sexta-feira, maio 27, 2016

Nós e a Catalunha


Daqui a dias, terá lugar em Lisboa um debate sobre a Catalunha, naturalmente centrado nas ambições independentistas que atravessam aquela autonomia espanhola. Como é sabido, com especial incidência nos últimos anos, uma vontade catalã de caminhar para a um Estado próprio tem vindo a ser afirmada com grande vigor, embora se saiba subsistirem grandes divisões internas sobre o tema.

As razões históricas da Catalunha, bem como a questão da incompatibilidade do secessionismo com o ordenamento político espanhol, são matéria de intensa polémica em toda a Espanha. Em escala diversa, essa discussão não deixa de tocar setores de outras autonomias históricas, onde, contudo, o tropismo para uma independência surge muito menos afirmado, salvo em agendas radicais minoritárias.

De há muito que entendo que, enquanto país, não nos compete assumir qualquer posição sobre o futuro constitucional da Espanha. Os cidadãos portugueses são, bem entendido, plenamente livres de se exprimirem sobre o tema, mas o Estado português, enquanto tal, tem obrigação de assumir uma absoluta neutralidade face ao modo como o nosso único vizinho terrestre define o seu futuro. Porquê? Porque Portugal terá sempre de conviver com esse futuro, seja ele o que vier a ser, pelo que constitui uma ingerência nos assuntos internos espanhóis proceder de forma diferente, como o seria Madrid vocalizar opiniões sobre uma independência da Madeira ou dos Açores. Isso inclui, naturalmente, não nos colocarmos ao lado do governo espanhol contra o separatismo catalão, contrariamente ao que, erradamente, vimos Passos Coelho fazer, em 2015.

Por isso, é apenas enquanto mero observador exterior que defendo não ser do interesse português uma independência da Catalunha, como o não seria a de qualquer outra região da atual Espanha, fosse ela o País Basco ou a Galiza. Entendo altamente perigosa uma “balcanização” da Espanha, país com cuja dimensão, na sua atual unidade, convivemos muito bem, de forma harmoniosa e amiga.

Sei que pode germinar em alguns espíritos lusos a estratégia saloia de enfraquecer a Espanha através da sua divisão. Esta leitura aljubarroteana converge com a dos que entendem que devemos à Catalunha a “distração” que, em 1640, permitiu a recuperação da nossa própria independência, pelo que essa “gratidão” deveria agora ser retribuída. Tais visões não ponderam as pulsões disruptoras que isso seguramente iria induzir em Espanha, gerando efeitos de sentido imprevisível, e por isso indesejáveis, nos atuais equilíbrios peninsulares.

Entre dois sentimentos legítimos – a simpatia de alguns pelo direito dos catalães à autodeterminação da sua região e a preservação de uma estabilidade regional que entendo que melhor protege os nossos interesses no espaço peninsular – não tenho a menor hesitação.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias") 

quinta-feira, maio 26, 2016

O mundo e a América que aí vem


Nas eleições americanas, o debate sobre política externa não costuma ser muito sofisticado. Em regra, as posições assumidas pelos candidatos têm algo de caricatural, como se houvesse necessidade de simplificar o discurso para um universo de eleitores que concentra nas questões internas as razões essenciais para a sua escolha. É na retificação das alegadas insuficiências da posição dos EUA no mundo, durante os mandatos anteriores, que se situa o eixo das propostas dos candidatos.

Obama não deixa um mundo mais seguro do que aquele que encontrou. Pode dizer-se que se confrontou com uma desastrosa herança de George W. Bush, que teve de defrontar um Congresso hostil e que tentou desenhar uma agenda internacional de retificação da imagem intrusiva e irresponsável que o seu antecessor titulara. Outros dirão que não se pode criticar Obama por ter mostrado uma atitude menos intervencionista quando, precisamente, o mundo havia criticado Bush por assumir uma agenda oposta.

Não subscrevo esta tese desculpabilizante. Obama é presidente de um país que se arroga o direito de intervir onde e quando julga útil, através do mundo, para defesa do que entende ser o direito à sua segurança, que sempre procura que seja identificada com o interesse global. Um país que assim atua tem de ser responsabilizado pelos efeitos que as políticas que desencadeia acabaram por produzir. Ao mundo que as sofre, para o mal ou para o bem, é indiferente o nome do ocupante da Casa Branca.

Pode colocar-se a crédito de Obama (e de John Kerry) a diplomacia persistente que levou ao acordo nuclear com o Irão, a distensão incompleta com Cuba, mas pouco mais, a menos que queiramos incluir como feitos o seu fabuloso discurso do Cairo e a recente e inspiradora intervenção em Hannover.

Obama decidiu manter os EUA fora dos conflitos que não traziam uma ameaça direta à segurança americana e, não abandonando uma prática vetusta, optou pela ação multilateral quando com ela podia garantir os interesses americanos, mas não hesitou em usar a ação unilateral quando entendeu necessário para os mesmos fins. Pelo caminho, não cumpriu o que prometera sobre o fecho da prisão de Guantanamo, ajudou (com Hillary Clinton) a incendiar a Líbia, manteve uma estratégia errática para o Iraque e para a Síria (o que facilitou a criação do ISIS) e deixa o Afeganistão num caos, com o Paquistão nuclear com danoi colateral. A questão israelo-palestiniana não deve a Obama nenhum avanço e, no Golfo, criou aos seus aliados tradicionais uma inédita orfandade estratégica.

A opção pelo Pacífico alertou a China e reforçou as suas tentações armamentistas, ao mesmo tempo que criou à Europa uma sensação de abandono. Na NATO e com a “nova Europa”, acabou por ser co-responsável pela desastrosa política para a Ucrânia, que deram à Rússia pretextos de segurança, “metendo no bolso” a Crimeia e sentindo-se à vontade para intervir militarmente na Síria.

Por muita simpatia que o cidadão Barack Obama nos mereça, pelas fantásticas lições de humanidade que nos deu, a sua política externa, vista de fora, foi simplesmente medíocre.

E depois de Obama? Que farão os “presidentes” Trump e Clinton?

Por entre o “bullying” discursivo de Donald Trump não se consegue detetar uma linha clara do que faria, se eleito. Para além da ideia de restaurar a “paz global”, reconstruir o poderio militar americano e “destruir o ISIS”, o programa de Trump inclui “sair” (!) da NATO, se acaso os seus aliados não partilharem melhor as responsabilidades. Recusa ainda promover o “nation building”, limitando-se os EUA a “instituir estabilidade”. Convenhamos que é pouco e longe da qualidade habitual da agenda tradicional republicana. Claro que, com o tempo, o programa será refinado, mas, por ora, é um mundo de confusões.

A “presidente” Clinton tem outras ambições, muitas delas assentes numa clara retificação das políticas de Obama, de quem, convém não esquecer, foi o primeiro chefe da diplomacia.

Com ela, a América não caminhará para o modelo relativamente isolacionista de Trump, mas para uma afirmação de liderança americana à escala global. Desde logo, contrariando as intenções russas, com um reforço militar substancial junto aos aliados no leste europeu. Os sinais vão no sentido de fazer presumir que uma administração Clinton utilizaria a Turquia como instrumento de contenção regional, em especial na Síria, num modelo novo que pode provocar uma reação russa. Fala-se da possibilidade de um investimento forte na reconstrução da Líbia, o que seriam muito boas notícias para a Europa e poderia ajudar a travar o islamismo no Sahel.

Clinton será, ao que tudo indica, uma presidente “republicana”, com uma agenda seguramente bastante tensa com Moscovo. Quer isto dizer que, com ela, o continente europeu pode sofrer tensões internas, que a “nova Europa” de que falava Rumsfelt, poderá ressurgir como o “amigo americano” europeu preferencial. Nada de novo: para quem não se lembrar, Clinton votou ao lado de George W. Bush em favor da invasão unilateral no Iraque.

(Artigo publicado hoje na edição "online" da "Sábado")

quarta-feira, maio 25, 2016

Mas isto é tão simples...

A Constituição da República determina que o ensino público obrigatório seja laico e, naturalmente, gratuito. Se o Estado, não tendo pontualmente possibilidade de facultar o direito ao ensino gratuito na rede de ensino público (onde o princípio da laicidade é sempre rigorosamente observado), tiver necessidade de subcontratar supletivamente algum ensino privado, só o poderá fazer através de escolas que preservem a laicidade imanente ao ensino público. Entregar crianças que, por lei, deveriam ter um ensino laico a escolas que observam rituais religiosos (católicos ou outros) configura um grave infringimento de uma importante liberdade constitucional, um dos fundamentos basilares da ética republicana. Por isso me pergunto se o Ministério da Educação estará atualmente a cumprir a lei. 

Como é óbvio, as escolas com matriz religiosa devem ter pleno direito de existência, por corresponderem a outro importante direito que a Constituição republicana protege - a liberdade religiosa. Muitos pais portugueses entendem que os seus filhos devem ter um ensino religioso. Quem assim entende, deve pagar para isso, da mesma forma que outros pais recorrem a ensino laico privado, também pago. Nada disto se deve confundir, contudo, com o ensino público. 

Isto parece-me tão simples e óbvio que não entendo onde pode haver dúvidas.

Portos


A escolha de Lídia Sequeira para dirigir o porto de Lisboa foi uma excelente decisão. A gestora, que já fez uma obra notável no porto de Sines, é um nome de qualidade indiscutível, que merece toda a confiança. Conheci-a, há três anos, num trabalho conjunto e deixou-me a melhor impressão em matéria de competência.

Porém, e para além disso, a tensão em torno da greve dos estivadores introduz alguma dificuldade na conjugação de apoios que sustenta o governo. Num contexto diferente, o executivo estaria de mãos mais livres para promover soluções duras e confrontacionais, à altura daquilo que os estivadores necessitariam, tendo em conta os elevados custos do seu boicote à economia nacional. Nas atuais circunstâncias, embora o PCP não tenha ilusões de que o governo venha alguma vez a alinhar com o seu seguidismo face aos sindicatos, é óbvio que António Costa não tem as mãos completamente livres para uma intervenção musculada no conflito. E é pena! É esse o preço inevitável da "geringonça"...

terça-feira, maio 24, 2016

As dúvidas liberais

Os liberais do burgo defendem o princípio do subsídio público a (algum) ensino privado.

Mas respeita a filosofia liberal haver negócios privados que, pelos vistos, só têm sucesso se pagos pelo dinheiro dos contribuintes?

Verifica-se que, na lista dos estabelecimentos de ensino privado aos quais o Estado subcontrata os serviços, pelas carências pontuais no serviço público, surgem instituições que sujeitam os alunos a práticas religiosas diárias, que a laicidade determinada pela Constituição da República não admite no ensino público.

Estará o Ministério da Educação a respeitar a Constituição ao estabelecer contratos com este tipo de escolas? Admite fazê-lo com estabelecimentos das seitas Mormon? E neste caso, onde estão os nossos liberais? Não se indignam contra este ataque à livre escolha no ensino?

segunda-feira, maio 23, 2016

Portugal e o Atlântico

Hoje, no quadro do V Encontro "Triângulo Estratégico América Latina - Europa - África", organizado pelo IPDAL, na Culturgest, a partir das 17.30 h, debaterei o alinhamento atlântico de Portugal com Paulo Portas, Bernardo Pires de Lima e Luís Marques Mendes.

domingo, maio 22, 2016

As voltas ao circuito


- Quantos circuitos poupamos com o túnel?

A pergunta, feita na madrugada de ontem, entre dois vilarrealenses, deixou perplexo o passageiro que ia no banco de trás do automóvel naquela travessia do Túnel do Marão, numa viagem entre o Porto e Vila Real.

- O que é que vocês querem dizer com isso?

Lá tivemos que explicar...

Uma certa geração de Vila Real tem na memória o percurso antigo do circuito automóvel da cidade (substancialmente diferente do atual). Eram 6,925 km, razão pela qual a distância de 7 km se tornou familiar para muitos de nós e, mais do que isso, passou a ser uma espécie de referencial de medida. Várias vezes, por exemplo, ao ver uma placa com indicação de 35 km, dou por mim a pensar que "já só faltam cinco voltas ao circuito".

Já agora: o túnel do Marão "tira-nos" mais de duas voltas ao circuito...

sábado, maio 21, 2016

O mistério constitucional do Brasil



O Brasil tem um regime presidencialista. O governo do país é dirigido pelo presidente da República, eleito com base num programa sufragado pelo voto popular. A última eleição teve lugar em finais de 2014, tendo Dilma Rousseff sido eleita maioritariamente contra a linha proposta pelo seu opositor conservador.

No modelo presidencialista brasileiro (tal como nos EUA), os candidatos à presidência apresentam-se com um vice-presidente, para uma eventual necessidade de substituição. O vice-presidente não tem um programa próprio, isto é, sendo eleito conjuntamente, compete-lhe aplicar o programa na base do qual foi eleito o presidente - a pessoa em quem os eleitores efectivamente votaram.

Para aprovar medidas de natureza legislativa, mas não para a gestão política corrente, o presidente brasileiro necessita de ter apoio no Congresso – constituído pela Câmara de deputados e pelo Senado. Contudo, a sobrevivência do governo não depende da confiança parlamentar. Em teoria, o governo não necessitaria sequer de incluir parlamentares, mas, naturalmente, o presidente segue esse princípio, para garantir uma constante base de apoio para processo legislativo.

A presidente Dilma Rousseff encontra-se suspensa das suas funções (em teoria, apenas por 180 dias), face a acusações de que teria infringido alguns dos seus deveres constitucionais. Os defensores da presidente entendem que as razões invocadas para o seu afastamento não têm um fundamento que justifique a destituição e que todo o processo não passa de um "golpe", que gritam pelas ruas. Como dizem os juristas, a doutrina sobre este tema divide-se, pelo que não quero chamar essa polémica para aqui.

Na pendência do esclarecimento das questões que envolvem a presidente, o vice-presidente da República assumiu o seu cargo. Em tese, se o Senado brasileiro concluir pela inocência da presidente, esta poderá regressar ao cargo e o vice-presidente deixará as funções que interinamente está a desempenhar. Porém, se a presidente for afastada, e o vice-presidente assumir em plenitude o cargo até ao fim do mandato, que programa está este obrigado a aplicar ? Naturalmente aquele sob o qual foi eleito, isto é, o programa cuja aprovação popular lhe permite estar ocupar o cargo.

É que, entretanto, não houve novas eleições, pelo que só pode prevalecer a vontade maioritária expressa nas urnas da última vez que os cidadãos foram chamados a tal. Mas, perguntará o leitor, e a vontade do parlamento, o sentimento anti-Dilma evidenciado ? O regime braseleiro não é parlamentar, não escolhe o governo e este não responde constitucional e programaticamente perante o Congresso.

Assim, um vice-presidente da República que assume a presidência desta forma tem legitimidade para modificar a orientação política sob a qual foi eleito? Pode um presidente nestas condições aplicar um programa que não só é decalcado do programa derrotado nas últimas eleições presidenciais como vai muito mais longe no seu afastamento face ao programa eleito?

Na realidade, se acaso há um "golpe" político no Brasil, é este.

(Artigo hoje no jornal "Público")

sexta-feira, maio 20, 2016

Venezuela



A Venezuela é uma tragédia anunciada, desde há vários meses O governo populista de Nicolás Maduro, uma espécie de “genérico” de Hugo Chavez, conduz o país a um beco que só tem saída através de uma rutura, cujo formato prático ainda está por clarificar.

Chavez era um demagogo com carisma, que  aproveitou a riqueza do petróleo, que a Venezuela tem a rodos, para lançar generosas políticas sociais que lhe grangearam apoio de setores muito fustigados pelas profundas desigualdades que sempre marcaram o país. Porque a democracia, tal como a conhecemos nas nossas sociedades, não estava nas suas prioridadades, Chavez instituiu um modelo político que fraturou progressivamente a sociedade, hostilizando quem se opunha ao meu megalómano projeto de instituir um “remake” da mitologia gloriosa de Bolívar. De caminho, viciou o país à monocultura petrolífera, que pagava as importações maciças e dispensava tudo o resto.

Chavez morreu. Sucedeu-lhe Maduro, que foi confrontado com a queda do preço do petróleo, ficando sem recursos para suportar as políticas públicas assentes num Estado pletórico, que diabolizara a iniciativa privada a arruinara o tecido económico. Sem o menor diálogo com a oposição política, Maduro optou pela bravata, acusando o “imperialismo” e os seus supostos aliados internos de todos os males do país. O passado já provou que a direita venezuelana não é “flor que se cheire”, mas a verdade é que o principal problema é a insustentabilidade prática do modelo chavista.

Esta crise política poderia ser idêntica a tantas outras que o mundo tem, não fosse o caso de viver na Venezuela uma muito importante comunidade portuguesa, maioritariamente desafeta ao atual regime, que se teme possa vir a ser apanhada no fogo cruzado que um desfecho violento venha a originar. Há muito pouco que autonomamente possamos fazer, para além de monitorizar a situação, lado a lado com outros parceiros, nomeadamente europeus, agora que o Brasil perdeu conjunturalmente qualquer “leverage” no processo.

Há quem, retroativamente, aproveite para criticar o impulso dado por anteriores governos portugueses ao reforço dos laços económicos com a Venezuela de Chavez, realçando alguns negócios que a crise petrolífera não deixou que fossem para diante. É um erro pensar assim. Os dirigentes políticos, de Sócrates a Passos Coelho, fizeram o que deveriam ter feito: garantir às empresas contratos, que criaram aqui empregos e lucros, mesmo com os naturais riscos, ao mesmo tempo que procuraram sustentar o melhor ambiente político possível de diálogo com um país que acolhia largas dezenas de milhar de portugueses. Ou alguém já pensou no que, entretanto, poderia ter acontecido se acaso Lisboa tivesse atuado de outra forma?


Migrações e refugiados


As repercussões políticas, sociais e económicas dos fluxos migratórios, ligados a crises humanitárias, é um tema que preocupa hoje crescentes setores da sociedade portuguesa, os quais procuram acompanhar e analisar as diferenciadas respostas surgidas no contexto europeu e, muito em particular, refletir sobre a atitude portuguesa face a este fenómeno, olhando o futuro. Nos diversos fóruns de debate em que tenho participado nos últimos anos (políticos, económico-financeiros, culturais e sociais), noto que estas novas dimensões da crise emergem cada vez mais como relevantes nas preocupações das pessoas, que cada vez mais se dão conta de que, no contexto europeu onde tudo isto converge, como dizia Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado".

Na 4a. feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, com a secretária de Estado Margarida Marques e Rui Pereira, debati a "Ambivalência da Europa perante o drama dos Refugiados", com moderação do jornalista Ricardo Alexandre.

Ontem, no Centro Nacional de Cultura, com o general Martins Branco e com José Manuel Felix-Ribeiro, sob moderação de Rui Vilar, abordei o "Êxodo para a Europa, em especial o modo como aquela realidade afetou o projeto europeu, procurando trabalhar algumas respostas.

Em ambas as ocasiões, entre outras considerações, exprimi a opinião de que se está a pedir à Europa respostas muito complexas, talvez demasiado ambiciosas para o seu atual grau de integração, que se situa aquém do forte tecido de políticas que seria exigível, face à gravidade de uma situação que se repercute de forma diferenciada nas agendas nacionais. A Europa que hoje temos estava apenas preparada para uma "gestão corrente" mas, claramente, não tem dimensão institucional que lhe permita responder a crises graves, em especial se estas surgirem, como estão a surgir, de forma cumulativa, provocando fortes tensões numa rede de políticas incompletas, onde se cruzam responsabilidades europeias com reservas nacionais de competência soberana. Isto é válido para os refugiados como o é para a crise do euro ou as tensões securitárias em torno de Schengen, entre outras coisas.

Uma questão que abordei nos dois debates prende-se com as responsabilidades portuguesas, para deixar uma palavra de orgulho pela atitude do nosso país, desde as entidades oficiais à sociedade civil. Embora saibamos que algumas condições particulares colocam Portugal ao abrigo de alguns dos efeitos mais dramáticos nesta crise, a posição assumida pelo nosso país desde a primeira hora, com uma reação em uníssono do espetro partidário, conferem-nos autoridades para podermos reclamar uma clara e prestigiante posição de "benchmark" no contexto europeu.

Alguns dirão que tudo isto não passa de palavras trocadas, não entendendo o caráter pedagógico deste tipo de ações, desprezando a formação de redes ativas de atenção perante os problemas e as suas sequelas, multiplicadoras do sentido de um sentido de responsabilidade solidária que importa estimular. A estes arautos de sofá, que esgrimem cinismo e crítica fácil, eu pergunto, muito simplesmente: estão a fazer melhor? 

quinta-feira, maio 19, 2016

Os desastres e as tragédias

O desaparecimento sobre o Mediterrâneo de um avião da Egyptair que fazia o voo entre Paris e o Cairo (fiz essa viagem num voo da mesma companhia, há poucos anos) é um desastre mais para a história da aviação mas é uma tragédia humana para quem dele é vítima, bem como para as respetivas famílias.

Desta vez, a tragédia abateu-se sobre um qualificado colega com fortes responsabilidades numa empresa de cuja equipa de gestão faço parte. Para os seus familares deixo aqui uma mensagem amiga de simpatia e pesar.

terça-feira, maio 17, 2016

Nós e a Venezuela


A situação atual que se vive na Venezuela tem levado alguns comentadores a criticar o reforço das relações bilaterais entre os dois países na última década, em que se empenharam os governos Sócrates, bem como os que se lhe seguiram.

Este é o momento para deixar bem claro que a ação promovida por esses executivos teve todo o sentido e merece ser saudada. Mesmo que alguns dos negócios não tenham tido sucesso - e a vida dos negócios é assim -, bastantes outros houve em que empresas portuguesas retiraram fortes lucros dessa atividade, com o que isso significou de postos de trabalho e salários para muitos dos seus colaboradores. Olhando para trás, pouco haveria a corrigir face ao que foi feito.

Na sua relação com a Venezuela, Portugal comportou-se sempre de uma forma correta. Que eu tivesse dado conta, nunca os dirigentes políticos portugueses deram nenhuma "caução" política ao populismo do regime, nunca vimos a diplomacia portuguesa transigir em matéria de princípios, por um qualquer viés ideológico induzido. Claro que José Sócrates procurou reforçar os seus laços pessoais com Hugo Chavez e é óbvio que se procurou que isso fosse lido publicamente no quadro de um entendimento, tão forte quanto possível, entre Portugal e a Venezuela, um país onde vive uma importante comunidade portuguesa e com o qual surgiram, à época, hipóteses interessantes de negócio. As relações de amizade entre Portugal e a Venezuela existiram antes de Chavez e vão sobreviver para além de Maduro.

(Um dia, em Paris, durante um encontro de membros de comunidades portuguesas em vários países, uma senhora luso-venezuelana, residente em Caracas, profundamente anti-Chavez, disse-me que ficara desagradada por ver o presidente venezuelano recebido "como um amigo" em Lisboa. Perguntei-lhe o que poderia acontecer à nossa comunidade se acaso Portugal tivesse uma atitude hostil para com Chavez. "De facto, isso poderia ser muito mau para nós", reconheceu).

Fizemos o que tínhamos a fazer com a Venezuela, da mesma forma que atuámos, e bem, ao manter um entendimento positivo com a Líbia de Kahdafy, com a qual todo o mundo teve relações económicas intensas até à véspera da sua queda. É o mesmo que hoje se faz com José Eduardo dos Santos ou com qualquer dirigente que, de facto, dirija um qualquer país junto do qual surjam oportunidades de negócio - a menos que sobre ele recaiam sanções internacionais obrigatórias ou em que entendamos dever participar, como aconteceu face ao Irão e ainda ocorre face à Rússia. Assim será no pós-Dilma: continuaremos a ter um entendimento aberto com Michel Temer no Brasil ou com qualquer outro governo brasileiro que nos "saia na rifa".

Não somos nós que escolhemos os governos dos outros e, salvo um banimento internacional decretado, damo-nos, não com um dirigente ou um governo em particular, mas com os Estados. E, naturalmente, procuraremos estabelecer com os dirigentes "de turno" nesses Estados, qualquer que seja o seu nome, as melhores e mais próximas relações. E quando estiver em causa a defesa de interesses portugueses ou de portugueses, a "realpolitik" é sempre a regra básica e imutável a seguir. 

Não perceber isto é ter da vida internacional ou uma visão "angélica" ou uma perspetiva de má fé política, ancorada em ranços ideológicos, de esquerda ou de direita. Cada um que escolha o que melhor lhe convier.

A tragédia do chavismo

Tudo indica que se aproximam momentos de extrema tensão na Venezuela. A liderança de Nicolás Maduro revela-se incapaz de encontrar soluções de natureza económica para superar a crise e a obstinada colagem ao poder deste sucedâneo de Hugo Chavez, que insiste em cortar todo o diálogo com a oposição, arrisca o país a uma catástrofe. 

Não nos pode indiferente esta crise grave numa Venezuela onde vivem centenas de milhares de portugueses. E a nossa impotência revela bem o que é a dificuldade de ação de um país como Portugal, sem meios para poder ser relevante numa questão que afeta um número muito substancial dos seus nacionais.

Maduro tem sido um presidente incompetente, mas os erros vêm de trás. Hugo Chavez e o seu sonho bolivariano, um socialismo populista cujo declínio seria acentuado em tempos mais recentes pela drástica quebra do preço do petróleo, desenharam um modelo político-económico assente no setor público, reduzindo sucessivamente espaço à economia privada, que passou a viver acossada e sob suspeição, mesmo o pequeno comércio onde operam muitos portugueses.

Nos tempos em que o petróleo alimentava os sonhos de Chavez, o Brasil era um dos grandes beneficiários das compras que a Venezuela fazia ao mundo. A balança comercial desequilibrou-se de tal forma em favor das importações oriundas do Brasil que, um dia, numa reunião bilateral em Caracas, segundo me foi contado por um ministro brasileiro presente à cena, Lula disse a Chavez algo como isto:

- O Brasil está a ganhar muito dinheiro com as exportações para a Venezuela e, à luz dos nossos interesses imediatos, eu provavelmente não deveria estar a dizer-te isto. Mas a verdade é que, a prazo, esta situação é insustentável para vocês. Não podem continuar a importar quase tudo aquilo que consomem. Há imensas coisas que poderiam produzir vocês mesmos. A Venezuela tem de criar empresas produtoras de bens essenciais.

- Tens razão! Estamos a pensar nisso. Vamos criar várias empresas públicas para a produção de bens de consumo.

- Mas eu não me referia a empresas públicas! Eu falava a dar espaço a empresas privadas, a capital estrangeiro. Há empresas brasileiras que podem estar interessadas em instalar-se aqui. Mas tens de lhes dar garantias, segurança para investimento.

A reação de Chavez foi imediata e inequívoca: 

- Privados? Não, privados não! Não queremos por aqui mais privados! 

segunda-feira, maio 16, 2016

Mezinhas


Leio hoje na imprensa que o governo pretende legislar sobre alguns falsos "medicamentos" que por aí se vendem. Não tenho a certeza de que isso vá ser conseguido e que essa vontade vá muito longe.

Há semanas, numa viagem de automóvel, durante várias horas, tive o cuidado de acompanhar numa determinada emissora de rádio repetidos e variados "spots" de propaganda a uma determinada "mezinha". A acreditar nos bem treinados intervenientes, muitos disfarçados de clientes "satisfeitos", o produto fazia bem a quase tudo, desde o funcionamento do aparelho digestivo ao colesterol, diminuía a diabetes e era deixada uma pouco subliminar sugestão de benefícios anti-cancerígenos. Tudo isto, para além de um monte de outros "benefícios" colaterais. A tramóia seguia a regra tradicional das estratégias publicitárias ("se ligar na próxima meia hora, recebe duas embalagens e paga menos x"). Só não era credibilizada com pessoas com bata e óculos, a "armar ao sério" e em fundo de "laboratório", porque não havia imagem. No resto, desde a música suave às vozes "redondas", com testemunhos de uma maioria de mulheres, como convém, estava lá tudo.

Posso avaliar o efeito apelativo que este tipo de publicidade desonesta deve ter em gente idosa ou fragilizada por doenças, em pessoas angustiadas em tentar tudo  possível, a quem estas mixórdias são impingidas, a preços que não tão baratos como isso. Dir-me-ão que, em muitos casos, se trata de placebos. Mas então, se assim é, é bem pior: estamos perante uma falcatrua. Se o "medicamento" não pode ter efeito, há que denunciar isso? Ninguém atua? Porquê? O Infarmed não pode fazer uma denúncia? As Ordens dos Médicos ou dos Farmacêuticos nada fazem? A DECO não lança campanhas televisivas ou radiofónicas contra isto, agora que o preço da publicidade anda de rastos? Não há quem proteja os consumidores no aparelho governamental?

Receio muito que pouco vá acontecer. Porquê? Porque, por exemplo, algumas dessas miseráveis peças de publicidade parecem-me ser o sustentáculo de uma certa estação que, pela música que emite, surge dedicada a pessoas de idade e que é dependente de um grupo que parece ter, de há muito, bênção divina.

Nestas questões é que eu gostava de ver ativa a vontade "fraturante" do Bloco de Esquerda. Não em relação aos alucinogénios ou às drogas falsificadas, mas às vigarices que atingem pessoas idosas ou doentes.

António Gomes da Costa


Acabo de saber que, por motivos pessoais, António Gomes da Costa deixou a presidência das várias instituições luso-brasileiras a que, por várias décadas, dedicou a sua vida e o seu empenhamento pessoal. Na história da comunidade luso-brasileira, poucas pessoas podem ombrear com António Gomes de Costa na sua devoção à tarefa de proteger, no Brasil, e com persistência, o bom nome dos portugueses, a dignidade da história lusa, a promoção da amizade entre os dois povos. Fê-lo através da sua intervenção cívica, da sua palavra na imprensa, da sua ação de acompanhamento, de direção e coordenação dessa notável rede de instituições, que em tempos foram geradas pelos portugueses no Brasil, fantásticos exemplos de realizações de que todos temos obrigação de nos orgulhar. Uma obra que é pena que não seja mais conhecida do que é, tanto por portugueses como por brasileiros.

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, para assumir as funções de novo embaixador português, Gomes da Costa sabia que tinha à sua frente alguém de quem estava bastante distante no plano das ideias políticas. Por razões que não vêm aqui para o caso, e que o curso histórico ajuda a explicar, há setores da nossa comunidade no Brasil nos quais permanece uma afetividade ao tempo que precedeu a rutura política ocorrida em 1974. A circunstância dessa comunidade ter passado a integrar, após o 25 de abril, figuras do mundo político e económico que então buscaram refúgio no Brasil, face aos ventos revolucionários que, à época, sopravam em Lisboa, criou por ali um caldo de cultura conservadora que, como é natural, muito marcou a matriz política de algumas - ainda que não de todas - as instituições luso-brasileiras. Acresce, nesse contexto, que muitos portugueses que viviam até então na África tutelada pelo regime português, e que, em desespero, foram viver para o Brasil, reforçaram com naturalidade esse sentimento. Isso é simbolizado, até hoje, em alguma iconografia de figuras do Estado Novo que sobrevive nos salões de muitas dessas instituições, memória de um passado que alguns entendem dever continuar a reverenciar. Como é do seu pleno direito.

Um embaixador de Portugal é o embaixador de todos os portugueses que vivem no país onde está acreditado. Representa o chefe do Estado, a República e a democracia, mas tem de entender que pode haver, na comunidade desse país, quem tenha ideias que contrariam os valores que lhe cabe afirmar e promover. Isso não o deve impedir de tratar esses portugueses como quaisquer outros, porque a tal o obrigam as regras do Estado democrático que lhe cumpre defender e aplicar. Essa é, a meu ver, a superioridade moral das democracias.

É aqui que devo uma palavra de reconhecimento e muito respeito a António Gomes da Costa. Sabendo quem eu era, conhecendo as minhas ideias e as nossas diferenças, Gomes da Costa soube, com grande inteligência, desenhar um terreno de integração do novo embaixador em setores da comunidade onde figuravam muitas das idiossincrasias que referi, num entendimento subliminar onde prevaleceu sempre o muito que nos unia - o interesse de elevar o nome de Portugal e da dignidade da comunidade luso-brasileira. Recordo, como uma memória muito positiva, os muitos momentos gratificantes que passei nessa segunda "embaixada" portuguesa que é o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em eventos de diversa natureza, ao lado de António Gomes da Costa, que aí foi por muitos anos a figura referencial. E quero dar público testemunho de que, em todas as ocasiões em que procurei o seu apoio para iniciativas em que o seu auxílio podia ser necessário, obtive sempre a sua imediata atenção desinteressada - ou melhor, sempre interessada em contribuir para tudo o que pudesse ser útil à promoção dos valores portugueses no Brasil. Devo-lhe um sem número de atenções e, no momento em que abandona a sua generosa entrega às causas da comunidade, quero afirmar-lhe a minha sincera gratidão e admiração, na qualidade de antigo embaixador de Portugal.

Termino com uma nota um pouco mais pessoal. Um dia, eu e António Gomes da Costa demo-nos conta de que, em tempos comuns mas com um oceano de permeio, ambos havíamos trabalhado para essa grande instituição estatal que é a Caixa Geral de Depósitos. É assim ao meu amigo, mas também ao ex-colega, António Gomes da Costa que aqui deixo um forte abraço.

domingo, maio 15, 2016

O novo Brasil e o Mundo


Sucedendo à credibilização iniciada com Fernando Henrique Cardoso, a política externa de Lula da Silva havia colocado o Brasil no mapa dos poderes mundiais. A crise económica provocou um recuo nessa ambição e a gestão inábil de Dilma Rousseff fez "sumir" o Brasil da agenda internacional.

José Serra, o novo chefe da diplomacia brasileira, escolhido pela imagem moderada que projeta, tem uma tarefa difícil. Desde logo, compete-lhe fixar a ideia - que está longe de adquirida pelo mundo - de que o afastamento de Dilma cumpriu o espírito constitucional. Cabe-lhe ainda « vender » as inflexões drásticas nas políticas públicas que vão ter lugar e o modo como o novo governo irá controlar as reações expectáveis. Depois, tem de estruturar um novo discurso diplomático, consonante com a forte viragem conservadora interna, tornando-o compatível com o tecido de alianças preferenciais em que o "outro" Brasil tinha assente toda a sua estratégia durante mais de uma década. A vizinhança « bolivariana » fez já sentir essa incomodidade e ninguém esqueceque, há um ano, Serra chamou ao Mercosul « um delírio megalomaníaco ». Finalmente, o Brasil vai ser confrontado com os péssimos sinais que a constituição do novo governo trouxe para as políticas ambientais, para a igualdade de género e para o respeito pela diversidade.

A prevalência dos forte interesses económicos do país faz presumir que uma certa « realpolitik » acabará por prevalecer. O facto do novo ministro juntar nas suas competências o principal instrumento de promoção económica externa é um sinal claro. De uma coisa estou bem certo : por mais liberal que seja a agenda interna, não se verificará uma quebra significativa no tradicional protecionismo brasileiro, em especial com um governo abertamente promovido pelos interesses empresariais.

Serra tem alguns trunfos. Desde logo, a simpatia da máquina diplomática, onde a maioria dos quadros nunca esteve muito confortável com a agenda imposta por Celso Amorim e, depois, com a irrelevância a que Dilma condenou a casa. Vai contar também com a boa vontade potencial de algum mundo internacional, que vivia irritado com a complacência brasileira face à Venezuela, Cuba e outras derivas « sulistas », em matéria de democracia e de direitos humanos. EUA, Argentina e Chile irão prová-lo. A Europa, que não tem a menor «espinha» diplomática, irá «aos soluços», colando-se ao governo Temer se este tiver sucesso.

Uma nota final : a esquerda portuguesa tem de ter juízo. No tocante às relações Brasil-Portugal, carpir mágoas pelo fim de Dilma não é a mesma coisa do que ter saudades de Lula, que era um amigo de Portugal. Vou dizer uma verdade pouco simpática para alguns, mas que creio incontestável : em regra, a direita brasileira é bastante mais favorável ao reforço dos laços com Portugal do que a esquerda. As Necessidades sabem isso bem.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

sexta-feira, maio 13, 2016

Governo brasileiro


Que conclusões se podem retirar da composição do novo governo brasileiro?

A primeira é que este é, sem a menor dúvida, o governo mais à direita desde o fim da ditadura militar. Desde o discurso assumido aos seus integrantes, passando pelos acordos conhecidos com certos setores conservadores, nada infirma esta perceção.

Desde logo, pode deduzir-se que Michel Temer optou por um executivo muito político, que obedece em absoluto aos cânones tradicionais. Nunca terá estado em cima da mesa a hipótese de um governo com uma forte componente técnica, que poderia ser apresentada como uma resposta de responsabilidade, e até de alguma rutura com o passado recente. Tudo indica que o aparelhamento do executivo eca acomodação de fortes interesses prevaleceu, em absoluto, no seu desenho. Temer terá "costurado alianças", como se diz no Brasil, em troca de cargos. Os grandes "barões" estaduais do PMDB estão presentes ou representados, o que parece indicar que irá haver uma imediata sangria dos lugares que o PT ocupava. Curiosamente, foram feitos alguns gestos para com alguns antigos aliados de Lula, o que, contido, na lógica política local, pode não ter um significado político profundo e corresponder apenas a um "pick and choose" individualizado.

Temer terá procurado dar dois fortes sinais. 

A nomeação de Henrique Meirelles para a Fazenda (Finanças) é um recado forte aos mercados. Meirelles, um antigo quadro do Banco Boston que Lula levou para o Banco Central no seu primeiro mandato, é uma figura muito respeitada e a garantia de uma ortodoxia financeira que, no entanto, parece muito longe de ser compatível com o prosseguimento do tecido de políticas sociais que disse pretender manter intocadas. Meirelles não estará muito distante da orientação de Levy, o nome do penúltimo ministro de Dilma para o cargo, que acabou por não resistir às pressōes.

A designação de José Serra para a chefia da diplomacia é uma escolha interessante. Por um lado, compromete o grande partido da oposição ao PT, o PSDB, com a solução Temer. Embora Serra tenha "vida própria", a verdade é que o Brasil olha para ele como uma caução de Fernando Henrique Cardoso a este governo. Para o mundo exterior, José Serra é uma escolha sossegante, "a safe pair of hands". Serra, que quereria a Fazenda, terá exigido o controlo do Comércio Externo, reduzindo em grande parte o poder do ministério da Economia. Conhecendo relativamente bem o Itamarary, um ministério que sempre esteve confortável com o PSDB e menos com o núcleo próximo do PT que o dominou na última década, a escolha de Serra deve ser um alívio.

Duas notas finais.

A nomeação de Blairo Maggi para a Agricultura e de um nome fraco para o Ambiente revela o peso da "bancada ruralista" e do "agronegócio" sobre a preservação ambiental. Para certos setores ambientalistas internacionais, onde o nome de Maggi é diabolizado, isso não serão boas notícias.

Péssimo e incompreensível sinal é a circunstância do governo não ter nenhuma mulher. É uma decisão reveladora de uma imensa falta de sensibilidade política. 

O sorriso da hospedeira

A solução governativa que hoje está instalada em Portugal tem a virtualidade de nos fazer regressar à política. Basta ver o assanhamento que a questão do subsídio público a algum ensino privado trouxe para o debate para podermos constatar como eram exageradas as notícias de que a estreiteza das margens orçamentais havia esbatido, de uma vez por todas, as fronteiras entre esquerda e direita, pela imperativa imposição de um único caminho.

Já passei a fase em que alimentava o quotidiano com esse tipo de disputas, até porque, desde há muito, aprendi que há bastante mais vida para além das ideologias. Mas acho saudável que, mesmo com alguma inevitável demagogia à mistura, se abra um debate em termos de opções em matéria de políticas públicas. Considero que é um estímulo para abanar a anomia cívica que por aí anda promover um bom combate de ideias.

Este governo tem aberto a porta a que, pela primeira vez desde há muito tempo, algumas premissas, dadas como assentes no pensamento que domina o « mainstream » da nossa política, tenham sido cruzadas por interrogações. Sou crítico de algumas das agendas « fraturantes » que o Bloco tem vindo a colocar sobre a mesa. Não tanto por objeções quanto à sua razão de fundo, mas muito mais por um  juízo negativo sobre a sua oportunidade, face a uma opinião pública que pode ter alguma dificuldade em achá-las conformes com a hierarquia da sua agenda de preocupações. Porém, tenho de reconhecer que, sem essa pressão « à esquerda », o PS português dificilmente abandonaria o espartilho de « neutralização » ideológica em que caminhava e que hoje marca muita da social-democracia europeia. 

Há, contudo, duas grandes questões a que só o futuro responderá e ambas se interligam. A primeira é saber se a adoção, cada vez mais evidente, de uma governação política mais à esquerda irá, ou não, alienar setores do tradicional eleitorado socialista, ao mesmo tempo que os louros dessa deriva progressista são colhidos pelos seus parceiros. A segunda questão é o « teste do algodão », isto é, se, no final de contas a « geringonça » funciona ou não, naquilo que verdadeiramente interessa e que não é tão pouco como isso : retoma do crescimento,  redução do desemprego, melhoria significativa da condição de vida dos mais pobres, sustentação das políticas públicas essenciais, enfim, um Estado social eficaz com o bem-estar das pessoas no seu centro.

Para já, perante alguma inevitável perplexidade face aos números económicos que por aí surgem nas últimas horas, sigo a velha regra que adoto nas viagens aéreas, em ocasiões de turbulência : olho para a cara das hospedeiras. E, até ver, António Costa continua a sorrir.

quinta-feira, maio 12, 2016

Fernanda Câncio

Creio que nunca encontrei pessoalmente Fernanda Câncio, a jornalista do DN que foi namorada de José Sócrates. Apenas falámos telefonicamente duas vezes: aquando de um perfil que estava a redigir sobre uma efémera figura política da nossa praça que era minha conhecida e a propósito da comunidade portuguesa em Paris, depois dos atentados terroristas de há meses. Aqui entre nós, reconhecendo que escreve bastante bem e tem uma frontalidade e uma coragem não despiciendas, estou muito longe de fazer parte do "clube de fãs" das suas cruzadas pelo "politicamente correto" em questões de género e outras temáticas "fraturantes", em que se soma, com regularidade, à agenda obsessiva do Bloco.

Escrevo motivado pelo longo artigo que Fernanda Câncio ontem publicou na "Visão", onde descreve, com pormenor, a saga em que se vê envolvida nos dias que correm, por ter sido arrastada para todo esse magma de lama que dá pelo nome de "Operação Marquês". Li aquilo e não quis acreditar. E não sei o que mais me chocou: se o reino kafkiano em que se tornou o nosso sistema de justiça (e de injustiças), um polvo à solta, aproveitado por alguns e que se projeta como uma séria ameaça sobre todos; se a canalhice de alguma dita comunicação social, confrades profissionais de Fernanda Câncio. Noto esta frase significativa: "Não tenho forma de ganhar esta guerra porque o simples facto de a travar significa que já a perdi". Os patrulheiros que só leem "as gordas" e estão à coca de tudo quanto possa favorecer o caso contra o antigo primeiro-ministro desiludam-se: de nada do que Fernanda Câncio diz no texto se pode inferir qualquer juízo sobre a inocência ou culpabilidade de Sócrates - tema que não é para ali chamado.

Repito: não conheço Fernanda Câncio mas, depois de ler o que escreveu, quero daqui deixar-lhe a minha solidariedade. Ela não precisa dela para nada, mas a mim faz-me falta dar-lha para ficar de bem comigo mesmo.

quarta-feira, maio 11, 2016

Os pontos no "i"

A jornalista que me contactou, cujo nome não notei, foi simpática e educada. Disse-me que falava do jornal "i" e pediu-me uma declaração sobre um determinado assunto, que não cheguei a deixar que explicitasse. 
Foi ontem à tarde e a minha resposta foi imediata: "Tenho muita pena, minha senhora, mas, para o jornal "i", não falo. O seu jornal, há semanas, fez uma notícia falsa e em tom de baixa intriga a meu respeito e, não obstante eu ter escrito de imediato ao vosso diretor, não só não corrigiu o título na plataforma online como não teve a delicadeza de me dar uma resposta. Por isso, não falo para o "i"".
jornalista, que se mostrou conhecedora do assunto que havia motivado a minha indignação, foi correta e não insistiu. E eu fiquei de bem comigo mesmo. Há dias felizes, não há?

terça-feira, maio 10, 2016

Dr. José Aguilar



Esta imagem tem muito de rural ou, no mínimo, de periferia urbana. E, contudo, as aparências iludem. O caminho que aqui se vê não está, em linha reta, a mais de cem metros do centro da cidade de Vila Real. Era por ali que eu ia para a escola primária. Era assim Vila Real.

Descobri ontem esta fotografia (e copiei-a com o iPhone), numa exposição organizada pelo Museu do Som e da Imagem de Vila Real, que reúne trabalhos fotográficos antigos do dr. José Aguilar, um dos escassos nomes da advocacia local desse tempo, figura desaparecida já há 35 anos.

José Aguilar era uma personalidade bastante interessante, um profissional destacado do foro, com obra ficcional publicada, muito bom cultor da língua. Tinha um perfil físico caraterístico, que sempre me evoca a imagem que criei do brasileiro urbano que via na "Manchete" ou na "Cruzeiro": homem ligeiramente avantajado, escasso cabelo puxado para trás, bigodinho fino, elegantemente vestido, creio que fumador de boquilha (mas posso estar enganado). Usava chapéu e recordo bem a sua figura a passear na avenida onde ficava o seu escritório ou a passar, pausado, nos corredores do "Club" da terra. Tinha um tom de voz algo roufenho, que o filho homónimo herdou.

Há alguma razão particular para me lembrar desses pormenores de um advogado de Vila Real? Provavelmente, muitas pessoas da minha geração terão gravadas na sua memória impressões idênticas: sobre o dr. José Aguilar bem como sobre algumas escassas dezenas figuras dessa Vila Real de então. Não muitas mais. Porque a cidade - e era assim em Vila Real como o seria certamente em Viseu, Leiria ou Portalegre - "eram" essas figuras. 

Vila Real era um mundo muito pequeno, claramente identificado nos seus contrastes, em que alguns nomes sobressaíam e, com naturalidade, marcavam a paisagem urbana que o miúdo de então que eu era iria fixar para sempre. Havia uma meia dúzia de advogados na cidade, uma dúzia de médicos, um grupo maior de professores do liceu cujos nomes todos conhecíamos, ao lado de outros profissionais de destaque. Eles eram o "establishment", uns com mais poder e influência, outros relevados pelas importância local das suas ocupações. Eram algumas dezenas de personalidades conhecidas, do comércio à função pública, do exército aos "proprietários" ou "capitalistas". Alguns eram intelectuais nas horas vagas, gente que dava umas horas à escrita e às ideias, como era o caso do dr. José Aguilar.

Pergunto-me o efeito que projetará nas novas gerações vilarrealenses uma exposição como aquela que ontem visitei, para além da curiosidade da descoberta, nas imagens, de pedaços reconhecíveis da cidade muito diversa em que hoje vivem. É que a graça que achamos à reportagem fotográfica do nosso passado é sempre irreproduzível e não é transferível. Por mim, devo dizer que passear pela Vila Real da objetiva do dr. José Aguilar me "rejuvenesceu", deu-me bastante prazer e dá-me agora o ensejo de enviar à sua família, em especial ao Zé e ao Jói, um abraço de velha amizade.

segunda-feira, maio 09, 2016

A universidade dos guizos

Na sua imperdível coluna no DN, o meu amigo Zé Ferreira Fernandes refere-se hoje a uma antiga "universidade" para carteiristas, que a tradição coloca no Porto, nos anos 50. O jornalista situa-a na Areosa; a minha versão, já com décadas, dava-a em Ermesinde, ali ao lado.

Segundo rezam as crónicas, os discentes eram nela ensinados com um espantalho, cheio de guizos, de cujas vestes aprendiam a "aliviar" os tansos, sob a orientação especializada de velhos cultores da arte, useiros e vezeiros das multidões das feiras da região.

(Não deixa de ter graça um facto bem real: na linguagem dos carteiristas, o primeiro contacto com a vítima, quando o "operador" procura detetar a parte do corpo onde está a carteira, chama-se precisamente "toque do guizo". Por que será?)

Ferreira Fernandes relembra hoje esta história, a propósito da famosa "Quina", uma carteirista de 86 anos que, desafiando as regras da aposentação, teima em continuar a exercer a sua atividade, o que a obriga a regulares e menos simpáticos encontros com a polícia.

Ora o "Correio da Manhã" - esse órgão de "formação" que dá alento ao dito de que "o crime compensa" - informa que "Quina" mora precisamente... em Ermesinde! E esta, Zé Ferreira Fernandes?!

Stalin


Chegou cedo, sentou-se numa das primeiras filas. Há muito que o vejo fazer isso, nos colóquios a que por ali costumo assistir ou participar. Sempre engravatado, de fato escuro, ar grave. É uma figura, podemos dizer "histórica", de um grupo de extrema-esquerda que, por uma persistente e quiçá injusta falta de apoio popular, nunca atravessou as portas do parlamento. Os textos que ainda hoje subscreve no site do grupo, a cuja liderança regressou há pouco, não enganam: mantém-se fiel às raízes, ao passado, às figuras referenciais da ideologia que o guiam desde há muito.

Nesse dia da passada semana, eu falava num colóquio a propósito da Europa (e hoje é o dia dela). A certo passo, para melhor ilustrar a ideia de que o medo ao comunismo foi uma das forças que ajudou a cimentar a unidade europeia do pós-guerra, repeti uma graça "batida": "Não foram só Schuman e Monnet os grandes impulsionadores da Europa comunitária. Uma certa "gratidão" neste domínio é também devida a Stalin". Instintivamente, do podium, atravessei a sala com um olhar e vi o velho revolucionário agitar-se claramente na cadeira, erguendo a cabeça, fitando-me severo, ao ouvir a referência, que, sei lá!, deve ter sido interpretada como desrespeituosa para com o "pai dos povos" - como um amigo brasileiro costuma referir-se-lhe, entre a brincadeira e o sério. Fiquei curioso.

Josef Stalin foi uma figura que mobilizou emocionalmente milhões de pessoas, antes, durante e depois da guerra (que acabou fez ontem 71 anos), durante a qual titulou a liderança da União Soviética. Não vem para aqui chamada qualquer avaliação sobre a sua figura histórica, odiada e amada em doses maciças. Nunca fui tocado pela admiração pela personagem, que acho, no entanto, de recorte fascinante. Um dia, obriguei um grupo de embaixadores da OSCE, numa visita à Geórgia, a fazerem um desvio até Gori, terra onde Stalin nasceu e onde havia uma sua estátua numa praça, que eu queria fotografar. Mas já não encontrei aberto o "Museu Stalin", para minha arrelia eterna. Detesto perder estas oportunidades, confesso.

Mais recentemente, em Moscovo, deparei com uma manifestação cheia de bandeiras vermelhas, com foices e martelos, e decidi que era um ensejo raro de ver de perto uma reunião pública do único partido que por ali nunca fora impedido de existir, desde 1917. Numa das área do comício, havia uma banca com pins e objetos de antiguidade comunistas, desde velhos exemplares da Pravda e do Izvestia (e um facsimile do Iskra) até estatuetas e imagens de todo o género de Lenine. Aproximei-me e pedi: "Stalin!". Pensei oferecer uma lembrança a um amigo que vivia em Paris e cujas reiteradas invocações de Stalin mereciam a oferta. Vi a perplexidade espelhada na cara dos vendedores. Seria uma provocação? Olharam para o meu ar de turista e deduziram que deveria ser um estrangeiro ainda tocado pelo "grande Stalin". Um minuto depois, trouxeram um pin, de lata manhosa e claramente feito há pouco tempo, por que me pediram uns imerecidos rublos. Ali, logo atrás da "Casa dos Sindicatos", junto à muralha do Kremlin onde a uma sua discreta estátua, que poucos notam, continua a figurar, a memorabilia disponível de Stalin não estava claramente à altura.
  
O Partido Comunista Português foi, como todos os seus congéneres, bem estalinista até tarde. Lendo os textos do PCP nota-se que o seu "phasing-out" do estalinismo, sendo relativamente rápido para os ritmos do partido, não incorporou uma forte autocrítica e não foi marcado por uma "diabolização" da figura de Stalin. Aliás, nos sectores mais profundos do comunismo português, sempre me pareceu ter ficado uma marca residual de grande respeito, quando não mesmo de afetividade, pelo líder que conduziu a URSS nos anos trágicos da agressão nazi.

Há pouco tempo, durante um colóquio em que intervim numa cidade do Alentejo, comentei que o traçado das fronteiras de algumas Repúblicas da Ásia Central, que, vai para pouco mais de uma década, visitei e estudei com algum pormenor, parecia ter sido feito por Stalin com o deliberado propósito de fragmentar etnias e estabelecer um jogo fragilizante de tensões regionais. No final do colóquio, um velho comunista tomou a palavra e criticou a minha interpretação sobre a "perversidade" de Stalin, que achou deslocada e sem sentido, embora me parecesse que desconhecia, por completo, a realidade concreta que eu tinha abordado.

Mas não é necessário ir muito longe no tempo e na idade dos protagonistas para apreciar a adulação a Stalin. Encontrei, há pouco, nas minhas desarrumadas papeladas antigas, um texto publicado no "Luta Popular", o então diário do MRPP, no dia 2 de maio de 1975, intitulado "Vida e Obra de Estaline". É um documento magnífico, denso, adjetivado pela agitação revolucionária. Subscreve-o o "camarada Abel", uma promissora figura da "jota" do MRPP, que hoje é mais conhecido por José Manuel Durão Barroso. Deixo-lhes só esta pérola: "Onde quer que estejamos, mal se pronuncie a palavra Estaline um poderoso campo magnético isola à direita toda a espécie de oportunistas, unindo ferreamente à esquerda os verdadeiros comunistas e os autênticos revolucionários".

domingo, maio 08, 2016

Memórias das Lajes


À expectável ligeireza da memória de Durão Barroso sobre o processo político português que antecedeu a Cimeira das Lajes, numa entrevista ao "Expresso"´(link não disponível, síntese essencial aqui), respondeu Jorge Sampaio com um elucidativo e detalhado artigo no "Público". Convém ler os dois textos para formar uma opinião.

Mas, se se quiser ir um pouco mais longe, importará ler o indispensável trabalho que Bernardo Pires de Lima escreveu sobre o assunto - "A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013).

Na recensão que fiz a esse livro na revista "Relações Internacionais", assinalei precisamente o episódio Barroso-Sampaio: "No processo interno português, o mais interessante de observar é talvez a relação que Barroso foi mantendo com o presidente Jorge Sampaio sobre a matéria. O presidente, desde o primeiro momento, deixou bem claro que considerava um mandato internacional essencial para poder dar a sua “luz verde” a um engajamento formal de Portugal numa eventual ação militar. Mas Sampaio também sabia que não estava nas suas mãos evitar uma posição política por parte do governo favorável a uma intervenção unilateral americana, se esse fosse, como veio a ser, o caso. O livro acompanha muito bem este processo diacrónico, que se presume tenha momentos algo tensos. Deduz-se que Barroso teve um extremo cuidado formal com vista a não cometer deslizes que pudessem ser lidos como uma quebra de lealdade institucional ou do dever de informação. Fica a ideia de que Sampaio pressentiu, desde muito cedo, como tudo iria acabar. Barroso levou a água ao seu moínho, Sampaio salvaguardou a sua posição institucional. Tudo bem?"

Afinal, como eu intuía, não estava "tudo bem"...

Chaves


O Desportivo de Chaves regressou à primeira liga de futebol. É um dia importante para essa bela e simpática cidade.

Parabéns aos flavienses!

Encontradouro

Fiz ontem a conferência de encerramento do Encontradouro, o festival literário que juntou em São Martinho de Anta, em Sabrosa, no belíssimo Espaço Miguel Torga, desenhado por Souto Moura, dezenas de convidados e um público muito interessado que, durante três dias, acompanhou vários debates e iniciativas culturais.

Na apresentação, dedicada a "O Local e o Poder", procurei refletir sobre a génese e as mutações temporais das relações de força que influenciam os processos decisórios à escala nacional, em matéria de políticas públicas, especulando sobre a hierarquia dos poderes fácticos que se revelam determinantes em Portugal e o seu cruzamento, embora nem sempre uniforme e consonante, com os modelos institucionais que formalmente gerem o país.


Tive um grande prazer em poder colaborar com uma excelente iniciativa, num dia importante para os transmontanos, escassas horas antes da abertura do decisivo Túnel do Marão. Na minha intervenção, e a esse propósito, não deixei de constatar que "fica provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça..."

sábado, maio 07, 2016

O local e o poder

Acho que quando alguns dos participantes neste Encontradouro ouviram dizer que era um antigo embaixador na Unesco que ia encerrar este encontro - um festival literário - ninguém teve a menor dúvida de quem era o orador: Luis Filipe Castro Mendes.Pois bem, desenganem-se, não é! Talvez para o ano, seja ele a vir...


Quero começar por agradecer o simpático convite que me foi feito para estar aqui hoje.Foi já há alguns meses, creio que neste mesmo espaço, numa conversa que aqui tive com o presidente do município de Sabrosa, o meu amigo José Marques, que a ideia surgiu.


Não sou escritor, tive uma vida como cultor dessa língua terrível que é o oficiês e nunca publiquei nenhum livro, apenas editei alguns volumes de compilação de textos - o que está para a escrita como a noite está para o dia. Hoje, dedico-me a tentar provocar ondas nas redes sociais através de pequenas notas, num blogue e nessa loja dos 300 das redes informáticas que é o Facebook. Nelas escrevo sobre o quotidiano ou registo, sem pretensões, algumas memórias avulsas, que é aquilo que se dedicam os velhos, antes que se esqueçam de tudo...


No resto, a minha escrita resume-se a colunas na imprensa - e, como antes se dizia, os jornais leem-se num dia e, no dia seguinte, servem para embrulhar peixe (hoje a ASAE já nem isso deixa, imagino eu). Duas dessas colunas, porém, merecem algum destaque. São notas críticas sobre restaurantes. E assim aprendi que nos podem pagar para nos incitar a comer. Não fosse eu já ter dado o fígado pela pátria ao longo da minha carreira, acho que me passaria a dedicar a isto como modo quotidiano de vida... Aqui fica a história singela da minha relação com a escrita.


Assim, e não obstante as minhas qualificações neste domínio não rimarem claramente com este festival, fiquei muito honrado com o convite e aproveito para felicitar vivamente o Município de Sabrosa e este fantástico Espaço Miguel Torga, e organizador científico do evento, Francisco Guedes, pelo êxito evidente desta iniciativa.


E, já agora, devo confessar que não esperava que o governo "da Nação", como antes se dizia, se tivesse dado ao cuidado, num ato de extrema gentileza, de abrir, precisamente hoje, o túnel do Marão, com o objetivo de facilitar a minha deslocação... Mas registo a amabilidade do gesto, como é natural... Fica hoje provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça...


Mais a sério, aproveito para saudar todos quantos aqui vieram colaborar com a sua presença e a sua palavra, - alguns meus amigos, outros pessoas que me habituei a admirar - neste magnífico exercício cultural. A sua participação é, em si mesma, um elogio à coragem e à louvável ambição desta terra, que se orgulha de aliar Magalhães a Torga, ao lançar uma iniciativa desta dimensão, juntando artes e letras - como se dizia noutros tempos. A ousadia de Sabrosa foi assim muito bem correspondida, uma vez mais.


Pelas razões que já referi, a mim, que encerro estes trabalhos, colocou-se-me a interrogação sobre que tema deveria aqui abordar. Surgiram-me várias ideias, mas nenhuma, confesso, ligada à literatura, porque se há coisa que aprendi com a vida foi a não me meter por caminhos que não domino. Também pensei abordar o tema dos diplomatas e da literatura, mas achei melhor não me meter por aí, para não ter de elencar colegas, o que é sempre polémico.


Assim, decidi revisitar uma questão que sempre me fascinou: a ligação do local ao nacional, numa perspetiva de gestão de poder, abordada através da questão do peso relativo das cidades. Isso pareceu-me adequado aqui, em Sabrosa, uma terra que, com iniciativas como esta e com espaços desta natureza, procura romper a fronteira, mudar a geografia, de uma certa forma elevar o local ao nívelnacional. São assim alguns comentários soltos sobre este tema, em jeito nada académico e numa perspetiva assumida de sociologia empírica, que vos vou aqui deixar.


Há um lema que ficou famoso, atribuído ao político americano Tip O’Neill, segundo o qual “toda a política é local”. A ideia é bastante simples, como todas as boas ideias: nas decisões públicas, o impacto na proximidade é aquele que, no final de contas, determina o essencial da sua perceção.


Não é correto inferir daqui que a formatação de uma vontade política, à escala nacional, é apenas um somatório dos interesses expressos pelas realidades locais. Porém, a verdade é que, nas democracias mais representativas e em que a “accountability” se faz mais perante os eleitores do que perante os líderes partidários (pelo resulta claro que não estou a falar de Portugal...), o fator local prevalece nos interesses mais relevantes a salvaguardar pela comunidade.


Basta pensar em Estados com estruturas regionais, sejam de natureza federal ou não, para sermos levados a concluir que a dimensão de proximidade se constitui hoje como uma componente essencial de legitimação da ação política.


E, como é óbvio, as cidades situam-se no centro dessa mesma realidade. Eu não sou um especialista em cidades, sou apenas um mero utente delas. Faço as contas. Na minha vida, morei, sempre por alguns anos, em dez cidades, de dimensão e importância muito diversas - de Vila Real a Nova Iorque, de Oslo a Londres, de Luanda a Paris, do Porto a Brasília, de Viena a Lisboa.


Mas se todas essas experiências foram marcantes e me ajudaram a olhar o mundo de outra forma, a verdade é que ser um cidadão com um estatuto diplomático nos retira sempre alguma riqueza, em matéria de imersão cívica, que só a cidadania local nos poderia conceder.


Talvez por isso, um pouco como os emigrantes que se focam no que deixaram para trás, tive sempre o cuidado de me manter muito atento a Portugal e às nossas cidades, à sua especificidade, à identidade que projetavam no passado e ao que agora projetam. Há décadas que viajo por este país, conheço-lhe todas as suas cidades, a esmagadora maioria das vilas e, aqui entre nós e com imodéstia, quase tudo aquilo nelas vale a pena na sua rede gastronómica - uma das riquezas culturais que é preciso saber explorar. Agora, regressado de vez a Portugal desde há mais de três anos, mantenho um olhar ainda mais atento, até na dimensão retrospetiva, sobre as cidades portuguesas que melhor conheço.


Talvez por ser oriundo da província, daqui de Trás-o-Montes, tive sempre uma perceção muito nítida da diferença que existe entre as nossas cidades, da evidente hierarquia que entre elas se estabelece, seja em riqueza, cultura e qualidade de vida, seja no modo como elas conseguem objetivar a expressão dos seus interesses relevantes à escala nacional. Acho, aliás, talvez porque é um dado tido por adquirido e que se torna banal, por fazer parte da nossa paisagem de todos os dias, que o poder diferenciado das cidades continua a ser uma das componentes pouco trabalhadas da nossa cultura democrática. Desde logo, porque sendo uma realidade histórica - ligada à geografia, à demografia, ao PIB e a variáveis sócio-económicas - ela teima em persistir mesmo para além dos regimes.


Nascido em Vila Real, recordo, desde muito jovem, o modo peculiar como, durante o Estado Novo, a afirmação da realidade política à escala local se fazia junto do poder central. O modelo era muito interessante, porque, perante uma evidente escassez de recursos públicos para acorrer, por exemplo, a necessidades de equipamentos para a melhoria das condições de vida, esse modelo assentava numa espécie de pequenos lóbis, centrados em figuras com projeção “lá em baixo”, em Lisboa, as quais conseguiam, alegadamente a custo, através dos seus contactos privilegiados, convencer os decisores centrais a alocarem alguns financiamentos. Era assim que aparecia dinheiro para estradas, escolas e fontanários ou outro tipo de equipamentos que, de alguns maneira, pudessem reduzir os custos de perifericidade.


Estamos perante um modelo muito primário, quase rústico, mas que tinha a superior "vantagem", se assim se pode dizer, no quadro da cultura da ditadura, de estruturar uma rede de subordinações, de dependências, de gerar um clima de favores, que potenciava a arbitrariedade e, por essa via, um reforço dos poderes fácticos.


Alguns objetarão que, nesse tempo, o modelo de representação de interesses “bottom-up” era esmagado pelo centralismo.A meu ver, um certo pragmatismo do poder ditatorial levava a que as coisas não fossem exatamente assim, a que houvesse uma tentativa de preservar uma certa legitimidade, assente numa suave presença da vontade local, através da relativa audição das personalidades de relevo ou dos dirigentes nomeados.


Voltando à minha terra, ali a Vila Real, numa escala diferente e muito menos poderosa, era também assim que se passavam as coisas. A cidade, como todas as outras, não dispunha de uma representação sufragada pelo voto, e, muito em especial, não tinha interesses económicos fortes na sua proximidade que conseguissem fazer ouvir a sua voz junto do poder político central. Mas a cidade não deixava de existir como sujeito de algum poder residual. Essas tais figuras mais destacadas de que antes falei faziam um papel de representação e, no fundo, de alguma legitimação do próprio regime junto das populações, na medida em que este fosse capaz de ser sensível a alguns anseios atendíveis.


Era um mundo mesquinho, pequeno em todos os sentidos, miserável no método e ridículo na forma.
A cidade era isso: era o Governador Civil (escolhido por ter alguma ligação local e que, de uma qualquer forma, se havia ilustrado junto de alguém em Lisboa), era o presidente da Câmara (tutelado pelo Governador, também sempre nomeado, rodeado de escassos vereadores designados da mesma forma), era o presidente local da União Nacional, eram uns escassos deputados “da Nação”, como então se dizia. A isso se somavam, nesse tempo e no caso de Vila Real, umas tantas figuras, quase sempre com um diploma ou um titulo ou, na falta de estes, com alguns cabedais, na expressão da época. Tínhamos, além disso, um general e um padre com bons contactos. E por ai ficava a nossa "massa critica" de influencia.


Este modelo, com maiores ou menores adaptações, com mais mais ou menos padres, generais ou doutores, era o retrato do poder da generalidade das cidades que eram capitais de distrito. Abaixo desse nível, as coisas era menos expressivas e a vontade local tinha muito maior dificuldade em fazer ouvir-se.


Eu referi Vila Real, mas, mantendo-me neste Norte, poderia falar de Bragança, onde preponderaram nomes como Trigo de Negreiros, Camilo de Mendonça ou Gonçalves Rapazote. Ou de Chaves, ou de Mirandela ou mesmo de pequenas aldeias - daquelas que os escritores gostam de utilizar no fim das introduções dos seus livros, para dar um toque de ruralidade lúdica.


Mas há muito outros casos por esse país. Nesta análise impressionista, acho que, fora da escala Lisboa-Porto, uma cidade, ainda nortenha, como Braga constitui, com Coimbra, um dos melhores exemplos de um modelo de expressão política local com algum sucesso de representação de interesses à escala nacional, naquele tempo da ditadura. Não sei se esse privilégio se deve à duvidosa honra de ter sido o ponto de partida para o golpe militar de 28 de maio - daqui a dias alguns saudosos comemorarão, pela certa, os 90 anos passados sobre esta data - mas a estátua de Santos da Cunha lá está em Braga, como uma espécie de “instalação" da expressão política local.


E até o nosso novo presidente gosta de se reivindicar nos seu afeto ao clube da terra (que tem a grande virtualidade de se chamar Sporting), de que parece que aprendeu a gostar quando o respetivo estádio se chamava 28 de maio.


Mas falemos também de Coimbra. Coimbra foi, durante muitos anos, um fenómeno muito particular. É que, muito para além das dimensões materiais, Coimbra funcionou, durante o Estado Novo, como um original centro de produção simbólica do poder. O facto do ditador ter por lá nascido politicamente, entre borlas, capelos e beatas, e muito do pessoal político da ditadura ter sido daí recrutado (o que era comum à República, bastando lembrar SidónioPaes e Afonso Costa), conferiu a Coimbra uma centralidade política que ia muito para além do seu real estatuto enquanto cidade. É claro que muito do pessoal dito "de Coimbra" não era de lá, era da província, mas era o carimbo académico coimbrão que lhe dava esporas de ascensão potencial na ladeira da governação. No fundo, pode dizer-se que Coimbra era representada em Lisboa pela sua Universidade – o que também nos deve ajudar a refletir sobre o modo como algumas instituições podem, elas próprias, moldar as urbes onde se situam e fazê-las projetar em círculos mais alargados.


E isto conduz-nos necessariamente ao penúltimo dos exemplos, ao Porto. Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia consegue obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto tinha, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.


Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismoesclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político. Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: “o Porto trabalha, Lisboa diverte-se” -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro “novo” de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril.


Porém, o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo. Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a revelar a fraude da abertura marcelista.


Mas foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu relativo isolamento político.Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou muito cedo para a partilha do poder político central.E por lá tem ficado, há uma décadas de forma bastante mais influente, nos tempos que correm apenas através de alguns “tokens”, que às vezes parecem destinados a garantir uma presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, eu imagino que a pergunta deve surgir: “E do Porto, quem é que se põe?”. Eu sei que pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas é esta parece ser a realidade. Desta vez, no novo governo, o Porto não se pode queixar... Porém, não obstante a inegável excelência de muito do pessoal político que os governos foram buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real da cidade no jogo político nacional.


Mas Porto desenha um outro modelo curioso, sendo quase um “case-study”. Refiro-me ao seu perfil reivindicativo. A cidade do Porto assume sempre um discurso tenso, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa.


Com regularidade, o Porto convoca os poderes económicos e os nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de permanente batalha virtual com Lisboa. Porém, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo levar a água ao seu moinho de vento, melhorar o aeroporto, ter as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna é sempre capaz de arrancar.


Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque é verdade que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa. Só que o Porto, por muitas queixas que tenha, consegue, apesar de tudo, ter uma capacidade reivindicativa, e uma capacidade de imposição, muito maior do que todas as outras urbes de província.


Por uma evolução perversa do processo de construção do poder em Portugal, as cidades, enquanto tal, perderam peso, deixaram de ter uma capacidade para se projetar no centro das decisões. Algumas figuras, mais mediáticas ou influentes nas maquinas partidárias, conseguem compensar isso. Mas muitas cidades estão longe de o conseguirem. Hoje, o poder que resta às cidades - e, contudo, não é tão pouco como isso! - é a expressão do poder local, como forma de representação paralela e até, às vezes, de contra-poder ao executivo central, o qual, tendo álibis convenientes para não respeitar a lei das finanças locais, costuma jogar a gestão dos fundos comunitários como uma espécie de “saco azul”. Ora a gestão dos fundos é uma reserva de discricionariedadeque, como é sabido, encontra sempre artifícios técnicos para, como se diz no meu Ministério dos Negócios Estrangeiros, “proteger os amigos, atacar os inimigos e, aos outros, aplicar a lei”. Sem o país sob formato regional, onde poderiam encontrar um espaço de recriação e controlo de alguma “devolution”, as cidades são assim quase obrigadas a viver nesta relação tensa de forças, como todos os dias se vê no muro das lamentações que é a comunicação social.


É claro que, no final deste roteiro sobre a afirmação das cidades, Lisboa é um caso atípico. Capital do país, o seu município beneficia imenso do facto das instituições nacionais estarem aí centradas. Não apenas as instituições de natureza política, mas todas as restantes dimensões que se acolhem no local de onde emana poder, das grandes empresas à Gulbenkian, das principais universidades à comunicação social relevante. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "the powers that be".


Uma capital é sempre uma cidade diferente, que ganha nacional, e até internacionalmente, um protagonismo que é produto dessa centralidade muito particular. Há quem veja no autarca-mor de Lisboa uma espécie de ministro, umas vezes "sombra", outras vezes iluminado pela cumplicidade com o poder central, mas sempre acima dos seus pares. Pode usar-se a presidência do município de Lisboa como passo para uma putativa chegada a Belém. Ora a Câmara do Porto não parece ser o caminho certo para tais voos, como ainda há meses se viu. E isso faz toda a diferença.


Digo isto apenas para tornar uma vez mais evidente que persiste, no Portugal contemporâneo, uma hierarquia entre as cidades. Isso é talvez inevitável. Só o que não é inevitável é que essa hierarquia se reflita, por virtude modelo de organização e funcionamento das políticaspúblicas em Portugal, na limitação dos cidadãos e das instituições para afirmarem, à escala nacional, os seus interesses. E isto conduz-nos à questão fundamental: numa sociedade democrática, será normal que os cidadãos possam ver parte substancial dos seus interesses subalternizados apenas pelo facto de provirem de urbes com menor peso?


Estamos perante um problema de harmonia do tecido nacional que tem de ser pensado. E só pode sê-lo se conseguirmos garantir que a organização sociedade cívica respeita, cada vez mais, o principio da subsidiariedade - isto é, a necessidade das decisões deverem ser tomadas a um nível o mais próximo possível dos sujeitos a que respeitam. E isso implica duas coisas: uma eficiente (e respeitada) lei das finanças locais e uma nova organização da responsabilidade do exercício das funções de Estado, através de um quadro muito claro dos níveis desejáveis de descentralização do poder local.


Fica por discutir a questão sobre se tudo isso não deveria articular-se, num modelo de novo tipo, num quadro regional. Esse é um tema que vai continuar a andar por aí, porque, não obstante podermos considerar que o tempo não será o mais adequado para o suscitar, a racionalidade aponta para que seja esse modelo aquele em que as cidades, num quadro de desigualdade e desequilíbrios territoriais como o que temos atualmente em Portugal, encontrariam o seu espaço ideal de expressão de interesses, simultaneamente com a preservação das suas singularidades.


Deixo-os com esta interrogação sobre a regionalização. Mas também com a ideia de que não é possível desenhar um equilíbrio à escala nacional, em que os interesses de todos os cidadãos estejam protegidos, sem que o país seja capaz de entender que, a nível local, emergem hoje, em alianças institucionais que passam muito para alem das fronteiras, iniciativas que fazem hoje parte da nova identidade de Portugal.


Volto à ideia com que comecei. O essencial é quase sempre local. O sucesso ocorre no aproveitamento inteligente daquilo que nasce das comunidades, onde se cultiva a respetiva diferença, onde se estimula o novo - às vezes ligado ao antigo, mas preso ao quotidiano e pressentido como tal por quem vive perto ou quem se sente próximo. Esta é a verdadeira riqueza de um país, ao que me, também hoje aqui em Sabrosa, foi dado observar.


Sabrosa, 7 de maio de 2016

O fundo da reforma

A quem se atrever a dizer que, num mês, este governo não fez nada que se visse, deixo esta impressionante imagem de uma reforma de fundo - l...