado". Do que eles verdadeiramente gostavam era de um presidente que, passados os seis meses da praxe, tivesse dissolvido o parlamento e colocasse de volta quem lá estava. Marcelo não lhes fez a vontade. Todos sabiam que ele era imprevisível, mas não pensavam que fosse tão longe. Pressentem que está tentado a dar uma oportunidade à "geringonça", para esta levar até ao limite as suas hipóteses de sobrevivência, por forma a que nunca possa ser apontado como institucionalmente culpado pelas crises em que ela possa vir a tropeçar. Se o governo cair, ninguém poderá dizer que foi por culpa de Marcelo. Já o viram ao lado da Costa em momentos complicados para o executivo, com sinais de solidariedade interinstitucional que ninguém esperaria possível. Aquelas cenas de "lua-de-mel" em Paris e por ocasião do futebol colocaram a gente da direita furiosa. "É isto! Que se há-de fazer? É o Marcelo, filha!", ouve-se a gente não conformada nos "dîner en ville". Para esta nossa (salvo seja!) direita, este não é "o seu presidente". Mas não têm outro, que maçada!

terça-feira, julho 26, 2016

O prisma da vida

Há pouco, estive à conversa com um amigo de outra nacionalidade, à porta do hotel em que estamos hospedados, numa deslocação de trabalho, num país distante de Portugal. Como o hotel é para não fumadores, estávamos no exterior, numa bela (e aqui rara) noite de Verão. Ele fumava um valente Cohibas, acompanhado de um Johnny Walker Blue Label duplo. Resisti a juntar-me "num copo"; depois de um imenso dia de trabalho, tinha optado por "jantar" uma simples cerveja. Para quem já deu o fígado pela pátria, numa profissão que a isso (quase) obriga, um Scotch àquela hora ia dar-me cabo da noite. E preciso de dormir, que o dia de amanhã promete ser igualmente trabalhoso.

A certa altura, falou-se da vida dele, quadro internacional, viajante de motoristas e hotéis com bastas estrelas, turista de neve e de caçadas em África, frequentador de resorts exóticos e proprietário de bons carros, dizem-me que com uma casa de sonho. Acho interessante - por curiosidade e sem a menor inveja - olhar estes percursos profissionais de excelência, vidas entre salas "business" de aeroportos, horas intensas dedicadas a analisar os "Ebitda" e os "cash-flows", a determinar os "roic" e os "break-even" das empresas, conhecimentos pagos, claro! pelo seu real valor. E naturalmente, os luxos e prazeres da vida de que usufrui, que julgo bem merecidos por aquilo que faz. A certa altura, ele sintetizou, com "simplicidade": "sabes, há vidas mais baratas! Mas não prestam..." 

Cada um olha as coisas do seu prisma. E temos obrigação de os compreender, sem ceder à tentação fácil de, sobre as suas opções, emitirmos pretensiosos juízos de valor.

segunda-feira, julho 25, 2016

Contra o tempo


É um relógio despertador muito antigo. Da "fundação", como dizia o meu pai quando se queria referir aos primeiros anos de casado. É um Cyma, com um mostrador amarelado, ponteiros fosforecentes, de uma elegância única (idêntico ao da imagem). É um relógio pesado como, com os anos, aprendi que devem ser o despertadores, a quem temos a tentação involuntária de dar matinais encontrões e que, por essa razão, têm de ser capazes de resistir a isso. 

Quando fui estudar para a universidade, os meus pais "cederam-mo". Anos mais tarde, quando quis devolvê-lo, o meu pai disse: "Já não preciso dele. Estima-o!". É isso que tenho feito, até hoje. Está numa estante lá em casa, "a olhar" para mim. Sendo "a corda", já não dá muito jeito.

Na vida, tive vários despertadores, desde aqueles grandes, de "A Reguladora", de Vila Nova de Famalicão, que "andam" de lado, quando tocam para despertar, até umas coisas plásticas, de pilhas, que têm um sensor que os cala por minutos com a nossa voz e que, quando caem ao chão, se desconjuntam todos. Hoje tenho um relógio elétrico qualquer, comprado num "free shop", sem nenhuma graça.

Neste mesmo hotel onde hoje estou hospedado, em Varsóvia, havia nos quartos, até há dois anos, uns despertadores elétricos magníficos, pesados, precisamente do género que me convinha, isto é, dos que não zarpam da mesa de cabeceira quando, estremunhados, acordamos de sopetão. Era o despertador ideal! 

Falei na receção, dizendo que gostava de adquirir um. O empregado ficou atrapalhado, consultou um superior com elasticidade mental nórdico-burocrática e, no termo da reflexão conjunta, veio dizer-me, um pouco embaraçado, que a melhor solução seria talvez eu levar "distraidamente" comigo o relógio. Na pior das hipóteses, debitavam-mo mais tarde no cartão. Como não gosto destas "cenas", não levei o relógio. Verdade seja que, desde há um ano para cá, os quartos do hotel deixaram de ter despertadores. Terá sido a "procura"?

Mas esta nota é, basicamente, a propósito do Cyma de que atrás falei. Há algum tempo, decidi dar-lhe um banho metálico, reconstituir a fosforescência dos ponteiros, enfim, fazer um "lifting" ao relógio, por forma a "estimá-lo", como prometera ao meu pai que sempre faria. Haviam-me reconendado um determinado relojoeiro lisboeta, especializado em aparelhos antigos.

Fui lá com o Cyma e negociei com o homem o que fazer à máquina. Quando lhe perguntei quando estaria pronto o trabalho, deu-me uma resposta vaga. Deixei passar dois meses. Voltei por lá e o meu despertador estava sobre uma prateleira, tal como eu o deixara. "Passe por cá no mês que vem!". 

Deixei passar bem mais do que isso e, um dia, voltei à loja. Notei o homem um pouco abespinhado com a minha insistência e, quando, com alguma impaciência, lhe perguntei quando é que, afinal, eu poderia ter o relógio pronto, com toda a certeza, deu-me uma resposta seca:

- Ó meu amigo! Eu aqui não funciono assim, não corro contra o tempo!

Bela filosofia para um relojoeiro, pensei para comigo. E levei o relógio de volta.

domingo, julho 24, 2016

Mário Soares


O primeiro-ministro decidiu prestar ontem uma justa homenagem a Mário Soares, por ocasião da passagem do 40° aniversário da entrada em funções do I Governo constitucional, em 1976, que ele chefiou. O próprio Mário Soares esteve presente no evento, não obstante a sua debilitada saúde. Tenho muita pena que, por compromissos assumidos fora de Lisboa, me não tenha sido possível associar-me a esta homenagem.

Mário Soares é uma figura cuja grandeza histórica e relevância na nossa vida cívica se evidenciam com a passagem do tempo. É, no meu caso, também um amigo a quem devo muitas atenções pessoais e todos os exemplos que soube dar-nos, ao longo da vida.

Portugal já não poderá contar com a palavra de Mário Soares no exercício da sua cidadania. Resta-nos recolher, como ontem foi feito, testemunhos que permitam que, pela memória, o seu património cívico seja preservado e promovido.

Jorge Costa Oliveira


Por um jornal, acabo de saber da morte de Jorge Costa Oliveira.

Salvo através de raríssimas exceções, as novas gerações da Administração Pública portuguesa já não podem usufruir, nos dias de hoje, do exemplo de um escol de grandes servidores públicos, que por muito tempo foram o sustentáculo, dedicado e qualificado, da máquina do Estado português. Sou do tempo de diretores-gerais que marcaram a vida de importantes departamentos, cuja palavra tinha um peso que ia muito para além da dos agentes políticos de turno. Essas figuras não sobreviviam no lugar necessariamente por apoio político, embora algumas dele usufruíssem. Muitas das vezes, eram estes "grands commis de l'Etat" quem dignificava, pela sua colaboração prestigiada, os governantes com quem trabalhavam.

Jorge Costa Oliveira era uma dessas figuras. Cruzei-me com ele, pela primeira vez, em 1975, ao tempo em que trabalhava no Gabinete Coordenador para a Cooperação, recém-entrado na diplomacia. Costa Oliveira tinha sido um quadro superior do Ministério do Ultramar, tendo desempenhado depois relevantes funções políticas no governo de Angola, nos anos 60 e 70. Era aquilo que podemos chamar um "tecnocrata afetivo", alguém que aliava um grande conhecimento técnico na área económico-financeira a uma devoção pelos projetos de desenvolvimento, fruto de um grande amor àquelas terras, que se prolongou muito para além das independências dos territórios coloniais. Viria a ser o fundador do Instituto para a Cooperação Económica (ICE), que, com a Direção-Geral de Cooperação, constituía um dos pilares da política portuguesa de cooperação para o desenvolvimento.

Durante toda a década de 80, a minha vida profissional cruzou-se frequentemente com a de Jorge Costa Oliveira. Desde logo, quando trabalhei na embaixada portuguesa em Luanda, onde tinha a meu cargo o setor da cooperação. Depois, imediatamente após a nossa entrada para as instituições europeias, quando, já em Lisboa, me coube coordenar os temas de desenvolvimento na então Direção-Geral das Comunidades Europeias, num tempo de alguma "competição" de representação institucional com o ICE, a que Costa Oliveira presidia. Com ele me lembro de ter viajado ao Luxemburgo, a Bruxelas, aos Barbados e a Nova Iorque. Finalmente, o nosso período de convivência funcional mais intenso processou-se quando, durante cerca de três anos, prestei assessoria técnica, na área da cooperação para o desenvolvimento, ao então secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Durão Barroso. No final desse período, cheguei mesmo a ser nomeado, sem no entanto ter exercido efetivamente o cargo, por ter sido entretanto colocado no estrangeiro, para as funções de diretor do serviço de Planeamento e Programação do ICE.

Neste último período, entre 1987 e 1990, tive algumas divergências, em termos estritamente técnico-políticos, com Costa Oliveira, pessoa com quem, no entanto, mantive sempre uma excelente relação de natureza pessoal. Algumas das suas propostas não mereceram a minha concordância e, em certos casos, deixei isso expresso, por escrito, em pareceres que sei que lhe não agradaram. Durão Barroso chegou a ter alguma dificuldade em arbitrar algumas dessas questões, embora deva reconhecer que Costa Oliveira ganhou a maioria dessas "guerras".

Quando, em 1990, fui trabalhar para a embaixada de Portugal em Londres, escrevi uma carta a Costa Oliveira. Fi-lo porque queria que, no final desse período muito intenso de trabalho, em que algumas dissonâncias tinham ocorrido entre nós, não ficasse a mínima sombra no plano pessoal, em especial no grande apreço que tinha pela grande figura de servidor público que ele sempre fora. A carta de resposta que recebi de Costa Oliveira foi exemplar. Para além de todos os formalismos, Costa Oliveira dizia-me que, na realidade, nós nunca tínhamos tido reais divergências. A nossa diferença pontual de perspetivas devia-se sempre, segundo ele, ao facto de, nas posições em que nos encontrávamos, termos um diferenciado acesso às informações que podiam ajudar a fundamentar os nossos juízos. Uma grande e insuperável elegância!

Tenho muita pena pelo desaparecimento do dr. Jorge Costa Oliveira.

sábado, julho 23, 2016

Oficial de noite


Num livro que já não abria há muitos anos - e se lhes dissesse o título, compreenderiam porquê - encontrei, há dias, uma fatura de uma dormida de casal e dois jantares: noventa escudos. A data era 4 de outubro de 1974. Foi na Pousada de Santiago do Cacém, já desaparecida.

Eu era então oficial miliciano. Uma semana antes, tinha tido lugar o "28 de setembro", com a demissão do presidente da República, António de Spínola, naquela que constituiu uma significativa guinada à esquerda da Revolução de abril, com o coronel Vasco Gonçalves a reassumir a chefia de um novo governo. O ambiente pelo país estava febril, ainda a digerir as consequências políticas dos acontecimentos.

Na receção da Pousada, apresentei o meu cartão militar. Recordo-me do olhar curioso da jovem que me atendia. Os militares eram então uma "raça" muito em evidência na sociedade portuguesa.

Meia hora depois, na sala de estar, sou procurado pelo diretor da Pousada. Vinha cumprimentar-me.

- O senhor oficial não sabe a segurança que a sua presença nos traz. O pessoal anda muito nervoso com o que por aí vai e é muito importante poder ter cá uma figura das Forças Armadas. É outra segurança!

Deu-me vontade de rir. O oficial de Ação Psicológica que eu então era, sem a menor qualificação operacional e sem uma arma (e ainda bem, porque era um "nabo" como atirador), era erigido a "produtor de segurança", como se diz no jargão técnico.

Verdade seja que, ao jantar, "com os cumprimentos da Pousada", chegou-nos uma garrafa de vinho. Nada mal para o oficial "de noite"...

sexta-feira, julho 22, 2016

Zona de conforto


Não sei como é que a frase surgiu, mas já a ouço há muito tempo: "tens de sair da tua zona de conforto!". Nos tempos do "infamous" governo de Passos Coelho, e a propósito da famigerada promoção da saída dos jovens desempregados do país, então foi um fartote: não havia dia em que não aparecesse uma luminária com idêntica recomendação. Era a "audácia", a "ambição", o rasgo que recomendava o romper com a rotina e a comodidade.

Percebo que alguns, infelizmente, sejam forçados a sair da sua "zona de conforto". Mas não transformemos a reação a infaustas circunstâncias numa espécie de louvável atitude de vida. O conforto e o bem-estar, quando viáveis, devem ser cultivados e usufruídos. Se alguém sente prazer em abandonar a sua "zona de conforto". para se aventurar por terrenos mais arriscados, então é porque essa nova situação se converteu, muito simplesmente, numa sua nova "zona de conforto".

Quero aqui fazer uma declaração: adoro a minha zona de conforto, nunca tive de sair dela para ajudar a reforçá-la e ai de quem a coloque em causa.

A democratura turca

Basta olhar um simples mapa para se perceber a importância geopolítica da Turquia. Ao tempo da Guerra Fria, a NATO tinha por lá a sua principal fronteira com o Oriente (a outra era a Noruega), frente à antiga União Soviética. A Aliança Atlântica havia cooptado o país para um “mundo livre” onde as liberdades internas não constituíam uma preocupação essencial, como já acontecera com a integração do Portugal ditatorial de Salazar. Da mesma forma, também não foi impedimento o seu pendor agressivo no caso de Chipre, contra o direito internacional, prolongando uma conflitualidade “congelada” com a Grécia, ironicamente seu parceiro na organização.

A evolução interna da Turquia, onde as Forças Armadas eram o “backseat driver” da vida política, apontou por muito tempo numa direção que parecia aproximar-se dos princípios europeus. A laicidade imposta pelo poder militar, vinda dos tempos de Ataturk, favorecia a consolidação daquilo que parecia ser a progressiva institucionalização de uma democracia sem viés religioso. Na sociedade turca, fazia-se entretanto ouvir um setor favorável ao projeto europeu, no seio uma modernização social e de mentalidades que, por décadas, parecia imparável.

Alguma Europa, contudo, olhou sempre com sobranceria para as ambições europeias da Turquia. No íntimo, muitos responsáveis políticos entendiam que o mais importante era manter o “movimento” de aproximação, para sustentar a ligação do país ao “lado de cá”, deixando para as calendas a formalização de um processo de (improvável) adesão. 

A Turquia seguramente que percebia isto e um “faz-de-conta” instalou-se a partir de 1999, com o país a dispensar a pena de morte na sua legislação, para agradar a uma Europa que, à escala global, se assumia como promotora do fim da pena capital (muito embora olhasse para o lado quando alguém se referia aos EUA e, depois, à China). E as negociações para a adesão iniciaram-se.

Erdogan surgiu entretanto no horizonte político, fingindo aceitar a laicização de Ataturk mas abrindo caminho à islamização crescente das instituições. O tropismo autoritário do regime acentuou-se e as negociações de adesão foram “patinando”. Até que surgiu a crise dos refugiados (já agora, que será feito deles, nestes dias trágicos da Turquia?). A Europa, sem cerimónias nem preconceitos, “subcontratou” a Turquia para travar os fluxos que a incomodavam. Com cheques e promessas, Bruxelas (em especial Berlim) mostrou que estava conjunturalmente nas mãos de Erdogan. 

E chegamos aos dias de hoje. Que fará a Europa perante a emergência desta “democratura” – uma democracia apenas eleitoral, com contornos evidentes de ditadura? E volto ao início do texto: a importância geopolítica da Turquia sobrelevará os valores europeus?

(Artigo publicado hoje no "Jornal de Notícias")

Rockwell