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quinta-feira, outubro 06, 2016

Os vencedores


Há dois vencedores no dia de hoje: António Guterres e as Nações Unidas. 

Guterres venceu esta eleição por mérito próprio, pela sua qualidade como figura política à escala internacional. Assisti de perto ao “crescimento" de António Guterres no plano europeu, ao modo extraordinário como conseguiu projetar Portugal e defender os interesses portugueses numa União Europeia sob a tensão do alargamento e o desafio do euro. E, de forma determinante, à sua magistral gestão da delicada questão de Timor. E o mundo olhou a sua prestação como Alto Comissário das NU para os Refugiados, dando corpo ao slogan que o levara ao poder em Portugal: razão e coração. Mais recentemente, o modo como conseguiu evidenciar as suas qualidades, nas audições nas NU, não me surpreendeu minimamente. Se disso dependesse apenas a sua escolha, tinha a certeza de que dificilmente alguém o derrotaria.

E é aqui que entra também a vitória das NU. O modo como o processo de seleção do novo secretário-geral foi lançado, num modelo que favorecia a visibilidade dos candidatos e permitia fazer uma sua avaliação comparativa, era quase conflitual com o formato opaco, feito de compromissos e "toma-lá-dá-cá", que no passado vigorara. Uma decisão que, na prática, se "cozinhava" no seio dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Ao abrir este ano a um escrutínio alargado o processo de escolha, as NU prestigiaram-se. E, nestas coisas, já não se volta atrás. As NU são também vencedoras neste dia.

(Depoimento que me foi solicitado pelo "Jornal de Notícias")

sexta-feira, abril 17, 2015

Rodrigo Rato


O antigo ministro espanhol e diretor-geral do FMI, Rodrigo Rato, foi há poucas horas detido em Madrid, por acusações de improbidade.

Neste momento dramático para aquele que já foi nº 2 de José Maria Aznar, apetece-me lembrar um episódio com ele ocorrido, em 1999.

Era o dia 27 de maio. Eu estava em Paris, chegado de Londres nessa manhã, para o reunião ministerial da OCDE onde, na ausência do ministro das Finanças, Sousa Franco, chefiava a delegação portuguesa. Na véspera, na capital britânica, falando com o meu contraparte inglês, Keith Vaz, havia-me dado conta de que anteriores objeções para a nomeação de Javier Solana para Alto Representante para a Política Externa e Segurança Comum, que se sabia existirem por parte do Reino Unido (ao que se dizia, por pressão americana), tinham aparentemente "caído". Nessa manhã fora ver ao Eliseu o assessor diplomático de Jacques Chirac, Jean-David Levitte, e notara que a opção por Solana era forte. Ao almoçar, nesse mesmo dia, com o meu colega francês, Pierre Moscovici, notei que essa era também a posição do governo (vivia-se em "coabitação"...). Isto parecia tornar a nomeação de Solana irreversível.

Porém, como havia rumores de que o meu colega alemão, Gunther Verheugen, era candidato ao posto, telefonei-lhe. Apanhei-o na Bulgária. À minha questão sobre se era candidato ao cargo, deu uma gargalhada nervosa e respondeu: "Terias de perguntar isso ao Gehrard (Schroeder). Já não sei se ele ainda apoia minha candidatura. E não vou insistir...". A Alemanha estava na presidência da UE e os equilíbrios no seio da coligação SPD/Verdes eram muito complicados, com Verheugen (que viria a ser comissário europeu) a ter grandes dificuldades de relacionamento com o seu ministro, Joshka Fischer, como um dia me confessou e foi tornado público. E o apoio total do primeiro-ministro Schroeder ao seu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, embora fossem ambos do mesmo partido, nunca foi muito evidente. Concluí que Verheugen estava, definitivamente, "out".

Fechado no quarto do hotel, somei dois mais dois e telefonei a António Gueterres. Se os espanhóis viessem a obter o lugar de Alto Representante, seriam obrigados a abandonar a candidatura de Pedro Solbes ao cargo de presidente do Banco Europeu de Investimentos. Nos equilíbrios europeus, uma coisa não era compatível com a outra. Por isso, estava aberta uma oportunidade para nós. Guterres concordou, falei em três nomes (Guterres discordou de um deles), mas pediu-me para falar com Sousa Franco sobre os outros dois. Não queria avançar com nenhum dos nomes sem ouvir previamente o seu ministro das Finanças. Na conversa comigo, Sousa Franco concordou que era uma excelente oportunidade e disse-me que Vitor Constâncio era, dos dois sugeridos, o nome mais adequado como nosso candidato. "Espero é que ele se decida a tempo", gracejou. Ficou de falar com Constâncio. Dois dias depois, este viria a aceitar ser o candidato português.

Ainda antes de jantar, o que é um milagre no "decision-making process" português, consegui ter "luz verde" para preparar a candidatura, não sem antes ter sido informado Jaime Gama (porque, nisto de hierarquias, nunca "brinquei em serviço"). Mas, naturalmente, não poderíamos avançar antes de consultarmos os espanhóis. Ainda por cima, sem ter um nome garantido. Ora eu ia jantar nas instalações da OCDE com o ministro das Finanças espanhol, Rodrigo Rato, que chefiava a sua delegação.

Recordo bem a conversa. Rato é um homem muito agradável e mostrara-se sempre cordial comigo, não obstante nos separarem muitos furos nos nossos respetivos "rankings" governamentais. Expliquei-lhe a crescente consolidação da hipótese Solana e, nesse caso, a impossibilidade da Espanha poder vir a ter os dois lugares. Rato esteve, naturalmente, de acordo. Disse-lhe então que, nesse caso, teríamos, com certeza, um nome a apresentar, mas que não podia confirmá-lo, em absoluto, pelo facto de não sabermos se a pessoa escolhida aceitaria ou não.

Guardo a resposta de Rato na minha memória: "Se a Espanha não tem candidato e se Portugal tem, posso garantir-te, desde já, o nosso apoio. A 100%!". Ainda argumentei que António Guterres falaria, no dia seguinte, com Aznar, mas Rato voltou a ser perentório: "Não preciso de consultar Aznar. Dou-te desde já o nosso apoio. Portugal pode avançar".

"To make a long story short", Constâncio acabaria por não ser escolhido, numa noite negocial complexa, num jantar a anteceder um Conselho Europeu, num palácio nos arredores de Colónia, em 3 de junho, ocasião em que Solana foi entronizado como "Sr. PESC". Mas a Espanha, nessa reunião, pela voz de Aznar foi, até ao fim, o Estado que mais defendeu o candidato português.

Nesta que é uma noite triste para Rodrigo Rato, recordo, aqui de Varsóvia, este seu gesto simpático para connosco. Que eu não esqueci.

quarta-feira, janeiro 09, 2019

Chirac e os “embaixadores da Europa”

Há dias, li uma notícia que dava conta de que o representante diplomático da União Europeia junto dos Estados Unidos tinha sido “downgraded” no protocolo de Washington: a partir dos últimos meses do ano passado deixou de ser convidado para certas cerimónias e o seu lugar na ordem protocolar foi “baixado” para o fundo da tabela, colocado em conjunto com algumas estruturas multilaterais de nível muito inferior.

Depois do Tratado de Lisboa, com o surgimento da “personalidade jurídica” internacional da União Europeia, os seus delegados, oriundos do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), passaram a ter o estatuto de chefes de missão diplomática, exatamente a par com os embaixadores dos Estados membros. A sua aceitação está hoje generalizada um pouco por todo o mundo e é vista como incontroversa, pelo que esta atitude americana foi interpretada como uma óbvia provocação, fruto da acrimónia existente na administração Trump face à UE.

A representação externa da União, que passou a congregar no SEAE quadros oriundos da Comissão Europeia, do Secretariado-Geral do Conselho e dos Estados membros, alterou significativamente o modelo de representação externa da União, anteriormente limitado às delegações técnicas da Comissão. Estas últimas tinham um estatuto algo híbrido, mas de nível diplomático formalmente baixo. Não obstante, em especial em Estados muito dependentes da ajuda comunitária (e não são tão poucos como isso), a importância local do delegado da Comissão, por quem passavam muitas das ajudas financeiras, era imensa. Não raramente, eram tratados como “embaixadores” e, embora não o sendo, nunca dei conta de que algum recusasse ser considerado como tal...

O que agora se passa. em Washington trouxe-me à memória um episódio, ocorrido em 2000. Eu tinha ido a Paris com António Guterres, no quadro da presidência portuguesa da UE, para um almoço de trabalho no Eliseu, com o presidente Jacques Chirac. Era amplamente sabido que, para Chirac, a Comissão Europeia era uma espécie de “bête noire” europeia: a sua autonomia, os seus poderes e a liberdade de atuação que crescentemente assumia nos assuntos comunitários eram algo a que uma certa França, sempre muito ciosa da sua soberania, e que Chirac bem representava, tinha horror.

Num certo momento da conversa, Chirac contou a Guterres que tinha ido um dia a um país africano e que, na “receiving line” das personalidades que o esperavam à saída do avião, ouviu a certa altura alguém apresentar-se: “Eu sou o embaixador da Europa”. Chirac, contou-nos o próprio, estacou, olhou o homem do alto do seu 1,90 m, e retorquiu-lhe, em voz bem forte e sonante, por forma a ser bem ouvido em redor: “Você não é embaixador de nada! Você é apenas um funcionário nosso”. O efeito sobre o delegado da Comissão deve ter sido grande, pelo seguinte comentário de Chirac: “Nem imaginas, António, como o homem ficou! Estava tão pálido que eu receei que desmaiasse...”

Quando li a notícia sobre a “bofetada” protocolar dada agora pelos americanos ao representante diplomático europeu, não consegui deixar de pensar que, se acaso o estado de saúde de Jacques Chirac o não impedisse hoje de estar a par do que quer que se passe pelo mundo, seguramente que sorriria imenso perante estes revés da política centralizada em Bruxelas, que nunca lhe agradou.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Guterres

António Guterres teve um excelente resultado na votação de hoje nas NU.

O facto dos seus imediatos "perseguidores" não se terem aproximado pode ter inviabilizado o surgimento de Kristalina Georgieva, como candidata de desempate - com a "vantagem" de ser mulher e de Leste.

Este modelo de escolha do novo SG acabou por favorecer a emergência da "qualidade", em detrimento de outros critérios. Isto parece tornar muito difícil, com risco de se tornar num escândalo, uma reversão drástica da tendência sustentada que favorece o candidato português.

Mas nunca confiar...

segunda-feira, maio 01, 2023

O cheiro


Parece que a Ovibeja anda na moda. Ao que li, este ano, o governo não foi convidado para lá ir. A CAP, que parece que não gosta da ministra da Agricultura, terá deixado entender que a senhora não seria bem vinda. No entanto, como a CAP acha que aposta no futuro, entendeu por bem convidar o líder da oposição. Não, não convidou André Ventura, optou pelo "next best", por Luís Montenegro. Ah! E o presidente da República também lá esteve.

Sou pouco dado a cenas rurais, mas, imaginem!, até eu já fui à Ovibeja. É verdade. Há um quarto de século. Tinha estado numa visita oficial à Polónia, a acompanhar António Guterres, e, no regresso, ele disse-me: "Não vamos diretos para o  aeroporto de Figo Maduro. Antes, você vai ter que ir comigo à Ovibeja". 

E o Falcon, em que vínhamos de Varsóvia, lá foi aterrar ao famoso aeroporto de Beja. (A vida é estranha em coincidências: há quatro dias, também num voo que não era de carreira comercial, também vim de Varsóvia, mas para o aeroporto de Tires). Passei assim a fazer parte da restrita lista de pessoas que alguma vez na vida aterrou no aeroporto de Beja. Não guardei o diploma.

À chegada a Beja, esperava-nos o então ministro da Agricultura, Fernando Gomes da Silva. A CAP gostava tanto de Gomes da Silva como gosta da atual ministra. Isto é, muito pouco. E lá fomos os três para a Ovibeja. Aquela visita ficou-me na memória olfativa e auditiva. 

Olfativa porque uma feira de gado é um inigualável deslumbre para as pupilas. Entre bois, vacas, cabras, cavalos e porcos, pelo menos, venha o diabo e escolha o cheiro. Mas aquela foi também uma feira auditiva, porque, para além dos óbvios grunhidos que compõem o som ambiente, teve lugar, a certo passo, uma pequena cerimónia onde António Guterres e o então líder da CAP tomaram a palavra. Nesse momento formal, num palanque, fiquei colocado entre o agricultor-mor de serviço e o Fernando Gomes da Silva. 

Enquanto o homem da CAP se queixava ao primeiro-ministro, com palavras fortes, da ação do Ministério da Agricultura, Gomes da Silva (lembras-te, Fernando?) emitia, ao meu ouvido, sonoras imprecações, reagindo às críticas, às quais, contudo, não ia poder responder. Como a sua voz está muito longe de ser inaudível, fiquei com a nítida sensação de que o líder da lavoura devia estar a tomar nota daqueles pesados comentários. Eu, colocado no meio geográfico do potencial dissídio físico, cheguei a temer o pior.

Já bem ao final da noite, quando, finalmente, conseguimos chegar a Lisboa, e ainda antes de ir para casa, decidi ir beber um copo ao Procópio. Sentei-me na "Dois" e o Nuno (Brederode dos Santos) logo reagiu: "Estás a cheirar a qualquer coisa esquisita!". Expliquei que tinha estado numa feira de pecuária e que devia ser um odor a gado. Ele simplificou: "A mim cheira-me a merda, desculpa lá!"

25 anos depois, o Nuno continua a ter razão. A mim também me cheira.

domingo, junho 05, 2016

PS

Sem surpresas, o Congresso socialista confirmou António Costa, de forma esmagadora, à frente do partido.

Se as "primárias" de 2014 tinham já revelado que uma larga maioria dos militantes lhe dava a sua confiança como candidato a primeiro-ministro, fica agora muito claro que a máquina partidária está praticamente em plena sintonia com a sua condução da complexa fórmula de governo por que optou. Com a instalação no governo, o partido passou a usufruir de tudo quanto significa a ocupação do espaço do poder, isto é, os lugares no Estado, que sempre alimentam a "bulimia" política alternativa dos aparelhos do PS e do PSD (de que o CDS foi marginal beneficiário nos últimos anos). E a "máquina" gosta...

António Costa provou que, como líder político, é, a uma grande distância, a melhor escolha que os socialistas poderiam ter feito, nesta conjuntura. Tem mostrado autoridade, excecional capacidade de negociação, mostrando grande frieza tática, nomeadamente na relação com o novo presidente da República. Tão importante como isso, revelou habilidade para caminhar no fio da navalha, adotando medidas populares de alívio da brutalidade do ajustamento, sem romper, até ver, com o essencial dos compromissos europeus.

Se as políticas que decorrem do modelo de alianças por que optou vierem a ter sucesso, Costa ganhará um lugar na história política portuguesa, e até europeia. Neste último caso, provará que havia uma alternativa à austeridade estúpida e desumana que havia sido imposta e que, afinal, era possível evitar o extremo sofrimento das pessoas, bastando para tal "esticar a corda" negocial com Bruxelas, dentro de limites de razoabilidade e bom-senso. Tenho vindo a constatar que só acha "radicais" as moderadíssimas reversões feitas pelo governo PS quem está bem na vida e não sofreu excessivamente com os tempos da "troika". Ou, então, quem está ideologicamente cego, estado de espírito por que tenho cada vez menos respeito.

Mas, com honestidade, temos de avaliar o peso do outro prato da balança. Costa não depende apenas do modo como as coisas se passarem no país. Há elementos externos que não controla e que, com facilidade, podem ter efeitos negativos nas suas "contas" internas. Porque as projeções com que arquiteou a estratégia financeira para 2016 assentam em valores que roçam os limites da plausibilidade, qualquer desequilíbrio pode ser fatal. E uma rutura provocada por um dissídio com a Europa, por muito injusta que fosse, teria consequências devastadoras para o país. E, naturalmente, também para o PS e para Costa, que sabe melhor do que ninguém que um novo resgate arrastaria os socialistas para um limbo político muito mais gravoso e prolongado do que aquele em que caiu depois da governação de Sócrates.

Duas notas mais.

A primeira para sublinhar a coragem de Francisco Assis. Pareceram-me despropositadas as entrevistas que deu antes do Congresso, que ele sabia que cairiam como "sopa no mel" na estratégia de desgaste da oposição. Não havia necessidade... Quem está no Parlamento Europeu como cabeça de lista do PS tem mais responsabilidade e não deve converter-se num fator desestabilizador do governo do partido a que pertence. Assis tem o pleno direito a dizer o que disse, porque isso representa um sentimento, embora minoritário, existente no seio dos militantes e simpatizantes. E fez bem em afirmá-lo no lugar próprio, no Congresso, o único lugar onde o deveria ter feito. Mais: tem o direito de o dizer sem ser apupado. Aliás, é irónico pensar que os que o vairam foram, com toda a probabilidade, alguns dos que aclamaram entusiasticamente António Guterres. E alguém sabe se Guterres está tão longe como isso das ideias de Assis?

Há um ponto em que Francisco Assis está, a meu ver, completamente errado. A política contemporânea na Europa aponta numa direção contrária àquela que ele propõe. Hoje, começa a ficar cada vez mais claro que a opção por um "centrão" tem um efeito nefasto sobre o sistema político, fazendo emergir, à esquerda e à direita, formações "enragées", que facilmente cobrem perigosas derivas populistas. Torna-se importante que, no "mainstream" democrático dos sistemas, possa haver lugar a reais opções, polarizadoras do eleitorado. Nos dias que correm, as alianças "ao centro" só se justificariam em cenários de emergência nacional.

A segunda nota é para constatar que a "geringonça" pode, afinal, ter "salvo" o PS. Eu explico. Ao titular, voluntariamente ou a reboque dos seus "compagnons de route", algumas medidas de uma agenda claramente de esquerda, o PS reforçou as suas credenciais nesse domínio face a um eleitorado que, nos últimos anos, se habituara, cada vez mais, a fugir para os partidos da "esquerda da esquerda" - Bloco e PCP. Colar a cara de António Costa a essa mudança ideológica, onde se inserem algumas políticas fraturantes que estavam muito longe de certos setores conservadores dentro do partido (em especial, os meios católicos), pode vir a garantir aos socialistas novos eleitores jovens de que bem precisa para construir o seu percurso de futuro. 

Enfim, um belo Congresso para António Costa. Quem diria, nos turbulento tempos de há seis meses, que tudo se passaria desta forma? Agora, resta ao PS esperar que os factos possam dar razão ao otimismo de Costa. Quando Mário Centeno voltar a usar aquele seu simpático e franco sorriso dos primeiros tempos, dormirei muito mais descansado. Ainda há dias lhe disse isso...

domingo, dezembro 06, 2009

Sedes

Uma noite, creio que em meados de 1973, numas instalações da rua Viriato que eram então ocupadas pela SEDES - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal, que o marcelismo deixou criar e que ainda hoje subsiste -, assisti a uma palestra de Francisco de Sá Carneiro. Recordo-me de o ver chegar ao hall, muito sereno e sério, de gabardine preta, com uma postura erecta que disfarçava a sua pequena estatura. Já não me lembro do tema da charla, mas seguramente tinha a ver com a temática das liberdades, tocada no tom reformista que era o seu.

No final, com a sala apinhada, houve algumas perguntas. Marcelo Rebelo de Sousa fez uma. Sucedeu-lhe um outro jovem, que eu não conhecia, com um discurso muito articulado, que colocou uma daquelas longas falsas perguntas que, neste tipo de eventos, substitui a intervenção que gostariam de ter feito. Perguntei quem era, a um amigo que me acompanhava: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres".

Duas décadas mais tarde, eu e esse amigo integraríamos os dois governos em que António Guterres foi primeiro-ministro.

quinta-feira, outubro 06, 2016

O sorriso de Samantha


Olhando para ela, para o perfil esguio, algo Modigliani, um "look" procuradamente sereno, aquele esgar um pouco complacente similar ao que a burguesia endinheirada usa afivelar para o comum dos mundos, dir-se-ia uma Kennedy, mesmo que do ramo Peter Lawford, dos que passam férias em Martha Vineyards ou na parte boa dos Hamptons. Se olharmos bem, para as sardas e para a ruivez, também há por ali muito da origem irlandesa (a mesma dos Kennedy, aliás), esses latinos do Norte, pelo que talvez seja isso que justifica a coragem que um dia teve ao chamar "monster" a Hillary Clinton, o que a levou a uma demissão. Ao mesmo tempo, aquela senhora, que só conheço pelas imagens televisivas, foi jornalista e escreveu um livro sobre o genocídio e por ele recebeu o prestigiado prémio Pulitzer.

Chama-se Samantha Power e é a representante diplomática americana junto das Nações Unidas. Quando, na tarde de ontem, ouvi dizer que o Conselho de Segurança se inclinava para indigitar António Guterres como novo SG da ONU, o meu instinto foi "esperar por ela", e olhá-la. E quando o efusivo russo deu por adquirido que era o candidato português que o Conselho ia escolher, descobri-a, finalmente, ao seu lado. E ao vê-la sorrir e anuir com a cabeça, tive então, em definitivo e pela primeira vez, a certeza de que Guterres tinha ganho. É que o apelido da senhora, goste-se ou não, faz toda a diferença nas Nações Unidas.

terça-feira, outubro 11, 2022

O título


Um dia, numa conversa durante uma viagem de avião, comentei com António Guterres que estava furioso com a frase que um jornal tinha escolhido para título, de tudo o que eu tinha dito numa entrevista. Era redutora e distorcia por completo o que eu pensava. Guterres riu-se: “Aprenda, meu caro! Numa entrevista, a sua pior frase será sempre o título”.

Lembrei-me disto, ao ver a onda de críticas que hoje choveu sobre o presidente da República. Às vezes, basta uma frase menos feliz para ajudar à festa.

quarta-feira, outubro 23, 2019

Sair da cepa torta


Há dias, José Sócrates criticou, num artigo publicado no Brasil, o facto de António Costa não ter renovado a Geringonça, através de um acordo escrito com o Bloco de Esquerda. É irónico ver o antigo primeiro-ministro pronunciar-se desta forma, se tivermos em conta que, do seu tempo, nenhum gesto de aproximação com a “esquerda da esquerda” ficou nos anais da nossa política caseira. Bem pelo contrário, como se lembrará a “tia” de Francisco Louçã...

Dentre os primeiros-ministros socialistas da nossa democracia, nem Mário Soares, nem António Guterres, nem José Sócrates consideraram existirem condições para derrubar o muro que separava os utentes habituais do “arco da governação” dos setores mais à esquerda. E, provavelmente, com razão.

Soares governou na Guerra Fria e trazia consigo o trauma dos embates de 1975, o que não obstou a que fosse o “povo de esquerda” a colocá-lo depois em Belém. Guterres fez um governo de centro-esquerda, única forma de potenciar o declínio do cavaquismo. Sócrates, curiosamente, partiu de uma postura que chegou a seduzir setores conservadores, para depois se enquistar num processo de autismo político que, no plano retórico, procurou, na sua fase final, colocar-se num registo de esquerda-direita. Nenhum dos três, contudo, fez qualquer gesto à sua esquerda, quiçá também pela consciência de que isso não teria a menor retribuição.

Há que creditar a António Costa a coragem desse gesto, tanto mais que ele teve lugar num tempo de particular debilidade do país na ordem financeira externa, quando Portugal estava sob severa vigilância dos seus credores, que se tinham sentido confortados por um governo que tão bem mimetizava internamente o seu receituário político. Mas tem de partilhar esse mérito: uma imensa “gratidão” é devida ao espetro que constituía a hipótese de um regresso de Passos Coelho, o mais poderoso fator que levou os comunistas a caminharem no sentido de um conjuntural “compromisso histórico”.

Escrevi “conjuntural” com plena convicção. O PCP cedo mostrou que o “negócio” de 2015, se bem que agradável às suas bases, teve um custo institucional forte e não era para repetir. Para António Costa, fazer agora um acordo isolado com o Bloco seria um gesto vão. O peso dos bloquistas, à parte alguns fogachos sectoriais, esgota-se na bancada de S. Bento. Costa sabe bem quem pode estar ao seu lado e contra si no verdadeiro desafio do novo governo: potenciar o crescimento e controlar as corporações. Sem isso, não sairemos da cepa torta.

domingo, novembro 09, 2014

O problema dos títulos

- Então você quer que paguemos mais para a União Europeia?

Jaime Gama fez a pergunta com um largo e irónico sorriso, no momento em que eu entrei no Falcon, onde ele já estava sentado há uns minutos, pouco antes de uma deslocação que íamos fazer, creio que ao Luxemburgo. Não percebi a que é que se estava a referir. Foi então que o ministro dos Negócios estrangeiros me passou para a mão um exemplar de "O Diabo", o título hiperconservador que, depois de ter sido, nos anos 40 do século XX, um órgão que veiculava posições próximas do PCP, passou, após o 25 de abril, a ser uma voz da direita radical, inicialmente sob a direção de Vera Lagoa.

O título na capa de "O Diabo" era inequívoco (e cito de cor): "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia". Uma larga foto minha, identificado como responsável governativo pelos Assuntos europeus, não deixava a menor dúvida sobre o autor da frase. 

Imagino a reação do cidadão comum ao entrar numa tabacaria, ao passar uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais do dia e ao deparar com aquela insólita "tirada". Um responsável do nosso país, um Estado que passava o tempo a tentar explorar todos os possíveis "nichos de saque" das instituições europeias, no sentido de recolher financiamentos para compensar o atraso do seu desenvolvimento, tinha a "lata" de afirmar que deveríamos "pagar mais" para a Europa? "O tipo passou-se, pela certa!", devia ser o sentimento comum. Se eu estivesse no lugar do cidadão, era o que pensaria.

"O Diabo" era um jornal ao qual nunca me tinha passado pela cabeça dar uma entrevista. A sua agressividade contra o governo socialista, de que eu então fazia parte, era conhecida, não havia edição do semanário em que o executivo de António Guterres não fosse zurzido, acusado de "vende-pátrias", quase filo-comunista, de incompetente e irresponsável.

Um dia, porém, uma jornalista por quem eu tinha bastante respeito sondou-me sobre a minha possível abertura para dar uma entrevista a "O Diabo". Garantia-me um diálogo com um jornalista equilibrado, profissionalmente capaz, sem uma agenda despropositadamente agressiva. Achei que era um ensejo interessante para "meter a foice em seara alheia", que não devia desperdiçar. Preparei-me para o que desse e viesse, sem grandes preocupações: tinha plena confiança na minha capacidade de dizer só aquilo que queria. A entrevista correu muito bem. O interlocutor preparara-se convenientemente, foi rigoroso e sem concessões, mas manteve-se num registo muito decente. Esperava um bom texto.

Naquela manhã, a caminho do Falcon, esqueci-me de adquirir "O Diabo". Jaime Gama, a quem nada escapava, era um leitor completo de tudo quanto a "media" portuguesa (e não só) publicava, de jornais a revistas. "O Diabo" não lhe escapara e, nele, claro!, a minha entrevista.

Mas, afinal, eu afirmara ou não que "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia"? 

A pergunta do jornalista fora: "Portugal não paga demasiado para a UE?". Ora cada Estado membro da União paga, para suportar o funcionamento da organização, uma contribuição anual que depende diretamente da sua riqueza, isto é, todos pagam mas os países mais ricos pagam mais que os mais pobres. A minha frase era irónica: queria exprimir que até gostaríamos de pagar mais, porque isso significaria que éramos um país mais rico. Era apenas isto que eu pretendera dizer, nada mais. Porém, as ironias não "passam", necessariamente, nos textos. O paginador da capa de "O Diabo" deve ter-se desunhado para descortinar, na minha entrevista, uma frase sonante, que servisse de título. Eu fora especialmente cuidadoso, sabedor "do que a casa gasta". Ao ler o texto, o responsável pela paginação ter-se-á então apercebido que salientar essa minha frase criava uma "caixa" interessante, funcionando de forma negativa para o membro do odiado governo socialista, a que imprudentemente abrira as suas colunas. E não hesitou.

António Guterres explicou-me um dia que, nas entrevistas que concedamos, a nossa pior frase será sempre chamada para título. A minha frase não estava errada, tinha apenas sido dita num tom que não "passou"...

Mas a que propósito veio isto hoje? É que deparei, há pouco, num jornal diário, com uma fotografia minha, numa intervenção pública em Lisboa, complementada com um título onde figura algo que eu disse, embora não complementado com uma contextualização que eu próprio tivera o cuidado de precisar. Outra "simplificação", de natureza similar, descortinei ontem noutra nota, desta vez informática, atribuindo-me uma expressão que, de facto, eu utilizei na mesma sessão, mas que havia complementado com a frase "como alguns gostam de dizer, num conceito que hoje é muito contestado". Em ambos os casos, creio que não estamos perante qualquer atitude de má fé. Trata-se apenas do problema de criar um título, que, por definição, terá de ser curto e sintético. E redutor. É a vida...

quarta-feira, março 30, 2011

Gorbatchev

Há dias, contei aqui uma historieta de Gorbatchev. Dou-me agora conta que o antigo presidente fez ontem 80 anos, recebendo homenagens um pouco por todo o mundo, que o consagram como alguém responsável por um tempo charneira da história contemporânea. Escrevi "todo mundo"? Na Rússia, apenas 14% das pessoas têm uma memória positiva de Mikhaïl Gorbatchev.

Um dia, em Março de 2000, António Guterres convidou o então ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas, e eu para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Confesso que entrei para esse almoço (a cinco, porque nele estava também o intérprete que sempre acompanhava Gorbatchev) com uma elevada expectativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais eu esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixa de ser uma personalidade interessante, mas, quando o aprecio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao lê-lo, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique claro!: tenho consciência de que Mikhaïl Gorbatchev é uma das grandes figuras da história contemporânea, a cujo sentido de compromisso e adesão sincera às ideias da mudança a liberdade e paz internacionais muito devem. Por isso, "nazdrovia" pelos seus 80 anos.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Migrações


Foi muito oportuna a iniciativa que o International Herald Tribune e a Académie Diplomatique Internationale organizou hoje em Paris, juntando o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, e a jornalista Judy Dempsey. O tema central foi o mesmo que, há dias, aqui referi: "Fleeing the storm: the human cost of climate change".

A questão das migrações é um tema de imensa actualidade, até pelo paradoxo que António Guterres sublinhou: cada vez há mais pessoas forçadas a migrar (por razões económicas, de segurança, climáticas ou outras, muitas vezes conjugadas) e cada vez os Estados fecham mais as suas fronteiras. Para o Alto-Comissário, que se mostrou favorável a uma regulação das migrações à escala global - perspectiva até agora recusada pela Comunidade internacional -, verifica-se uma profunda hipocrisia e irracionalidade por parte dos decisores políticos do mundo desenvolvido. Estes, limitados pelo medo que afecta as suas populações, teimam em não enfrentar as necessidades de mão-de-obra dos seus operadores económicos, as quais, na ausência de uma política de imigração regular, acabam por ser supridas pelo "contrabando" de imigrantes, muitas vezes através de formas de tráfico com ligações criminosas.

Como me dizia um observador atento a estas questões, sentado a meu lado na conferência, tudo tenderá a ser ainda pior com o disparar dos índices de desemprego, por virtude da crise.

Em tempo: ler o que o New York Times traz hoje sobre esta conferência. Aqui.

domingo, outubro 30, 2016

A hora dos mencheviques

Mudou hoje a hora. Nem sempre tivemos este regime horário. Por exemplo, entre 1992 e 1996, a nossa hora acompanhava a da Europa central. Foi o primeiro governo de António Guterres que decidiu reintroduzir o modelo da hora atual. A decisão não foi totalmente pacífica, no Conselho de Ministros em que foi tomada. Eu estava casualmente por lá, substituindo Jaime Gama, e manifestei-me contra, com base num conjunto de argumentos que não vêm para o caso. A defesa da medida que acabaria por ser adotada foi feita, com brilhantismo, por Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação e do Ensino Superior. Guterres era um grande adepto da alteração mas, nem por isso, havia conseguido convencer pessoas que lhe eram muito próximas, como foi o caso de António Vitorino e Joaquim Pina Moura. Fomos, recordo, as três vozes postas em minoria naquele Conselho de Ministros. À saída, Pina Moura, com o seu imenso humor, de que sinto muita falta, disse-me: "Por uma vez, fazemos parte dos mencheviques".

sexta-feira, junho 27, 2014

Um amigo no Berlaymont

Um dia de 1998, acompanhei António Guterres ao gabinete do primeiro-ministro do Luxemburgo, Jean-Claude Juncker. A Comissão europeia tinha acabado de apresentar a sua primeira proposta para as "perspetivas financeiras" para o período 2000-2006, o orçamento plurianual de onde decorrem os fundos comunitários. O resultado, maugrado as diligências que havíamos feito nos meses anteriores junto de diversos setores da Comissão, era dececionante para o nosso país. Agora, tornava-se importante mobilizar os nossos amigos europeus a fim de fazer evoluir a proposta, em moldes que pudessem acomodar os nossos interesses.

Nunca mais me esquecerei das palavras espontâneas que ouvimos de Juncker, logo que António Guterres acabou de lhe expor o nosso problema: "António, podes contar comigo a 100%. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para beneficiar Portugal". E fê-lo, a partir daí, de forma exemplar, passando a defender-nos em todos os contextos possíveis. Não houve Conselho europeu em que Juncker não tivesse estado abertamente ao nosso lado, movimentando-se, além disso, junto de outros parceiros para fazer valer os argumentos portugueses.

Lembrei-me disto há minutos, ao ouvir Jean-Claude Juncker salientar, nestes que são os seus últimos dias à frente do Eurogrupo, a importância de Portugal ser recompensado pelos esforços que tem vindo a fazer no seu programa de ajustamento estrutural, com a possível redefinição desse mesmo programa à luz da evolução da conjuntura externa. Uma posição pouco comum, mesmo à revelia de outras, nesta Europa onde a solidariedade é uma palavra escassa nos dias que correm.

Jean-Claude Juncker é um exemplo de um grande europeu, da escola de um Jacques Delors, uma das poucas personalidades que, pela sua inigualável experiência e pela profunda coerência e verticalidade que o carateriza, merece o respeito da grande maioria de quantos se movimentam pelos corredores da União europeia. Mas, do mesmo modo, a sua independência face aos grandes Estados europeus, bem como o modo frontal como a assume, não terão sido estranhos à sua liminar exclusão, quando o seu nome surgiu mencionado para a presidência da Comissão europeia.

Se Portugal tem verdadeiros amigos entre os dirigentes desta Europa, a experiência demonstrou-me que Jean-Claude Juncker é o mais dedicado deles.

(Escrevi isto neste blogue, em 10.1.13. Repito-o com gosto hoje, dia em que Jean-Claude Juncker foi nomeado presidente da Comissão europeia)

sexta-feira, agosto 14, 2015

As presidenciais socialistas


Não vale a pena esconder que o Partido Socialista tem um problema com as eleições presidenciais. Esse problema existe há muito, emergiu noutros sufrágios e inscreve-se na matriz daquele que é o partido central da democracia portuguesa.

Cavaco Silva foi o único presidente eleito no atual regime que não contou com o apoio socialista. Num país sociologicamente com uma maioria eleitoral de esquerda, foi mais uma vez a dificuldade decisória dentro do PS que facilitou a sua eleição. Em 2016, isso pode repetir-se.

À parte o caso muito particular de Soares em 1986, onde verdadeiramente se jogou, pela última vez, a trincheira esquerda-direita, numa eleição que ajudou a fixar o perfil essencial do regime, apenas Sampaio correspondeu, com rara precisão, ao “candidato ideal” do PS: sem particulares anti-corpos à esquerda e com um forte potencial de entrada no eleitorado político do centro, e até de alguma direita urbana.

De certo modo, embora bastante menos afirmado à esquerda, Guterres aproximar-se-ia agora desse perfil. A sua ausência da contenda volta a soltar no PS os “demónios” da divisão.

Sampaio da Nóvoa é um candidato que emergiu na indignação anti-troika. Cavalgou com inteligência essa onda justa e, com o tempo, foi elaborando sobre ela um discurso culto. Em seu torno, desenhou-se entretanto uma espécie de “neo-pintasilguismo”, o que, simultaneamente, seduz uma certa esquerda mas irrita outras áreas socialistas, que o associam, creio que injustamente, a um projeto intervencionista anti-sistema, onde ressoam memórias do PRD. Os militares e os ritos organizados que andam à sua volta ajudam muito a essa suspeita. Para a direita, é uma “bête noire”, o que, devendo ser tomado à conta de um forte elogio, reduz o seu proselitismo no centro político e não facilita a eleição.

Maria de Belém é o Guterres possível. Mulher, incomparavelmente mais carismática do que seria o excelente e mais denso Oliveira Martins, tem uma certa fragilidade, que é tocante mas não deixa de ser uma fragilidade. O seu perfil atrai o pessoal dos altares, tem uma simpatia natural capaz de vir a gerar um certo “appeal” popular, mesmo em setores da direita, à qual não assusta. Com o tempo, perceber-se-á também que tem uma leitura muito bem sistematizada do país. Há, porém, quem ache que pode ser “pêra fácil” nos debates com Marcelo ou que verá a sua assessoria no grupo Espírito Santo ser explorada pelo justicialismo de Rio. Dentro de algum PS, a sua candidatura é vista como uma espécie desforra do “segurismo”, o que muito limitará a mobilização da máquina dominante.

Como se diz na minha terra, o PS, em matéria presidencial, volta a estar metido num “lindo molho de brócolos”.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Boutros-Ghali e a ONU

Boutros Boutros-Ghali, um antigo secretário-geral das Nações Unidas, morreu agora no Cairo, aos 94 anos. Este católico copta egípcio, colaborador próximo de Anwar el-Sadat, de quem foi ministro, fazia parte de uma geração de francófonos que teve expressão diferenciada em vários países árabes, uma tradição hoje praticamente desaparecida, com a eventual exceção de alguns sectores monoritários no Líbano.

Conheci-o uma noite em Paris, num jantar na embaixada egípcia, aí por 2011. Recordo um homem sereno, já bastante marcado pela idade, com um sorriso agradável e opiniões "mainstream" sobre a vida internacional, muito típicas da cultura retórica das Nações Unidas. E, contudo, haviam sido precisamente as Nações Unidas a deixar uma marca traumática na sua carreira, como ficou patente num livro de memórias que escreveu e que, embora longe de ser brilhante, me ajudou a perceber um pouco mais sobre a organização.

Boutros-Ghali foi o único secretário-geral na história da ONU que não foi reconduzido no cargo. E isso não aconteceu por acaso. A administração Clinton não lhe perdoou a sua rejeição à "American-led" intervenção da NATO na Sérvia, aquando do conflito no Kosovo, sem mandato multilateral legitimador. Hoje já se conhecem melhor os sórdidos bastidores da manobra de Washington para colocar Kofi Annan no seu lugar e que também passou por oportunos "leaks" sobre atuações mais polémicas de Boutros-Ghali na região dos Grandes Lagos e na Somália.

Nestes tempos em que a diplomacia portuguesa desenvolve os seus melhores esforços para bem posicionar António Guterres na corrida à Secretaria-geral da ONU, é importante que saibamos retirar as devidas lições de casos como o de Boutros-Ghali.

O equilíbrio que permite a um secretário-geral sobreviver no cargo passa por um jogo de compromissos que será suicida esquecer. Quem pense que um candidato ao lugar pode, com frontalidade, apresentar um programa de trabalho que reduza, ainda que minimamente, as margens de manobra dos "powers that be" dentro da organização engana-se redondamente. As Nações Unidas são uma organização muito complexa, não imune a regras de cinismo e de "faz-de-conta". Um SG não pode, por exemplo, e em absoluto, tomar decisões que possam ser vistas como desequilibrando o papel da Assembleia Geral, do ECOSOC e do Conselho de Segurança e, no seio deste, afetar ou iludir a preeminência dos P5 (cinco membros permanentes).

Para ser eleito secretário-geral, um candidato precisa de ter uma noção muito clara dos compromissos que terá de vir fazer, da mediocridade de certos setores dentro da máquina que não deve tentar pôr em causa, dos egos e idiossincrasias com que terá forçosamente de se acomodar e, acima de tudo, da necessidade de ser habilmente modesto quanto à agenda que quiser apresentar.

Conseguirá permanecer sem sobressaltps como SG uma figura que não se atreva a contestar os poderes fáticos dentro da organização, procurando ganhar o espaço nas eventuais contradições que esses poderes tiverem entre si, mas tendo permanentemente em atenção que isso o não deve levar a tentar "crescer" no lugar através de um jogo de alianças que possa desafiar, ou ser "desleal", aos equilíbrios que permitiram a sua eleição.

António Guterres sabe tudo isto muito bem.

segunda-feira, junho 03, 2013

Polónia

Por razões que seria fastidioso explicar, mas que se prendem essencialmente com a leitura que faço dos equilíbrios desejáveis no seio da União europeia e da Europa - que são coisas um pouco distintas - fui sempre um apologista da entrada da Polónia nas instituições comunitárias. Aculturei essa perceção com António Guterres, cuja determinação europeísta cedo soube marcar o rumo oficial português perante o processo de alargamento.

Cheguei há algumas horas a Varsóvia, para encontros profissionais, no quadro da minha nova vida de "ex-aposentado" - para recuperar a feliz designação que me foi atribuída por um comentador deste blogue. Já aqui não vinha há uma década. Entre 1995 e 2003, visitei várias vezes a Polónia, sempre em trabalho, acompanhando António Guterres e o presidente Jorge Sampaio, mas igualmente para proferir conferências (duas vezes no magnífico Instituto europeu de Natolin, outra a convite de antigo MNE Bronislaw Geremek, para falar a jovens polacos, no âmbito da Fundação Jean Monnet, a que presidia) ou a chefiar missões bilaterais. Também no âmbito da OSCE me desloquei a Varsóvia, ido de Viena. (O meu amigo e ex-jornalista do "Expresso" Luís Tibério espalhava aos quatro ventos que, durante anos, quando me tentava telefonar, eu estava sempre na Polónia....). Tive e tenho excelentes amigos polacos, na política como na diplomacia, todos tributários de uma cultura marcada por tempos muito difíceis, exigentes e frequentemente bem trágicos. E por uma magnífica capacidade de saber "dar a volta por cima" às coisas.

De cada vez que volto à Polónia fico surpreendido com a vitalidade deste país, com o seu crescimento, com a sua vontade de se afirmar como um poder sólido no contexto europeu. Conheço as linhas dominantes do pensamento estratégico que por aqui se cultiva, as preocupações com a evolução recente da Rússia, mas, igualmente, o cuidado posto no processo político que se desenvolve em dois vizinhos complexos: a Ucrânia e a Bielorrússia. E, naturalmente, é sempre importante acompanhar o sentido do diálogo entre Varsóvia e Berlim, bem como os vários capítulos da particular relação da Polónia com os Estados Unidos, agora que a França passou a contar menos na sua política de alianças. Um país não escolhe os seus vizinhos, pelo que há que perceber que, muitas das vezes, a sua liberdade para selecionar os seus amigos está ligada aos imperativos ditados por essa mesma vizinhança. E a Polónia contemporânea sabe bem perante quem tem uma dívida de gratidão, seja na ajuda à sua libertação da tutela soviética, seja, mais tarde, na sua integração europeia, com a liberdade e o progresso que daí lhe adveio.

Há semanas, num debate em Lisboa comemorativo do dia da Europa, contei uma história que me foi relatada, um dia, por um amigo polaco, nascido em Varsóvia, no final da guerra. A capital polaca era então uma montanha de escombros. Esse meu amigo cresceu nesse ambiente, que estava, no tocante a Berlim, muito bem retratado no impressionante filme de Rosselini cuja projeção tinha antecedido as nossas intervenções (de Viriato Soromenho Marques, de José António Pinto Ribeiro e de mim próprio, para além de representantes das embaixadas francesa e alemã em Portugal). Um dia, os pais desse meu amigo, então com cinco ou seis anos, levaram-no a Cracóvia. Era e é uma belíssima cidade, felizmente poupada pelas destruições da guerra, que fica próxima do campo de concentração de Auschwitz. Para esse amigo, então muito jovem, a surpresa foi imensa: no seu imaginário de criança, habituado à "paisagem" de Varsóvia, todas as cidades eram ruínas. Ora, afinal, havia cidades onde as casas estavam de pé, onde a guerra não parecia ter passado. 

Na minha intervenção no debate, procurei explicar que nós, em Portugal, durante a segunda guerra mundial, vivíamos como que "em Cracóvia", pelo que nunca poderemos entender verdadeiramente a Europa se não soubermos estar à altura das preocupações de quantos experimentaram um mundo bem mais dramático, feito de guerra, de morte, de ocupação, seguido de um totalitarismo violento, reciclado por ondas repressivas, que se prolongou por décadas. Não é, assim, de estranhar que esse países valorizem o desenvolvimento que entretanto obtiveram, à custa de imensos sacrifícios e renúncias. E que tudo isso molde a sua idiosincrasia nacional.

Nota: as belas casas que se vêm na imagem, na clássica praça Rynek, são reproduções feitas com base em documentos e desenhos anteriores à segunda Guerra mundial, um trabalho que só ficou concluído em 1962. Depois do conflito, a praça era apenas um amontoado de pedras e ruínas. 

domingo, outubro 16, 2016

Aí, Valente!

                      
Algum país ansiava pelo regresso de Vasco Pulido Valente. A sua pausa na escrita jornalística, por alguns meses, aparentemente para concluir um livro, criou uma expetativa de que a retoma da sua coluna no "Público", bem como a anunciada nova colaboração semanal no "Observador", viessem a revelar a falta que, lá no fundo, ele fazia à pátria. Ainda não dei conta da primeira mas já li a segunda e, tenho que confessar, foi aquilo que se pode qualificar como um regresso pífio. Um texto sem inspiração, previsível, destituído de garra, com banalidades a propósito do quotidiano e clichés sobre os seus habituais inimigos de estimação.

Sigo Vasco Pulido Valente com alguma atenção, e muitas vezes com interesse, desde há muitos anos. Desde "O Tempo e o Modo", passando pelos seus livros (creio ter lido todos) e alguns dos seus surgimentos mediáticos, para além da fugaz e muito pouco notável fase política. Nos últimos anos, a inegável qualidade do seu português e algumas "trouvailles" bem esgalhadas trouxeram popularidade à coluna que tinha no "Público", embora uma experiência televisiva tivesse revelado as limitações expressivas da figura, pouco ajudada por uma voz desagradável, um tom arrogante e um discurso tartamudeante.

O modelo de crónica que Valente utiliza é vetusto, vem direto do nosso século XIX, em que o historiador se especializou. Baseia-se numa denúncia cáustica, com esforçada graça, das figuras da moda, política ou mediática, quase sempre numa caricatura do género "o rei vai nu", muito em sintonia com o prazer da má-língua que o português adora.A fórmula: tudo o que luz por cá é medíocre, banal, pretensioso e, quando tem alguma graça, é porque mais não é senão uma cópia deslavada de algo que o "déjà vu" de Pulido Valente (que tudo leu e tudo sabe) nos mostra que, afinal, era já conhecido por quem conhece as coisas. No fundo, Portugal é a "choldra", é a "piolheira", como dom Carlos chamava ao país em que reinou até à esquina do Arsenal.

Como é sabido, este tipo de crónicas de escárnio e mal-dizer é, entre nós, uma receita com sucesso quase sempre garantido. Há um visível concorrente de Valente no "Diário de Notícias" e na "Sábado", embora com uma azia vesicular que já começa a cansar. E há outros cultores do modelo, desde uma caixadóculos direitolas de taxa arreganhada, que se desunha para ter uma graça que nunca consegue ter, até outros que ousam, de quando em vez, dizer bem de alguma coisa, o que logo lhes fragiliza o estatuto de profissionais do arraso.

Pulido Valente não escapou - ganhei uma aposta com isso - ao óbvio da moda: dizer mal de Guterres. O gosto do português de tentar liquidar quem, de entre nós, atinge alguma notoriedade é um vício nacional de regra. Se o mundo escolheu o antigo primeiro-ministro para a ONU, só havia dois caminhos: falar da "irrelevância" da ONU (para desqualificar o feito) e elencar os "defeitos" da personagem. Foi o que Valente fez, sem chiste e sem chama.

Um amigo meu teimava em que Pulido Valente não ia cair nessa esparrela: "ele vai ter a superioridade de ignorar Guterres, vais ver!". Não teve essa "superioridade", pelo que teve, como eu previa, o seu contrário, isto é, essa inferioridade. Ganhei assim a aposta de uma refeição no Gambrinus onde, na mesa do canto, escondido atrás de uma multidão de brasileiros, lá iremos encontrar Vasco Pulido Valente, o "Carlinhos" dos Bilhetes de Colares de A.B. Kotter, como José Cutileiro o crismou e lhe retratou os consumos.

terça-feira, junho 10, 2014

Desmaios

Cavaco Silva desmaiou durante as cerimónias do 10 de junho, que hoje estão a ter lugar na Guarda. Um presidente é um cidadão como qualquer outro, tem as fragilidades de uma pessoa comum e este tipo de situações deve ser tido como natural. Porém, para a imprensa e para a curiosidade pública, não deixa de ser um "fait divers" que abala a rotina de uma cerimónia. Mas que não é inédito, como um dia testemunhei de perto.

Em 28 de outubro de 1995, eu tomava posse no governo presidido por António Guterres. Por um mero acaso, fazia-o juntamente com os ministros e, como era de regra, com o secretário de Estado da presidência do Conselho de ministros, dias antes dos restantes colegas secretários de Estado. Era uma circunstância excecional, que tinha a ver com a urgência da minha deslocação ao Luxemburgo, para acompanhar Jaime Gama, onde tínhamos para resolver um berbicacho, numa complicada e inadiável negociação europeia sobre pescas que estava em curso.

O ambiente naquele espaço do palácio da Ajuda era abafante. A mudança de ciclo político trouxera à posse do novo governo uma imensa multidão, que se acotovelava e prolongava mesmo pela escadaria de acesso. Tratava-se do fim do "cavaquismo", desse período de uma década em que Cavaco Silva, depois de chefiar um governo minoritário de curta duração, obtivera duas maiorias absolutas, num Portugal favorecido pelo forte fluxo dos ventos financeiros comunitários, que se faziam sentir na paisagem do país e no bolso dos portugueses.

Viviam-se os últimos dias do segundo mandato de Mário Soares como presidente da República. Durante quase dez anos, entre Soares e Cavaco, havia-se travado uma guerra política surda, que se agravara nos últimos tempos. A saída de cena do primeiro-ministro e a vitória dos socialistas nas eleições legislativas do início de outubro devem ter constituído o culminar desejável de mandato para o presidente cessante. Também na presidência se iria assistir a um novo ciclo. Jorge Sampaio era o candidato anunciado às eleições que teriam lugar em janeiro do ano seguinte. Cavaco Silva, primeiro-ministro cessante, seria o seu adversário.

Voltemos à posse. Cavaco Silva estava ao lado de Barbosa de Melo, presidente da Assembleia da República, e de Mário Soares, naquela que seria a consagração de António Guterres, seu sucessor à frente do executivo. Estava pálido e tenso, o que, no meu caso, levei à conta do peso pessoal de uma cerimónia que punha termo a um longo mandato. Segundo as sondagens, as hipóteses de ser eleito para a presidência, contra Jorge Sampaio, não eram muito fortes, pelo que o pressão emocional daquele momento deveria ser muito grande.

Foi então que, de repente, as nossas atenções foram chamadas para um reboliço à volta de Cavaco Silva. Sentira-se mal, desmaiara, foi retirado para trás da cena. A sala ficou em suspenso. Por um instante, temeu-se algo de grave, mas felizmente logo ficou claro que fora uma indisposição passageira, provocada por uma noite mal dormida, na morte de um familiar. Lembro-me de, naqueles escassos minutos, ter trocado olhares perplexos com Jorge Sampaio, que estava num grupo de pessoas à nossa frente. Creio que, sem o dizermos, nos interrogávamos sobre se aquela súbita "humanização" de Cavaco não poderia vir a ter efeitos nas eleições presidenciais, que se realizariam poucas semanas depois. 

Não teve. Sampaio viria a ganhar as eleições à primeira volta. Cavaco Silva saiu de cena, para só regressar uma década mais tarde, para o substituir. O tempo político de Cavaco Silva acabará em 2015. Quase duas décadas medeiam entre os desmaios que protagonizou em cerimónias públicas.

Rockwell