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domingo, outubro 04, 2020

Há 25 anos

Tinha regressado da embaixada em Londres, um ano antes. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde era subdiretor-geral, coordenava, entre outras coisas, as questões institucionais da União Europeia, a caminho da revisão do Tratado de Maastricht. Esse era então um dos dossiês mais delicados da nossa ação europeia.

Um dia, creio que de maio ou junho, desse ano de 1995, o meu colega João Lima Pimentel, que eu sabia muito próximo do líder socialista, António Guterres, disse-me que este gostaria de ter uma conversa comigo. Eu não o conhecia.

Não tinha, aliás, qualquer proximidade com o Partido Socialista. Nem sequer tivera curiosidade de assistir aos Estados Gerais, um exercício de abertura que acolhera muitos independentes, preparando o partido para as eleições legislativas de outubro desse ano, onde tudo indicava que poderia vir a obter um bom resultado. 

Era patente, pelo país, um cansaço da solução política que consagrara uma década de governação de Cavaco Silva. E a imagem de António Guterres surgia cada vez mais prestigiada e eleitoralmente apelativa, sugerindo-se como alternativa possível para a chefia do governo.

Numa tarde de sábado, encontrámo-nos em casa de José Lamego, figura de relevo do PS para a área externa, pessoa que eu também não conhecia. Na conversa, constatei que, tal como o João Lima Pimentel, Guterres tinha, sobre a Europa, uma ideia federalizante que se afastava substancialmente da minha. 

Começou por me dizer algo que me agradou bastante: “A mim não me interessam nada papéis do MNE, quero apenas saber as suas ideias”. Não creio ter-lhe dito logo tudo o que pensava sobre o “sonho federal” europeu que ele acalentava. À época, eu achava aquelas ideias muito perigosas...

Semanas depois, o João pediu que ajudasse a colocar, por escrito, algumas propostas sobre as relações internacionais de Portugal, para serem tidas em conta no programa eleitoral socialista. Lembro-me de, com dois amigos, ter preparado, durante um longo fim de semana de trabalho, um texto bastante completo, cobrindo toda área externa. Foi, aliás, muito fácil de construir: a política externa e europeia não era, como em geral continua a não ser, uma área politicamente muito divisiva. E também recordo o desagrado com que, logo que foi publicado o programa, vim a constatar que não havia por ali uma linha sequer daquilo que nos tinha levado essas horas de trabalho. Tomei nota, mas não pensei mais no assunto.

No dia 1 de outubro de 1995, votei no PS, claro. Era a opção de que me sentia mais próximo.

Os socialistas ganharam as eleições, embora apenas com maioria relativa. Recordo-me que essa foi uma noite em que me senti particularmente feliz. Quase tanto como na noite mais bela da minha vivência democrática: a vitória de Soares sobre Freitas do Amaral, cerca de uma década antes. Em ambas, senti um imenso alívio. 

Ao final dessa noite, três casais fomos a Sintra dar um abraço a Ernesto Melo Antunes. Sentíamos que tínhamos de partilhar com aquele amigo essa hora de boa disposição. E de esperança.

Entretanto, a vida continuava, lá pelo MNE. Entre as eleições e a posse do governo mediaram 27 dias. Havia uma compreensível curiosidade sobre quem seria o ministro. Ajudei a preparar os dossiês para serem entregues ao futuro governo. 

Com o passar dos dias, começaram a chegar-me rumores de que o meu nome estaria a ser considerado para os Assuntos Europeus. Mas também corriam outros nomes, bem mais “pesados” do que o meu.

Comecei por não levar esses boatos muito a sério: eu não era militante do PS, tinha ideias um pouco “recuadas” na questão europeia, além de algumas outras, menos relevantes, divergências doutrinárias. Contudo, o conhecimento que tinha dos temas europeus não me conduzia à “modéstia’ de pensar não ser capaz de exercer essas funções. Achei que podia mesmo achar graça ao desafio. Mas deixei-me ficar no meu lugar, sem “mexer uma palha”, sem falar com ninguém. O que fosse, soaria!

Uma noite, quando jantava num restaurante na Pontinha, com a minha mulher e uma amiga, o João Pimentel avisou-me, pelo telefone: “O ministro vai ser o Jaime Gama. Amanhã, vais ser convidado para o governo!”. 

Falei, ainda nessa noite, com três grandes amigos, nenhum deles ligado ao PS, dois deles conservadores, perguntando o que achavam da ideia: todos foram unânimes em dizer-me que devia aceitar. A minha mulher, contudo, era muito refratária à ideia. Cada um desses amigos teve de falar com ela, convencendo-a a deixar-me aceitar o lugar, se acaso viesse a confirmar-se o convite. Se a não tivessem feito mudar de ideias, eu não teria entrado para o governo, claro.

No dia seguinte, ao fim da tarde, Jaime Gama telefonou a convidar-me. Aceitei. 

Logo se seguida, pedi para ver o secretário de Estado cessante, Vitor Martins, que tinha sido meu chefe até esse momento e com quem tinha uma muito boa relação. Recebeu-me no seu gabinete, surpreendido pelo inesperado da minha visita tardia. Disse-lhe que não queria que soubesse da minha nomeação pela imprensa. Recordo-me que foi com prazer que o ouvi dizer: “Fico muito satisfeito por ser você a substituir-me”. Viríamos a fazer uma transição exemplar. 

Por ali fiquei cinco anos e meio, tendo pedido para sair em 2001, em momento acordado meses antes e sem o menor drama, e apenas porque queria regressar à minha carreira profissional. Em perspetiva, acho que foi uma bela aventura política, embora talvez um pouco longa demais. Mas nunca me arrependi da opção que tomei nesse mês de outubro de 1995.

quarta-feira, junho 15, 2022

Popularidade e demagogia


Um dia de 1997, em Lisboa, durante uma reunião do conselho de ministros, António Guterres deu conta da surpresa que tinha tido, numa sua recente visita à Polónia, ao constatar que todos os seus interlocutores locais estavam convencidos de que Portugal iria ser o país que mais dificuldades iria criar aos futuros alargamentos da União Europeia. E, voltando-se para o secretário de Estado dos Assuntos Europeus que eu então era, e que ali estava ocasionalmente por qualquer razão de agenda, alertou: “Espero que, em Bruxelas, os nossos funcionários clarifiquem bem a nossa posição”. Aquela perceção não era apenas polaca: muitos dos países do centro e do leste europeu estavam sinceramente convencidos que iriam encontrar em nós um grande obstáculo à sua pretensão de se juntarem à União.

A lógica dos interesses apontava, de facto, para que Portugal tivesse uma posição muito defensiva no tocante ao efeito, quer em matéria de fundos, quem em termos de vantagens competitivas, que a presença de um elevado número de novos parceiros iria implicar. Mas António Guterres via um pouco mais longe: o alargamento era um irrecusável objetivo estratégico da Europa “deste lado”, o qual, desde o final da Guerra Fria, entendia como imperativo conseguir dar resposta ao anseio de muitos Estados “do outro lado”, recém-libertos da tutela soviética, que pretendiam ancorar a sua liberdade e o seu desenvolvimento no quadro de um projeto que, durante décadas, lhes fora mostrado como paradigma de modelo exemplar de cooperação e de integração económica e, cada vez mais, de cidadania e de valores comuns, que os “critérios de Copenhague” haviam entretanto consensualizado.

O pragmatismo não é contraditório com a ética. Portugal não poderia recusar a outros aquilo que funcionara como reforço essencial do seu próprio projeto democrático e de prosperidade, para além de que a pressão para a inclusão dos novos Estados iria, com toda a evidência, tornar-se crescente. A política europeia de Portugal, com Guterres, tendo os interesses portugueses no seu centro, tinha como filosofia essencial a partilha sincera dos interesses europeus. No tocante ao alargamento, até ao termo do processo, o nosso comportamento iria ser exemplar - e os então candidatos são hoje, estou certo, as nossas melhores testemunhas.

Vem isto a propósito da Ucrânia. Na sequência da agressão russa, Portugal, em uníssono, manifestou uma reação de repúdio a esse inaceitável atentado à soberania de um Estado independente e com fronteiras reconhecidas, dando provas concretas de solidariedade e de empenhamento, em todas as instâncias e por todos os meios que pôde colocar à disposição, desde logo na oferta de grande apoio aos refugiados. Mas, igualmente, demonstrou-o na partilha plena das decisões no seio da NATO, da União Europeia ou nas Nações Unidas. Bem como na disponibilidade de meios materiais de diversa muito natureza. Sempre achei ridículo entrarmos no “campeonato” do grau de retórica adjetivada para denunciar a invasão e criticar Moscovo, mas, até aí, o governo português, ao que me lembro, não ficou mal “classificado”.

Surgiu, entretanto, a questão de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia. Relevando de um lamentável desconhecimento da realidade, logo apareceram, em algumas capitais europeias, os defensores de um “fast-track”, de uma espécie de “via verde”, que permitisse que Kiev, saltando etapas, passasse, a breve prazo, a membro pleno da União. Entre nós, no comentário impressionista, emergiram também, por mimetismo, os promotores zelosos da ideia. Estar com o “l’air du temps” faz parte de um certo estilo de “informação”.

António Costa, desde o primeiro momento, teve a coragem de “deitar água na fervura” neste voluntarismo insensato, não se intimidando em dizer a verdade. Disse-a mesmo em Kiev, em face do presidente ucraniano, para óbvio desgosto deste. Ora um processo de adesão desta natureza não é equivalente à emissão de uma cartão de sócio de um clube, em que os membros decidem dispensar de jóia e de alguns requisitos um novo candidato que se considera desejável que possa partilhar, com rapidez, o nosso convívio. Ser parte da União Europeia é ter não apenas a vontade, mas também as plenas condições, para poder cumprir com o cada vez mais exigente acervo legislativo, até para proteção do país candidato face à feroz competição que a exposição ao mercado interno comunitário implicará.

Além disso, que já não é pouco, alguma experiência mais recente, com as derivas negativas de alguns Estados, prova que é imperativo reforçar as exigências no tocante à observância estrita das regras democráticas e do pluripartidarismo, da separação de poderes e do respeito pela independência da justiça, das regras gerais do Estado de direito, da proteção da comunicação social independente e do respeito pelos direitos das minorias. Alguém que surja a afirmar que a Ucrânia, mesmo antes de ter entrado no atual estado de guerra, cumpria um mínimo destes critérios, não pode ser levado a sério. Vou dizer isto, medindo bem as palavras: a Ucrânia está ainda muito longe de poder vir a ser um membro da União Europeia e, mais do que isso, não é ainda claro que tenha condições para o poder vir a ser algum dia. É impopular dizer isto? Talvez, mas eu digo. E é preciso que isto seja dito.

Mas não tem a Ucrânia o direito de entrar num caminho de aproximação às instituições comunitárias? Claro que sim e tem, exatamente por isso, o direito de apresentar o seu caso e de vê-lo devidamente apreciado. E, por essa razão, por simpatia com esse seu legítimo desejo, devem ser dados todos os passos que sejam possíveis nesse sentido. Mas sem quaisquer pressas, que possam ser lidas como podendo estar a “queimar etapas”, porque o ambiente emocional, que o horror da guerra nos possa e deva motivar, não nos deve fazer esquecer que há outros Estados que, desde há vários anos, com grandes esforços de adaptação interna das suas estruturas, iniciaram um caminho de aproximação às instituições comunitárias que está muito mais adiantado, o que pode e deve justificar a sua entrada mais rápida.

Imagino que por essa razão, na declaração que hoje fez ao “Financial Times”, António Costa deixou o que pode ser lido uma crítica implícita à atitude da presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, que tem vindo a dar mostras de procurar um protagonismo institucional que, lamento ter de dizê-lo, não está a respeitar o equilíbrio dos tratados europeus. Tal como, aliás, acontece com a sua colega presidente do Parlamento europeu, a presidente da Comissão parece deliberadamente querer esquecer que quem decide sobre as adesões à União é o Conselho de Ministros e os parlamentos nacionais da totalidade dos atuais Estados membros. A Comissão faz as suas avaliações e análises, mas são os chefes de Estado e de governo quem tem a última palavra. Ao proceder como procede, ao “pôr o carro à frente dos bois”, a Van der Leyen deve ser dito que deve ter consciência de que está a acicatar a potencial conflitualidade entre os Estados mais vocais e entusiastas, por razões de proximidade estratégica, com as ambições maximalistas de Kiev, e outros, nos quais Portugal se insere, que têm uma leitura mais serena e equilibrada do problema, sem que, nem por isso, se considerem menos empenhados na defesa do caso ucraniano. Até por uma razão simples, embora quiçá menos popular: defender o interesse da Ucrânia é, também, dizer-lhe a verdade.

Mas António Costa disse mais. Deixou implícito, como já antes o tinha feito, o interesse em se estudar, como Emmanuel Macron havia sugerido e o bom senso parece recomendar, a instituição futura de um espaço institucional intermédio, entre o estatuto de Estado terceiro e o de membro de pleno direito, por forma a criar um tempo de aculturação e de transição que, precisamente, possa aferir, à medida dos progressos alcançados, da possibilidade de de Estado candidato vir a obter uma integração plena, antes da conclusão da negociação dos 35 exigentes capítulos temáticos para uma adesão plena. E o primeiro-ministro português disse, além disso, algo também da maior sensatez, o facto de ser importante que a União Europeia se concentre, por ora e essencialmente, naquele que é um desiderato comum, sem a menor sombra de dúvida, sem incorrer em riscos de divisão, entre todos os parceiros comunitários: promover uma forte e empenhada ação de ajuda económica à reconstrução do país, à reforma das suas infra-estruturas, afetadas pela guerra. Essa, além da paz, que não é chamada para aqui, é a prioridade.

Volto ao ponto por onde comecei. Portugal, ao longo da sua história de presença na vida política da construção europeia, sempre revelou o maior interesse em ver as fronteiras da Europa comunitária abertas a todos os Estados que, exclusivamente à luz dos seus próprios méritos, revelem condições para poderem constituir como um valor acrescentado à expansão do projeto de liberdade, paz e desenvolvimento que subscrevemos, em boa hora, fez precisamente ontem 37 anos.

Não fazemos nenhum favor a ninguém ao proceder assim. Estamos apenas a atuar como um país que, ao longo do seu tempo democrático e com escassos sobressaltos nos vários ciclos políticos, tem do seu papel no mundo uma perspetiva solidária, o que já é uma marca e um orgulho da sua política externa. E que, nesse domínio, não recebe lições de ninguém. Nem lições, nem pressões.

quarta-feira, novembro 04, 2015

Itzhak Rabin


Em 4 de novembro de 1995, Itzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, foi assassinado por um extremista judeu, durante um comício eleitoral em Tel-Aviv. Na véspera, eu acompanhara Mário Soares a um almoço informal que Rabin lhe oferecera, na sua residência, em Jerusalem. Soares estava de visita a Israel e a Gaza, naquela que seria a sua última viagem oficial ao estrangeiro como presidente da República. Eu acompanhava-o, em substitução do MNE Jaime Gama, juntamente com a minha chefe de gabinete, Ana Gomes.

O chefe do governo israelita era um amigo antigo de Mário Soares. Como vice-presidente da Internacional Socialista, Soares lutara pela aproximação de vários governos europeus a Israel, um país que acabara de assinar acordos de paz com Yasser Arafat, sob a égide da Noruega e dos Estados Unidos. No tocante às relações bilaterais, havia sido Soares, em 1977, como primeiro-ministro, quem decidiu estabelecer relações diplomáticas a nível de embaixada entre Portugal e Israel, quebrando assim uma distância entre os dois países que vinha dos tempos da ditadura.

Nesse dia 4 de novembro, depois de Soares se ter ido despedido do presidente Weizmann, partimos de Jerusalém em direção a Gaza, em carrinhas blindadas, fortemente guardados por seguranças israelitas, Atravessada a fronteira, Yasser Arafat aguardava Mário Soares. Arafat era outra figura que tinha uma excelente relação pessoal com Soares, forjada quando, anos antes, este correra fortes riscos para o visitar, ao tempo em que estava cercado, numa zona ameaçada de Beirute. Arafat nunca esqueceu isso.

A tarde desse dia, em Gaza, decorreu num ritmo intenso, com vários encontros e visitas. Arafat ofereceu um jantar oficial a Soares, findo o qual conduziu o chefe de Estado português à "guest house" onde este se hospedava. Estávamos os três a conversar numa sala quando, de repente, entrou um militar e disse algo ao ouvido de Arafat. Pela reação de espanto do líder palestino, que se escusou e saiu, percebemos que seria algo importante. Escassos minutos passados, Arafat regressou. Tinha ido atender uma chamada do MNE israelita, Shimon Perez, que lhe havia comunicado que o primeiro-ministro Rabin tinha sido objeto de um atentado e estava ferido. Um par de minutos mais tarde, nova chamada confirmava que Rabin tinha morrido. Muito perturbado, Arafat despediu-se de nós e saiu.

Mário Soares e eu tentámos então avaliar o que devíamos fazer e procurámos contactar em Lisboa o primeiro-ministro António Guterres. Mas os telemóveis não funcionavam e só um tempo mais tarde, através de um telefone-satélite militar, viria a ser possível falar com Guterres. Recordo-me que, quando Soares me ouviu a tentar sossegar o primeiro-ministro, dizendo que estávamos bem e em segurança, retorquiu, do outro lado da sala, entre o irónico e preocupado: "Em segurança?! Este é, neste momento, o lugar mais inseguro da terra!". Naquela altura, não sabíamos quem era o assassino e a probabilidade de ser um expremista árabe era a mais provável. Soares falou finalmente com Guterres e ficou combinado que suspenderíamos a visita oficial, logo no dia seguinte.

Assim aconteceu. Nessa manhã, despedimo-nos de Arafat e atravessámos a fronteira para o Egito. Mubarak mandara uma avião buscar-nos numa cidade próxima e fomos dormir ao Cairo. No dia seguinte, Soares e eu regressámos a Jerusalém, onde representámos Portugal no funeral de Rabin. Sob uma segurança impressionante, a cerimónia iria juntar uma rara multidão de chefes de Estado e de governo de várias partes do mundo.

Um dia, talvez arranje tempo para contar, em pormenor, as histórias e peripécias dessa memorável viagem.

Rabin morreu faz hoje precisamente 20 anos. Lembro-o nesta noite fria, aqui em Varsóvia, uma cidade onde se escreveram muitas páginas trágicas da história do povo judeu.

terça-feira, dezembro 22, 2020

Notas de um intruso


O dia ia já longo. Eu madrugara, ainda em Corfu, onde estava, há uma semana, como convidado de Georgios Papandreou, à época ministro dos Negócios Estrangeiros grego, num seminário de reflexão sobre temas internacionais.

Nessa manhã, Georgios tinha-me dado “boleia”, num jato oficial grego, que nos levou daquela ilha até Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Relembro, durante a viagem, a paisagem lindíssima, límpida, sobre a costa grega e albanesa, que dificultava a concentração na conversa. De Mostar, onde eu teimei em regressar anos depois, num helicóptero militar alemão, fomos conduzidos a Serajevo, onde ia ter lugar a sessão de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Pousámos no que me pareceu ser um estádio de futebol, ao lado do que ia servir para centro de conferências. Era o dia 30 de julho de 1999.

Essa sessão reunia “o poder do mundo”, para utilizar uma expressão que, na minha infância, ouvia, usada como significado coletivo de quem realmente conta nas decisões. A capital da Bósnia-Herzegovina, cenário de uma imensa tragédia armada no passado, era talvez, nesse dia, a cidade mais bem guardada do globo.

A reunião era organizada e dirigida pelo chefe de Estado finlandês Martti Ahtisaari, que tinha a presidência da União Europeia, e o trauma da situação balcânica tivera o condão de para ela convocar as grandes vedetas da política mundial. 40 países estavam ali presentes, ao mais alto nível.

Juntei-me a António Guterres, que viajara de Lisboa acompanhado pelo secretário de Estado da Defesa, José Penedos. O nosso encarregado de negócios em Serajevo, Luís Barreira de Sousa, por artes que nunca entendi bem, com o argumento de que tínhamos a presidência europeia seguinte, havia conseguido colocar Guterres na mesa principal, junto de Ahtisaari. Com o assento destinado a Portugal dessa forma vazio, cabia-me ocupá-lo, dada a preeminência hierárquica que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus tinha sobre o da Defesa.

Sentei-me na mesa, com Jacques Chirac, figura imensa, à minha esquerda, e José Maria Aznar, de fato claro, à minha direita.

Cumprimentei ambos. Tinha falado muitas vezes com Aznar, que me conhecia bem. Embora tivesse estado já em diversas ocasiões e reuniões com Chirac, ele não fazia a mais vaga ideia de quem eu era.

Ainda a sessão se não iniciara e já o meu colega espanhol, Ramón de Miguel, surgira, de trás, a perguntar-me, ao ouvido, a razão pela qual Guterres obtivera o lugar de destaque de que usufruia no topo da mesa. Porque a solidez das razões desse “upgrading” protocolar, que lhe adiantei, não emergiam como muito convincentes, vi Aznar, logo informado, ficar um pouco mais crispado do que de costume, perdendo aquele esgar, que nele faz o lugar de sorriso, no perfil de “señorito” que os espanhóis patentearam para sempre no mundo.

Por uma qualquer razão não evidente, a sessão teimava em não começar. Notei que Chirac ficava cada vez mais nervoso. Olhava para a presidência e fazia uns ruídos de óbvio desagrado. Não dava a confiança de me perguntar nada, mas olhava, de quando em vez, de viés, para mim. “Quem será este tipo?”, devia pensar. A certo passo, sempre visivelmente irritado, talvez não tendo nada melhor para fazer, perguntou-me: “Vous êtes qui?” Declinei a minha função e a ele, sem a menor reação facial, saiu-lhe um: “Ah! Oui! Je vois!”. E continuou agitado, mexendo-se na cadeira. A certo ponto, exasperado, exclamou, num comentário geral, já um pouco alto: “Qu’est ce qu’on attend pour commencer?” E fazia gestos para o distante Ahtisaari.

Olhando com mais atenção à volta da mesa, eu tinha reparado que a delegação americana era das poucas que se mantinha de pé. O lugar dos EUA não estava preenchido. Clinton não aparecia.

Chirac não dera conta desse pormenor. Apenas achava estranho que a reunião não arrancasse. Com aqueles gestos largos que eram os seus, o homem da Corrèze, continuava, com umas onimatopeias à mistura, a “berrar baixinho”, para que se desse início à sessão. E repetia: “Mais qu’est ce qui se passe?”.

Divertido, por antecipação, com a reação que sabia que ia provocar nele, lancei, com um sorriso irónico: “Apparamment, on attend le président des États-Unis”.

O que eu fui dizer! (Eu sabia!). Chirac olhou para mim, furibundo, como se fosse eu o culpado, e exclamou: “Qui?! Ah! Non! Mais c’est pas possible!” E levantou os braços para Ahtisaari, esse mesmo já desesperado com o atraso do amigo americano.

Chirac só sossegou quando Ahtisaari se decidiu, finalmente, arrancar com a sessão. Disse umas primeiras palavras, mas logo suspendeu o discurso, olhando ao longe na sala. Fez-se um silêncio. Todos os rostos convergiram para o lugar onde ele se concentrara. Aliás, não era preciso: os flashes dos fotógrafos faziam uma bateria de luzes no meio das quais, com um sorriso beatífico, surgiu, num andar lento e bamboleante, que fazia lembrar o de Richard Gere, a figura de Bill Clinton.

O presidente americano não dava mostras de estar apressado, embora estivesse farto de saber que estava atrasado. Deu-se mesmo ao luxo, antes de se sentar, de ir cumprimentar duas ou três delegações. Ahtisaari, rotundo e nórdico, sem a menor expressão, esperava, atento e venerador, com o seu discurso suspenso (voltaria atrás).

Figurante apanhado no meio de um palco de ocasião, eu divertia-me imenso em ser testemunha privilegiada da cena. Em especial, mirava o meu vizinho da esquerda, que agora bufava, com nervosismo, um imenso mal-estar, por todo aquele rapto de protagonismo que Clinton conseguira fazer à cena. E ouvia-o rosnar, a “sotto voce”: “Alors! Ça commence ou pas?”.

Finalmente, tudo começou. Os intermináveis discursos.

Ao final do dia, regressámos a Lisboa, num C130 da nossa Força Aérea, numa viagem incómoda, com direito a uma sanduíche. Era tudo muito diferente do salmão com caviar que, nessa manhã, o hiper-inflacionado orçamento militar grego nos tinha proporcionado, a bordo do cómodo Gulfstream.

Passaram mais de duas décadas. Para a História, vale a pena dizê-lo, o Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu não deixou uma marca por aí além. Tenho alguma pena. Porquê? Ora essa! Porque um mero acaso fez com que eu tivesse estado, como singular intruso, na primeira linha do seu lançamento.

quinta-feira, outubro 06, 2016

Os vencedores


Há dois vencedores no dia de hoje: António Guterres e as Nações Unidas. 

Guterres venceu esta eleição por mérito próprio, pela sua qualidade como figura política à escala internacional. Assisti de perto ao “crescimento" de António Guterres no plano europeu, ao modo extraordinário como conseguiu projetar Portugal e defender os interesses portugueses numa União Europeia sob a tensão do alargamento e o desafio do euro. E, de forma determinante, à sua magistral gestão da delicada questão de Timor. E o mundo olhou a sua prestação como Alto Comissário das NU para os Refugiados, dando corpo ao slogan que o levara ao poder em Portugal: razão e coração. Mais recentemente, o modo como conseguiu evidenciar as suas qualidades, nas audições nas NU, não me surpreendeu minimamente. Se disso dependesse apenas a sua escolha, tinha a certeza de que dificilmente alguém o derrotaria.

E é aqui que entra também a vitória das NU. O modo como o processo de seleção do novo secretário-geral foi lançado, num modelo que favorecia a visibilidade dos candidatos e permitia fazer uma sua avaliação comparativa, era quase conflitual com o formato opaco, feito de compromissos e "toma-lá-dá-cá", que no passado vigorara. Uma decisão que, na prática, se "cozinhava" no seio dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Ao abrir este ano a um escrutínio alargado o processo de escolha, as NU prestigiaram-se. E, nestas coisas, já não se volta atrás. As NU são também vencedoras neste dia.

(Depoimento que me foi solicitado pelo "Jornal de Notícias")

sexta-feira, abril 17, 2015

Rodrigo Rato


O antigo ministro espanhol e diretor-geral do FMI, Rodrigo Rato, foi há poucas horas detido em Madrid, por acusações de improbidade.

Neste momento dramático para aquele que já foi nº 2 de José Maria Aznar, apetece-me lembrar um episódio com ele ocorrido, em 1999.

Era o dia 27 de maio. Eu estava em Paris, chegado de Londres nessa manhã, para o reunião ministerial da OCDE onde, na ausência do ministro das Finanças, Sousa Franco, chefiava a delegação portuguesa. Na véspera, na capital britânica, falando com o meu contraparte inglês, Keith Vaz, havia-me dado conta de que anteriores objeções para a nomeação de Javier Solana para Alto Representante para a Política Externa e Segurança Comum, que se sabia existirem por parte do Reino Unido (ao que se dizia, por pressão americana), tinham aparentemente "caído". Nessa manhã fora ver ao Eliseu o assessor diplomático de Jacques Chirac, Jean-David Levitte, e notara que a opção por Solana era forte. Ao almoçar, nesse mesmo dia, com o meu colega francês, Pierre Moscovici, notei que essa era também a posição do governo (vivia-se em "coabitação"...). Isto parecia tornar a nomeação de Solana irreversível.

Porém, como havia rumores de que o meu colega alemão, Gunther Verheugen, era candidato ao posto, telefonei-lhe. Apanhei-o na Bulgária. À minha questão sobre se era candidato ao cargo, deu uma gargalhada nervosa e respondeu: "Terias de perguntar isso ao Gehrard (Schroeder). Já não sei se ele ainda apoia minha candidatura. E não vou insistir...". A Alemanha estava na presidência da UE e os equilíbrios no seio da coligação SPD/Verdes eram muito complicados, com Verheugen (que viria a ser comissário europeu) a ter grandes dificuldades de relacionamento com o seu ministro, Joshka Fischer, como um dia me confessou e foi tornado público. E o apoio total do primeiro-ministro Schroeder ao seu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, embora fossem ambos do mesmo partido, nunca foi muito evidente. Concluí que Verheugen estava, definitivamente, "out".

Fechado no quarto do hotel, somei dois mais dois e telefonei a António Gueterres. Se os espanhóis viessem a obter o lugar de Alto Representante, seriam obrigados a abandonar a candidatura de Pedro Solbes ao cargo de presidente do Banco Europeu de Investimentos. Nos equilíbrios europeus, uma coisa não era compatível com a outra. Por isso, estava aberta uma oportunidade para nós. Guterres concordou, falei em três nomes (Guterres discordou de um deles), mas pediu-me para falar com Sousa Franco sobre os outros dois. Não queria avançar com nenhum dos nomes sem ouvir previamente o seu ministro das Finanças. Na conversa comigo, Sousa Franco concordou que era uma excelente oportunidade e disse-me que Vitor Constâncio era, dos dois sugeridos, o nome mais adequado como nosso candidato. "Espero é que ele se decida a tempo", gracejou. Ficou de falar com Constâncio. Dois dias depois, este viria a aceitar ser o candidato português.

Ainda antes de jantar, o que é um milagre no "decision-making process" português, consegui ter "luz verde" para preparar a candidatura, não sem antes ter sido informado Jaime Gama (porque, nisto de hierarquias, nunca "brinquei em serviço"). Mas, naturalmente, não poderíamos avançar antes de consultarmos os espanhóis. Ainda por cima, sem ter um nome garantido. Ora eu ia jantar nas instalações da OCDE com o ministro das Finanças espanhol, Rodrigo Rato, que chefiava a sua delegação.

Recordo bem a conversa. Rato é um homem muito agradável e mostrara-se sempre cordial comigo, não obstante nos separarem muitos furos nos nossos respetivos "rankings" governamentais. Expliquei-lhe a crescente consolidação da hipótese Solana e, nesse caso, a impossibilidade da Espanha poder vir a ter os dois lugares. Rato esteve, naturalmente, de acordo. Disse-lhe então que, nesse caso, teríamos, com certeza, um nome a apresentar, mas que não podia confirmá-lo, em absoluto, pelo facto de não sabermos se a pessoa escolhida aceitaria ou não.

Guardo a resposta de Rato na minha memória: "Se a Espanha não tem candidato e se Portugal tem, posso garantir-te, desde já, o nosso apoio. A 100%!". Ainda argumentei que António Guterres falaria, no dia seguinte, com Aznar, mas Rato voltou a ser perentório: "Não preciso de consultar Aznar. Dou-te desde já o nosso apoio. Portugal pode avançar".

"To make a long story short", Constâncio acabaria por não ser escolhido, numa noite negocial complexa, num jantar a anteceder um Conselho Europeu, num palácio nos arredores de Colónia, em 3 de junho, ocasião em que Solana foi entronizado como "Sr. PESC". Mas a Espanha, nessa reunião, pela voz de Aznar foi, até ao fim, o Estado que mais defendeu o candidato português.

Nesta que é uma noite triste para Rodrigo Rato, recordo, aqui de Varsóvia, este seu gesto simpático para connosco. Que eu não esqueci.

quarta-feira, janeiro 09, 2019

Chirac e os “embaixadores da Europa”

Há dias, li uma notícia que dava conta de que o representante diplomático da União Europeia junto dos Estados Unidos tinha sido “downgraded” no protocolo de Washington: a partir dos últimos meses do ano passado deixou de ser convidado para certas cerimónias e o seu lugar na ordem protocolar foi “baixado” para o fundo da tabela, colocado em conjunto com algumas estruturas multilaterais de nível muito inferior.

Depois do Tratado de Lisboa, com o surgimento da “personalidade jurídica” internacional da União Europeia, os seus delegados, oriundos do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), passaram a ter o estatuto de chefes de missão diplomática, exatamente a par com os embaixadores dos Estados membros. A sua aceitação está hoje generalizada um pouco por todo o mundo e é vista como incontroversa, pelo que esta atitude americana foi interpretada como uma óbvia provocação, fruto da acrimónia existente na administração Trump face à UE.

A representação externa da União, que passou a congregar no SEAE quadros oriundos da Comissão Europeia, do Secretariado-Geral do Conselho e dos Estados membros, alterou significativamente o modelo de representação externa da União, anteriormente limitado às delegações técnicas da Comissão. Estas últimas tinham um estatuto algo híbrido, mas de nível diplomático formalmente baixo. Não obstante, em especial em Estados muito dependentes da ajuda comunitária (e não são tão poucos como isso), a importância local do delegado da Comissão, por quem passavam muitas das ajudas financeiras, era imensa. Não raramente, eram tratados como “embaixadores” e, embora não o sendo, nunca dei conta de que algum recusasse ser considerado como tal...

O que agora se passa. em Washington trouxe-me à memória um episódio, ocorrido em 2000. Eu tinha ido a Paris com António Guterres, no quadro da presidência portuguesa da UE, para um almoço de trabalho no Eliseu, com o presidente Jacques Chirac. Era amplamente sabido que, para Chirac, a Comissão Europeia era uma espécie de “bête noire” europeia: a sua autonomia, os seus poderes e a liberdade de atuação que crescentemente assumia nos assuntos comunitários eram algo a que uma certa França, sempre muito ciosa da sua soberania, e que Chirac bem representava, tinha horror.

Num certo momento da conversa, Chirac contou a Guterres que tinha ido um dia a um país africano e que, na “receiving line” das personalidades que o esperavam à saída do avião, ouviu a certa altura alguém apresentar-se: “Eu sou o embaixador da Europa”. Chirac, contou-nos o próprio, estacou, olhou o homem do alto do seu 1,90 m, e retorquiu-lhe, em voz bem forte e sonante, por forma a ser bem ouvido em redor: “Você não é embaixador de nada! Você é apenas um funcionário nosso”. O efeito sobre o delegado da Comissão deve ter sido grande, pelo seguinte comentário de Chirac: “Nem imaginas, António, como o homem ficou! Estava tão pálido que eu receei que desmaiasse...”

Quando li a notícia sobre a “bofetada” protocolar dada agora pelos americanos ao representante diplomático europeu, não consegui deixar de pensar que, se acaso o estado de saúde de Jacques Chirac o não impedisse hoje de estar a par do que quer que se passe pelo mundo, seguramente que sorriria imenso perante estes revés da política centralizada em Bruxelas, que nunca lhe agradou.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Guterres

António Guterres teve um excelente resultado na votação de hoje nas NU.

O facto dos seus imediatos "perseguidores" não se terem aproximado pode ter inviabilizado o surgimento de Kristalina Georgieva, como candidata de desempate - com a "vantagem" de ser mulher e de Leste.

Este modelo de escolha do novo SG acabou por favorecer a emergência da "qualidade", em detrimento de outros critérios. Isto parece tornar muito difícil, com risco de se tornar num escândalo, uma reversão drástica da tendência sustentada que favorece o candidato português.

Mas nunca confiar...

segunda-feira, maio 01, 2023

O cheiro


Parece que a Ovibeja anda na moda. Ao que li, este ano, o governo não foi convidado para lá ir. A CAP, que parece que não gosta da ministra da Agricultura, terá deixado entender que a senhora não seria bem vinda. No entanto, como a CAP acha que aposta no futuro, entendeu por bem convidar o líder da oposição. Não, não convidou André Ventura, optou pelo "next best", por Luís Montenegro. Ah! E o presidente da República também lá esteve.

Sou pouco dado a cenas rurais, mas, imaginem!, até eu já fui à Ovibeja. É verdade. Há um quarto de século. Tinha estado numa visita oficial à Polónia, a acompanhar António Guterres, e, no regresso, ele disse-me: "Não vamos diretos para o  aeroporto de Figo Maduro. Antes, você vai ter que ir comigo à Ovibeja". 

E o Falcon, em que vínhamos de Varsóvia, lá foi aterrar ao famoso aeroporto de Beja. (A vida é estranha em coincidências: há quatro dias, também num voo que não era de carreira comercial, também vim de Varsóvia, mas para o aeroporto de Tires). Passei assim a fazer parte da restrita lista de pessoas que alguma vez na vida aterrou no aeroporto de Beja. Não guardei o diploma.

À chegada a Beja, esperava-nos o então ministro da Agricultura, Fernando Gomes da Silva. A CAP gostava tanto de Gomes da Silva como gosta da atual ministra. Isto é, muito pouco. E lá fomos os três para a Ovibeja. Aquela visita ficou-me na memória olfativa e auditiva. 

Olfativa porque uma feira de gado é um inigualável deslumbre para as pupilas. Entre bois, vacas, cabras, cavalos e porcos, pelo menos, venha o diabo e escolha o cheiro. Mas aquela foi também uma feira auditiva, porque, para além dos óbvios grunhidos que compõem o som ambiente, teve lugar, a certo passo, uma pequena cerimónia onde António Guterres e o então líder da CAP tomaram a palavra. Nesse momento formal, num palanque, fiquei colocado entre o agricultor-mor de serviço e o Fernando Gomes da Silva. 

Enquanto o homem da CAP se queixava ao primeiro-ministro, com palavras fortes, da ação do Ministério da Agricultura, Gomes da Silva (lembras-te, Fernando?) emitia, ao meu ouvido, sonoras imprecações, reagindo às críticas, às quais, contudo, não ia poder responder. Como a sua voz está muito longe de ser inaudível, fiquei com a nítida sensação de que o líder da lavoura devia estar a tomar nota daqueles pesados comentários. Eu, colocado no meio geográfico do potencial dissídio físico, cheguei a temer o pior.

Já bem ao final da noite, quando, finalmente, conseguimos chegar a Lisboa, e ainda antes de ir para casa, decidi ir beber um copo ao Procópio. Sentei-me na "Dois" e o Nuno (Brederode dos Santos) logo reagiu: "Estás a cheirar a qualquer coisa esquisita!". Expliquei que tinha estado numa feira de pecuária e que devia ser um odor a gado. Ele simplificou: "A mim cheira-me a merda, desculpa lá!"

25 anos depois, o Nuno continua a ter razão. A mim também me cheira.

domingo, junho 05, 2016

PS

Sem surpresas, o Congresso socialista confirmou António Costa, de forma esmagadora, à frente do partido.

Se as "primárias" de 2014 tinham já revelado que uma larga maioria dos militantes lhe dava a sua confiança como candidato a primeiro-ministro, fica agora muito claro que a máquina partidária está praticamente em plena sintonia com a sua condução da complexa fórmula de governo por que optou. Com a instalação no governo, o partido passou a usufruir de tudo quanto significa a ocupação do espaço do poder, isto é, os lugares no Estado, que sempre alimentam a "bulimia" política alternativa dos aparelhos do PS e do PSD (de que o CDS foi marginal beneficiário nos últimos anos). E a "máquina" gosta...

António Costa provou que, como líder político, é, a uma grande distância, a melhor escolha que os socialistas poderiam ter feito, nesta conjuntura. Tem mostrado autoridade, excecional capacidade de negociação, mostrando grande frieza tática, nomeadamente na relação com o novo presidente da República. Tão importante como isso, revelou habilidade para caminhar no fio da navalha, adotando medidas populares de alívio da brutalidade do ajustamento, sem romper, até ver, com o essencial dos compromissos europeus.

Se as políticas que decorrem do modelo de alianças por que optou vierem a ter sucesso, Costa ganhará um lugar na história política portuguesa, e até europeia. Neste último caso, provará que havia uma alternativa à austeridade estúpida e desumana que havia sido imposta e que, afinal, era possível evitar o extremo sofrimento das pessoas, bastando para tal "esticar a corda" negocial com Bruxelas, dentro de limites de razoabilidade e bom-senso. Tenho vindo a constatar que só acha "radicais" as moderadíssimas reversões feitas pelo governo PS quem está bem na vida e não sofreu excessivamente com os tempos da "troika". Ou, então, quem está ideologicamente cego, estado de espírito por que tenho cada vez menos respeito.

Mas, com honestidade, temos de avaliar o peso do outro prato da balança. Costa não depende apenas do modo como as coisas se passarem no país. Há elementos externos que não controla e que, com facilidade, podem ter efeitos negativos nas suas "contas" internas. Porque as projeções com que arquiteou a estratégia financeira para 2016 assentam em valores que roçam os limites da plausibilidade, qualquer desequilíbrio pode ser fatal. E uma rutura provocada por um dissídio com a Europa, por muito injusta que fosse, teria consequências devastadoras para o país. E, naturalmente, também para o PS e para Costa, que sabe melhor do que ninguém que um novo resgate arrastaria os socialistas para um limbo político muito mais gravoso e prolongado do que aquele em que caiu depois da governação de Sócrates.

Duas notas mais.

A primeira para sublinhar a coragem de Francisco Assis. Pareceram-me despropositadas as entrevistas que deu antes do Congresso, que ele sabia que cairiam como "sopa no mel" na estratégia de desgaste da oposição. Não havia necessidade... Quem está no Parlamento Europeu como cabeça de lista do PS tem mais responsabilidade e não deve converter-se num fator desestabilizador do governo do partido a que pertence. Assis tem o pleno direito a dizer o que disse, porque isso representa um sentimento, embora minoritário, existente no seio dos militantes e simpatizantes. E fez bem em afirmá-lo no lugar próprio, no Congresso, o único lugar onde o deveria ter feito. Mais: tem o direito de o dizer sem ser apupado. Aliás, é irónico pensar que os que o vairam foram, com toda a probabilidade, alguns dos que aclamaram entusiasticamente António Guterres. E alguém sabe se Guterres está tão longe como isso das ideias de Assis?

Há um ponto em que Francisco Assis está, a meu ver, completamente errado. A política contemporânea na Europa aponta numa direção contrária àquela que ele propõe. Hoje, começa a ficar cada vez mais claro que a opção por um "centrão" tem um efeito nefasto sobre o sistema político, fazendo emergir, à esquerda e à direita, formações "enragées", que facilmente cobrem perigosas derivas populistas. Torna-se importante que, no "mainstream" democrático dos sistemas, possa haver lugar a reais opções, polarizadoras do eleitorado. Nos dias que correm, as alianças "ao centro" só se justificariam em cenários de emergência nacional.

A segunda nota é para constatar que a "geringonça" pode, afinal, ter "salvo" o PS. Eu explico. Ao titular, voluntariamente ou a reboque dos seus "compagnons de route", algumas medidas de uma agenda claramente de esquerda, o PS reforçou as suas credenciais nesse domínio face a um eleitorado que, nos últimos anos, se habituara, cada vez mais, a fugir para os partidos da "esquerda da esquerda" - Bloco e PCP. Colar a cara de António Costa a essa mudança ideológica, onde se inserem algumas políticas fraturantes que estavam muito longe de certos setores conservadores dentro do partido (em especial, os meios católicos), pode vir a garantir aos socialistas novos eleitores jovens de que bem precisa para construir o seu percurso de futuro. 

Enfim, um belo Congresso para António Costa. Quem diria, nos turbulento tempos de há seis meses, que tudo se passaria desta forma? Agora, resta ao PS esperar que os factos possam dar razão ao otimismo de Costa. Quando Mário Centeno voltar a usar aquele seu simpático e franco sorriso dos primeiros tempos, dormirei muito mais descansado. Ainda há dias lhe disse isso...

domingo, dezembro 06, 2009

Sedes

Uma noite, creio que em meados de 1973, numas instalações da rua Viriato que eram então ocupadas pela SEDES - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal, que o marcelismo deixou criar e que ainda hoje subsiste -, assisti a uma palestra de Francisco de Sá Carneiro. Recordo-me de o ver chegar ao hall, muito sereno e sério, de gabardine preta, com uma postura erecta que disfarçava a sua pequena estatura. Já não me lembro do tema da charla, mas seguramente tinha a ver com a temática das liberdades, tocada no tom reformista que era o seu.

No final, com a sala apinhada, houve algumas perguntas. Marcelo Rebelo de Sousa fez uma. Sucedeu-lhe um outro jovem, que eu não conhecia, com um discurso muito articulado, que colocou uma daquelas longas falsas perguntas que, neste tipo de eventos, substitui a intervenção que gostariam de ter feito. Perguntei quem era, a um amigo que me acompanhava: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres".

Duas décadas mais tarde, eu e esse amigo integraríamos os dois governos em que António Guterres foi primeiro-ministro.

quinta-feira, outubro 06, 2016

O sorriso de Samantha


Olhando para ela, para o perfil esguio, algo Modigliani, um "look" procuradamente sereno, aquele esgar um pouco complacente similar ao que a burguesia endinheirada usa afivelar para o comum dos mundos, dir-se-ia uma Kennedy, mesmo que do ramo Peter Lawford, dos que passam férias em Martha Vineyards ou na parte boa dos Hamptons. Se olharmos bem, para as sardas e para a ruivez, também há por ali muito da origem irlandesa (a mesma dos Kennedy, aliás), esses latinos do Norte, pelo que talvez seja isso que justifica a coragem que um dia teve ao chamar "monster" a Hillary Clinton, o que a levou a uma demissão. Ao mesmo tempo, aquela senhora, que só conheço pelas imagens televisivas, foi jornalista e escreveu um livro sobre o genocídio e por ele recebeu o prestigiado prémio Pulitzer.

Chama-se Samantha Power e é a representante diplomática americana junto das Nações Unidas. Quando, na tarde de ontem, ouvi dizer que o Conselho de Segurança se inclinava para indigitar António Guterres como novo SG da ONU, o meu instinto foi "esperar por ela", e olhá-la. E quando o efusivo russo deu por adquirido que era o candidato português que o Conselho ia escolher, descobri-a, finalmente, ao seu lado. E ao vê-la sorrir e anuir com a cabeça, tive então, em definitivo e pela primeira vez, a certeza de que Guterres tinha ganho. É que o apelido da senhora, goste-se ou não, faz toda a diferença nas Nações Unidas.

terça-feira, outubro 11, 2022

O título


Um dia, numa conversa durante uma viagem de avião, comentei com António Guterres que estava furioso com a frase que um jornal tinha escolhido para título, de tudo o que eu tinha dito numa entrevista. Era redutora e distorcia por completo o que eu pensava. Guterres riu-se: “Aprenda, meu caro! Numa entrevista, a sua pior frase será sempre o título”.

Lembrei-me disto, ao ver a onda de críticas que hoje choveu sobre o presidente da República. Às vezes, basta uma frase menos feliz para ajudar à festa.

quarta-feira, outubro 23, 2019

Sair da cepa torta


Há dias, José Sócrates criticou, num artigo publicado no Brasil, o facto de António Costa não ter renovado a Geringonça, através de um acordo escrito com o Bloco de Esquerda. É irónico ver o antigo primeiro-ministro pronunciar-se desta forma, se tivermos em conta que, do seu tempo, nenhum gesto de aproximação com a “esquerda da esquerda” ficou nos anais da nossa política caseira. Bem pelo contrário, como se lembrará a “tia” de Francisco Louçã...

Dentre os primeiros-ministros socialistas da nossa democracia, nem Mário Soares, nem António Guterres, nem José Sócrates consideraram existirem condições para derrubar o muro que separava os utentes habituais do “arco da governação” dos setores mais à esquerda. E, provavelmente, com razão.

Soares governou na Guerra Fria e trazia consigo o trauma dos embates de 1975, o que não obstou a que fosse o “povo de esquerda” a colocá-lo depois em Belém. Guterres fez um governo de centro-esquerda, única forma de potenciar o declínio do cavaquismo. Sócrates, curiosamente, partiu de uma postura que chegou a seduzir setores conservadores, para depois se enquistar num processo de autismo político que, no plano retórico, procurou, na sua fase final, colocar-se num registo de esquerda-direita. Nenhum dos três, contudo, fez qualquer gesto à sua esquerda, quiçá também pela consciência de que isso não teria a menor retribuição.

Há que creditar a António Costa a coragem desse gesto, tanto mais que ele teve lugar num tempo de particular debilidade do país na ordem financeira externa, quando Portugal estava sob severa vigilância dos seus credores, que se tinham sentido confortados por um governo que tão bem mimetizava internamente o seu receituário político. Mas tem de partilhar esse mérito: uma imensa “gratidão” é devida ao espetro que constituía a hipótese de um regresso de Passos Coelho, o mais poderoso fator que levou os comunistas a caminharem no sentido de um conjuntural “compromisso histórico”.

Escrevi “conjuntural” com plena convicção. O PCP cedo mostrou que o “negócio” de 2015, se bem que agradável às suas bases, teve um custo institucional forte e não era para repetir. Para António Costa, fazer agora um acordo isolado com o Bloco seria um gesto vão. O peso dos bloquistas, à parte alguns fogachos sectoriais, esgota-se na bancada de S. Bento. Costa sabe bem quem pode estar ao seu lado e contra si no verdadeiro desafio do novo governo: potenciar o crescimento e controlar as corporações. Sem isso, não sairemos da cepa torta.

domingo, novembro 09, 2014

O problema dos títulos

- Então você quer que paguemos mais para a União Europeia?

Jaime Gama fez a pergunta com um largo e irónico sorriso, no momento em que eu entrei no Falcon, onde ele já estava sentado há uns minutos, pouco antes de uma deslocação que íamos fazer, creio que ao Luxemburgo. Não percebi a que é que se estava a referir. Foi então que o ministro dos Negócios estrangeiros me passou para a mão um exemplar de "O Diabo", o título hiperconservador que, depois de ter sido, nos anos 40 do século XX, um órgão que veiculava posições próximas do PCP, passou, após o 25 de abril, a ser uma voz da direita radical, inicialmente sob a direção de Vera Lagoa.

O título na capa de "O Diabo" era inequívoco (e cito de cor): "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia". Uma larga foto minha, identificado como responsável governativo pelos Assuntos europeus, não deixava a menor dúvida sobre o autor da frase. 

Imagino a reação do cidadão comum ao entrar numa tabacaria, ao passar uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais do dia e ao deparar com aquela insólita "tirada". Um responsável do nosso país, um Estado que passava o tempo a tentar explorar todos os possíveis "nichos de saque" das instituições europeias, no sentido de recolher financiamentos para compensar o atraso do seu desenvolvimento, tinha a "lata" de afirmar que deveríamos "pagar mais" para a Europa? "O tipo passou-se, pela certa!", devia ser o sentimento comum. Se eu estivesse no lugar do cidadão, era o que pensaria.

"O Diabo" era um jornal ao qual nunca me tinha passado pela cabeça dar uma entrevista. A sua agressividade contra o governo socialista, de que eu então fazia parte, era conhecida, não havia edição do semanário em que o executivo de António Guterres não fosse zurzido, acusado de "vende-pátrias", quase filo-comunista, de incompetente e irresponsável.

Um dia, porém, uma jornalista por quem eu tinha bastante respeito sondou-me sobre a minha possível abertura para dar uma entrevista a "O Diabo". Garantia-me um diálogo com um jornalista equilibrado, profissionalmente capaz, sem uma agenda despropositadamente agressiva. Achei que era um ensejo interessante para "meter a foice em seara alheia", que não devia desperdiçar. Preparei-me para o que desse e viesse, sem grandes preocupações: tinha plena confiança na minha capacidade de dizer só aquilo que queria. A entrevista correu muito bem. O interlocutor preparara-se convenientemente, foi rigoroso e sem concessões, mas manteve-se num registo muito decente. Esperava um bom texto.

Naquela manhã, a caminho do Falcon, esqueci-me de adquirir "O Diabo". Jaime Gama, a quem nada escapava, era um leitor completo de tudo quanto a "media" portuguesa (e não só) publicava, de jornais a revistas. "O Diabo" não lhe escapara e, nele, claro!, a minha entrevista.

Mas, afinal, eu afirmara ou não que "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia"? 

A pergunta do jornalista fora: "Portugal não paga demasiado para a UE?". Ora cada Estado membro da União paga, para suportar o funcionamento da organização, uma contribuição anual que depende diretamente da sua riqueza, isto é, todos pagam mas os países mais ricos pagam mais que os mais pobres. A minha frase era irónica: queria exprimir que até gostaríamos de pagar mais, porque isso significaria que éramos um país mais rico. Era apenas isto que eu pretendera dizer, nada mais. Porém, as ironias não "passam", necessariamente, nos textos. O paginador da capa de "O Diabo" deve ter-se desunhado para descortinar, na minha entrevista, uma frase sonante, que servisse de título. Eu fora especialmente cuidadoso, sabedor "do que a casa gasta". Ao ler o texto, o responsável pela paginação ter-se-á então apercebido que salientar essa minha frase criava uma "caixa" interessante, funcionando de forma negativa para o membro do odiado governo socialista, a que imprudentemente abrira as suas colunas. E não hesitou.

António Guterres explicou-me um dia que, nas entrevistas que concedamos, a nossa pior frase será sempre chamada para título. A minha frase não estava errada, tinha apenas sido dita num tom que não "passou"...

Mas a que propósito veio isto hoje? É que deparei, há pouco, num jornal diário, com uma fotografia minha, numa intervenção pública em Lisboa, complementada com um título onde figura algo que eu disse, embora não complementado com uma contextualização que eu próprio tivera o cuidado de precisar. Outra "simplificação", de natureza similar, descortinei ontem noutra nota, desta vez informática, atribuindo-me uma expressão que, de facto, eu utilizei na mesma sessão, mas que havia complementado com a frase "como alguns gostam de dizer, num conceito que hoje é muito contestado". Em ambos os casos, creio que não estamos perante qualquer atitude de má fé. Trata-se apenas do problema de criar um título, que, por definição, terá de ser curto e sintético. E redutor. É a vida...

quarta-feira, março 30, 2011

Gorbatchev

Há dias, contei aqui uma historieta de Gorbatchev. Dou-me agora conta que o antigo presidente fez ontem 80 anos, recebendo homenagens um pouco por todo o mundo, que o consagram como alguém responsável por um tempo charneira da história contemporânea. Escrevi "todo mundo"? Na Rússia, apenas 14% das pessoas têm uma memória positiva de Mikhaïl Gorbatchev.

Um dia, em Março de 2000, António Guterres convidou o então ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas, e eu para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Confesso que entrei para esse almoço (a cinco, porque nele estava também o intérprete que sempre acompanhava Gorbatchev) com uma elevada expectativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais eu esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixa de ser uma personalidade interessante, mas, quando o aprecio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao lê-lo, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique claro!: tenho consciência de que Mikhaïl Gorbatchev é uma das grandes figuras da história contemporânea, a cujo sentido de compromisso e adesão sincera às ideias da mudança a liberdade e paz internacionais muito devem. Por isso, "nazdrovia" pelos seus 80 anos.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Migrações


Foi muito oportuna a iniciativa que o International Herald Tribune e a Académie Diplomatique Internationale organizou hoje em Paris, juntando o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, e a jornalista Judy Dempsey. O tema central foi o mesmo que, há dias, aqui referi: "Fleeing the storm: the human cost of climate change".

A questão das migrações é um tema de imensa actualidade, até pelo paradoxo que António Guterres sublinhou: cada vez há mais pessoas forçadas a migrar (por razões económicas, de segurança, climáticas ou outras, muitas vezes conjugadas) e cada vez os Estados fecham mais as suas fronteiras. Para o Alto-Comissário, que se mostrou favorável a uma regulação das migrações à escala global - perspectiva até agora recusada pela Comunidade internacional -, verifica-se uma profunda hipocrisia e irracionalidade por parte dos decisores políticos do mundo desenvolvido. Estes, limitados pelo medo que afecta as suas populações, teimam em não enfrentar as necessidades de mão-de-obra dos seus operadores económicos, as quais, na ausência de uma política de imigração regular, acabam por ser supridas pelo "contrabando" de imigrantes, muitas vezes através de formas de tráfico com ligações criminosas.

Como me dizia um observador atento a estas questões, sentado a meu lado na conferência, tudo tenderá a ser ainda pior com o disparar dos índices de desemprego, por virtude da crise.

Em tempo: ler o que o New York Times traz hoje sobre esta conferência. Aqui.

domingo, outubro 30, 2016

A hora dos mencheviques

Mudou hoje a hora. Nem sempre tivemos este regime horário. Por exemplo, entre 1992 e 1996, a nossa hora acompanhava a da Europa central. Foi o primeiro governo de António Guterres que decidiu reintroduzir o modelo da hora atual. A decisão não foi totalmente pacífica, no Conselho de Ministros em que foi tomada. Eu estava casualmente por lá, substituindo Jaime Gama, e manifestei-me contra, com base num conjunto de argumentos que não vêm para o caso. A defesa da medida que acabaria por ser adotada foi feita, com brilhantismo, por Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação e do Ensino Superior. Guterres era um grande adepto da alteração mas, nem por isso, havia conseguido convencer pessoas que lhe eram muito próximas, como foi o caso de António Vitorino e Joaquim Pina Moura. Fomos, recordo, as três vozes postas em minoria naquele Conselho de Ministros. À saída, Pina Moura, com o seu imenso humor, de que sinto muita falta, disse-me: "Por uma vez, fazemos parte dos mencheviques".

sexta-feira, junho 27, 2014

Um amigo no Berlaymont

Um dia de 1998, acompanhei António Guterres ao gabinete do primeiro-ministro do Luxemburgo, Jean-Claude Juncker. A Comissão europeia tinha acabado de apresentar a sua primeira proposta para as "perspetivas financeiras" para o período 2000-2006, o orçamento plurianual de onde decorrem os fundos comunitários. O resultado, maugrado as diligências que havíamos feito nos meses anteriores junto de diversos setores da Comissão, era dececionante para o nosso país. Agora, tornava-se importante mobilizar os nossos amigos europeus a fim de fazer evoluir a proposta, em moldes que pudessem acomodar os nossos interesses.

Nunca mais me esquecerei das palavras espontâneas que ouvimos de Juncker, logo que António Guterres acabou de lhe expor o nosso problema: "António, podes contar comigo a 100%. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para beneficiar Portugal". E fê-lo, a partir daí, de forma exemplar, passando a defender-nos em todos os contextos possíveis. Não houve Conselho europeu em que Juncker não tivesse estado abertamente ao nosso lado, movimentando-se, além disso, junto de outros parceiros para fazer valer os argumentos portugueses.

Lembrei-me disto há minutos, ao ouvir Jean-Claude Juncker salientar, nestes que são os seus últimos dias à frente do Eurogrupo, a importância de Portugal ser recompensado pelos esforços que tem vindo a fazer no seu programa de ajustamento estrutural, com a possível redefinição desse mesmo programa à luz da evolução da conjuntura externa. Uma posição pouco comum, mesmo à revelia de outras, nesta Europa onde a solidariedade é uma palavra escassa nos dias que correm.

Jean-Claude Juncker é um exemplo de um grande europeu, da escola de um Jacques Delors, uma das poucas personalidades que, pela sua inigualável experiência e pela profunda coerência e verticalidade que o carateriza, merece o respeito da grande maioria de quantos se movimentam pelos corredores da União europeia. Mas, do mesmo modo, a sua independência face aos grandes Estados europeus, bem como o modo frontal como a assume, não terão sido estranhos à sua liminar exclusão, quando o seu nome surgiu mencionado para a presidência da Comissão europeia.

Se Portugal tem verdadeiros amigos entre os dirigentes desta Europa, a experiência demonstrou-me que Jean-Claude Juncker é o mais dedicado deles.

(Escrevi isto neste blogue, em 10.1.13. Repito-o com gosto hoje, dia em que Jean-Claude Juncker foi nomeado presidente da Comissão europeia)

sexta-feira, agosto 14, 2015

As presidenciais socialistas


Não vale a pena esconder que o Partido Socialista tem um problema com as eleições presidenciais. Esse problema existe há muito, emergiu noutros sufrágios e inscreve-se na matriz daquele que é o partido central da democracia portuguesa.

Cavaco Silva foi o único presidente eleito no atual regime que não contou com o apoio socialista. Num país sociologicamente com uma maioria eleitoral de esquerda, foi mais uma vez a dificuldade decisória dentro do PS que facilitou a sua eleição. Em 2016, isso pode repetir-se.

À parte o caso muito particular de Soares em 1986, onde verdadeiramente se jogou, pela última vez, a trincheira esquerda-direita, numa eleição que ajudou a fixar o perfil essencial do regime, apenas Sampaio correspondeu, com rara precisão, ao “candidato ideal” do PS: sem particulares anti-corpos à esquerda e com um forte potencial de entrada no eleitorado político do centro, e até de alguma direita urbana.

De certo modo, embora bastante menos afirmado à esquerda, Guterres aproximar-se-ia agora desse perfil. A sua ausência da contenda volta a soltar no PS os “demónios” da divisão.

Sampaio da Nóvoa é um candidato que emergiu na indignação anti-troika. Cavalgou com inteligência essa onda justa e, com o tempo, foi elaborando sobre ela um discurso culto. Em seu torno, desenhou-se entretanto uma espécie de “neo-pintasilguismo”, o que, simultaneamente, seduz uma certa esquerda mas irrita outras áreas socialistas, que o associam, creio que injustamente, a um projeto intervencionista anti-sistema, onde ressoam memórias do PRD. Os militares e os ritos organizados que andam à sua volta ajudam muito a essa suspeita. Para a direita, é uma “bête noire”, o que, devendo ser tomado à conta de um forte elogio, reduz o seu proselitismo no centro político e não facilita a eleição.

Maria de Belém é o Guterres possível. Mulher, incomparavelmente mais carismática do que seria o excelente e mais denso Oliveira Martins, tem uma certa fragilidade, que é tocante mas não deixa de ser uma fragilidade. O seu perfil atrai o pessoal dos altares, tem uma simpatia natural capaz de vir a gerar um certo “appeal” popular, mesmo em setores da direita, à qual não assusta. Com o tempo, perceber-se-á também que tem uma leitura muito bem sistematizada do país. Há, porém, quem ache que pode ser “pêra fácil” nos debates com Marcelo ou que verá a sua assessoria no grupo Espírito Santo ser explorada pelo justicialismo de Rio. Dentro de algum PS, a sua candidatura é vista como uma espécie desforra do “segurismo”, o que muito limitará a mobilização da máquina dominante.

Como se diz na minha terra, o PS, em matéria presidencial, volta a estar metido num “lindo molho de brócolos”.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

O fundo da reforma

A quem se atrever a dizer que, num mês, este governo não fez nada que se visse, deixo esta impressionante imagem de uma reforma de fundo - l...