sexta-feira, maio 13, 2016

Governo brasileiro


Que conclusões se podem retirar da composição do novo governo brasileiro?

A primeira é que este é, sem a menor dúvida, o governo mais à direita desde o fim da ditadura militar. Desde o discurso assumido aos seus integrantes, passando pelos acordos conhecidos com certos setores conservadores, nada infirma esta perceção.

Desde logo, pode deduzir-se que Michel Temer optou por um executivo muito político, que obedece em absoluto aos cânones tradicionais. Nunca terá estado em cima da mesa a hipótese de um governo com uma forte componente técnica, que poderia ser apresentada como uma resposta de responsabilidade, e até de alguma rutura com o passado recente. Tudo indica que o aparelhamento do executivo eca acomodação de fortes interesses prevaleceu, em absoluto, no seu desenho. Temer terá "costurado alianças", como se diz no Brasil, em troca de cargos. Os grandes "barões" estaduais do PMDB estão presentes ou representados, o que parece indicar que irá haver uma imediata sangria dos lugares que o PT ocupava. Curiosamente, foram feitos alguns gestos para com alguns antigos aliados de Lula, o que, contido, na lógica política local, pode não ter um significado político profundo e corresponder apenas a um "pick and choose" individualizado.

Temer terá procurado dar dois fortes sinais. 

A nomeação de Henrique Meirelles para a Fazenda (Finanças) é um recado forte aos mercados. Meirelles, um antigo quadro do Banco Boston que Lula levou para o Banco Central no seu primeiro mandato, é uma figura muito respeitada e a garantia de uma ortodoxia financeira que, no entanto, parece muito longe de ser compatível com o prosseguimento do tecido de políticas sociais que disse pretender manter intocadas. Meirelles não estará muito distante da orientação de Levy, o nome do penúltimo ministro de Dilma para o cargo, que acabou por não resistir às pressōes.

A designação de José Serra para a chefia da diplomacia é uma escolha interessante. Por um lado, compromete o grande partido da oposição ao PT, o PSDB, com a solução Temer. Embora Serra tenha "vida própria", a verdade é que o Brasil olha para ele como uma caução de Fernando Henrique Cardoso a este governo. Para o mundo exterior, José Serra é uma escolha sossegante, "a safe pair of hands". Serra, que quereria a Fazenda, terá exigido o controlo do Comércio Externo, reduzindo em grande parte o poder do ministério da Economia. Conhecendo relativamente bem o Itamarary, um ministério que sempre esteve confortável com o PSDB e menos com o núcleo próximo do PT que o dominou na última década, a escolha de Serra deve ser um alívio.

Duas notas finais.

A nomeação de Blairo Maggi para a Agricultura e de um nome fraco para o Ambiente revela o peso da "bancada ruralista" e do "agronegócio" sobre a preservação ambiental. Para certos setores ambientalistas internacionais, onde o nome de Maggi é diabolizado, isso não serão boas notícias.

Péssimo e incompreensível sinal é a circunstância do governo não ter nenhuma mulher. É uma decisão reveladora de uma imensa falta de sensibilidade política. 

O sorriso da hospedeira

A solução governativa que hoje está instalada em Portugal tem a virtualidade de nos fazer regressar à política. Basta ver o assanhamento que a questão do subsídio público a algum ensino privado trouxe para o debate para podermos constatar como eram exageradas as notícias de que a estreiteza das margens orçamentais havia esbatido, de uma vez por todas, as fronteiras entre esquerda e direita, pela imperativa imposição de um único caminho.

Já passei a fase em que alimentava o quotidiano com esse tipo de disputas, até porque, desde há muito, aprendi que há bastante mais vida para além das ideologias. Mas acho saudável que, mesmo com alguma inevitável demagogia à mistura, se abra um debate em termos de opções em matéria de políticas públicas. Considero que é um estímulo para abanar a anomia cívica que por aí anda promover um bom combate de ideias.

Este governo tem aberto a porta a que, pela primeira vez desde há muito tempo, algumas premissas, dadas como assentes no pensamento que domina o « mainstream » da nossa política, tenham sido cruzadas por interrogações. Sou crítico de algumas das agendas « fraturantes » que o Bloco tem vindo a colocar sobre a mesa. Não tanto por objeções quanto à sua razão de fundo, mas muito mais por um  juízo negativo sobre a sua oportunidade, face a uma opinião pública que pode ter alguma dificuldade em achá-las conformes com a hierarquia da sua agenda de preocupações. Porém, tenho de reconhecer que, sem essa pressão « à esquerda », o PS português dificilmente abandonaria o espartilho de « neutralização » ideológica em que caminhava e que hoje marca muita da social-democracia europeia. 

Há, contudo, duas grandes questões a que só o futuro responderá e ambas se interligam. A primeira é saber se a adoção, cada vez mais evidente, de uma governação política mais à esquerda irá, ou não, alienar setores do tradicional eleitorado socialista, ao mesmo tempo que os louros dessa deriva progressista são colhidos pelos seus parceiros. A segunda questão é o « teste do algodão », isto é, se, no final de contas a « geringonça » funciona ou não, naquilo que verdadeiramente interessa e que não é tão pouco como isso : retoma do crescimento,  redução do desemprego, melhoria significativa da condição de vida dos mais pobres, sustentação das políticas públicas essenciais, enfim, um Estado social eficaz com o bem-estar das pessoas no seu centro.

Para já, perante alguma inevitável perplexidade face aos números económicos que por aí surgem nas últimas horas, sigo a velha regra que adoto nas viagens aéreas, em ocasiões de turbulência : olho para a cara das hospedeiras. E, até ver, António Costa continua a sorrir.

quinta-feira, maio 12, 2016

Fernanda Câncio

Creio que nunca encontrei pessoalmente Fernanda Câncio, a jornalista do DN que foi namorada de José Sócrates. Apenas falámos telefonicamente duas vezes: aquando de um perfil que estava a redigir sobre uma efémera figura política da nossa praça que era minha conhecida e a propósito da comunidade portuguesa em Paris, depois dos atentados terroristas de há meses. Aqui entre nós, reconhecendo que escreve bastante bem e tem uma frontalidade e uma coragem não despiciendas, estou muito longe de fazer parte do "clube de fãs" das suas cruzadas pelo "politicamente correto" em questões de género e outras temáticas "fraturantes", em que se soma, com regularidade, à agenda obsessiva do Bloco.

Escrevo motivado pelo longo artigo que Fernanda Câncio ontem publicou na "Visão", onde descreve, com pormenor, a saga em que se vê envolvida nos dias que correm, por ter sido arrastada para todo esse magma de lama que dá pelo nome de "Operação Marquês". Li aquilo e não quis acreditar. E não sei o que mais me chocou: se o reino kafkiano em que se tornou o nosso sistema de justiça (e de injustiças), um polvo à solta, aproveitado por alguns e que se projeta como uma séria ameaça sobre todos; se a canalhice de alguma dita comunicação social, confrades profissionais de Fernanda Câncio. Noto esta frase significativa: "Não tenho forma de ganhar esta guerra porque o simples facto de a travar significa que já a perdi". Os patrulheiros que só leem "as gordas" e estão à coca de tudo quanto possa favorecer o caso contra o antigo primeiro-ministro desiludam-se: de nada do que Fernanda Câncio diz no texto se pode inferir qualquer juízo sobre a inocência ou culpabilidade de Sócrates - tema que não é para ali chamado.

Repito: não conheço Fernanda Câncio mas, depois de ler o que escreveu, quero daqui deixar-lhe a minha solidariedade. Ela não precisa dela para nada, mas a mim faz-me falta dar-lha para ficar de bem comigo mesmo.

quarta-feira, maio 11, 2016

Os pontos no "i"

A jornalista que me contactou, cujo nome não notei, foi simpática e educada. Disse-me que falava do jornal "i" e pediu-me uma declaração sobre um determinado assunto, que não cheguei a deixar que explicitasse. 
Foi ontem à tarde e a minha resposta foi imediata: "Tenho muita pena, minha senhora, mas, para o jornal "i", não falo. O seu jornal, há semanas, fez uma notícia falsa e em tom de baixa intriga a meu respeito e, não obstante eu ter escrito de imediato ao vosso diretor, não só não corrigiu o título na plataforma online como não teve a delicadeza de me dar uma resposta. Por isso, não falo para o "i"".
jornalista, que se mostrou conhecedora do assunto que havia motivado a minha indignação, foi correta e não insistiu. E eu fiquei de bem comigo mesmo. Há dias felizes, não há?

terça-feira, maio 10, 2016

Dr. José Aguilar



Esta imagem tem muito de rural ou, no mínimo, de periferia urbana. E, contudo, as aparências iludem. O caminho que aqui se vê não está, em linha reta, a mais de cem metros do centro da cidade de Vila Real. Era por ali que eu ia para a escola primária. Era assim Vila Real.

Descobri ontem esta fotografia (e copiei-a com o iPhone), numa exposição organizada pelo Museu do Som e da Imagem de Vila Real, que reúne trabalhos fotográficos antigos do dr. José Aguilar, um dos escassos nomes da advocacia local desse tempo, figura desaparecida já há 35 anos.

José Aguilar era uma personalidade bastante interessante, um profissional destacado do foro, com obra ficcional publicada, muito bom cultor da língua. Tinha um perfil físico caraterístico, que sempre me evoca a imagem que criei do brasileiro urbano que via na "Manchete" ou na "Cruzeiro": homem ligeiramente avantajado, escasso cabelo puxado para trás, bigodinho fino, elegantemente vestido, creio que fumador de boquilha (mas posso estar enganado). Usava chapéu e recordo bem a sua figura a passear na avenida onde ficava o seu escritório ou a passar, pausado, nos corredores do "Club" da terra. Tinha um tom de voz algo roufenho, que o filho homónimo herdou.

Há alguma razão particular para me lembrar desses pormenores de um advogado de Vila Real? Provavelmente, muitas pessoas da minha geração terão gravadas na sua memória impressões idênticas: sobre o dr. José Aguilar bem como sobre algumas escassas dezenas figuras dessa Vila Real de então. Não muitas mais. Porque a cidade - e era assim em Vila Real como o seria certamente em Viseu, Leiria ou Portalegre - "eram" essas figuras. 

Vila Real era um mundo muito pequeno, claramente identificado nos seus contrastes, em que alguns nomes sobressaíam e, com naturalidade, marcavam a paisagem urbana que o miúdo de então que eu era iria fixar para sempre. Havia uma meia dúzia de advogados na cidade, uma dúzia de médicos, um grupo maior de professores do liceu cujos nomes todos conhecíamos, ao lado de outros profissionais de destaque. Eles eram o "establishment", uns com mais poder e influência, outros relevados pelas importância local das suas ocupações. Eram algumas dezenas de personalidades conhecidas, do comércio à função pública, do exército aos "proprietários" ou "capitalistas". Alguns eram intelectuais nas horas vagas, gente que dava umas horas à escrita e às ideias, como era o caso do dr. José Aguilar.

Pergunto-me o efeito que projetará nas novas gerações vilarrealenses uma exposição como aquela que ontem visitei, para além da curiosidade da descoberta, nas imagens, de pedaços reconhecíveis da cidade muito diversa em que hoje vivem. É que a graça que achamos à reportagem fotográfica do nosso passado é sempre irreproduzível e não é transferível. Por mim, devo dizer que passear pela Vila Real da objetiva do dr. José Aguilar me "rejuvenesceu", deu-me bastante prazer e dá-me agora o ensejo de enviar à sua família, em especial ao Zé e ao Jói, um abraço de velha amizade.

segunda-feira, maio 09, 2016

A universidade dos guizos

Na sua imperdível coluna no DN, o meu amigo Zé Ferreira Fernandes refere-se hoje a uma antiga "universidade" para carteiristas, que a tradição coloca no Porto, nos anos 50. O jornalista situa-a na Areosa; a minha versão, já com décadas, dava-a em Ermesinde, ali ao lado.

Segundo rezam as crónicas, os discentes eram nela ensinados com um espantalho, cheio de guizos, de cujas vestes aprendiam a "aliviar" os tansos, sob a orientação especializada de velhos cultores da arte, useiros e vezeiros das multidões das feiras da região.

(Não deixa de ter graça um facto bem real: na linguagem dos carteiristas, o primeiro contacto com a vítima, quando o "operador" procura detetar a parte do corpo onde está a carteira, chama-se precisamente "toque do guizo". Por que será?)

Ferreira Fernandes relembra hoje esta história, a propósito da famosa "Quina", uma carteirista de 86 anos que, desafiando as regras da aposentação, teima em continuar a exercer a sua atividade, o que a obriga a regulares e menos simpáticos encontros com a polícia.

Ora o "Correio da Manhã" - esse órgão de "formação" que dá alento ao dito de que "o crime compensa" - informa que "Quina" mora precisamente... em Ermesinde! E esta, Zé Ferreira Fernandes?!

Stalin


Chegou cedo, sentou-se numa das primeiras filas. Há muito que o vejo fazer isso, nos colóquios a que por ali costumo assistir ou participar. Sempre engravatado, de fato escuro, ar grave. É uma figura, podemos dizer "histórica", de um grupo de extrema-esquerda que, por uma persistente e quiçá injusta falta de apoio popular, nunca atravessou as portas do parlamento. Os textos que ainda hoje subscreve no site do grupo, a cuja liderança regressou há pouco, não enganam: mantém-se fiel às raízes, ao passado, às figuras referenciais da ideologia que o guiam desde há muito.

Nesse dia da passada semana, eu falava num colóquio a propósito da Europa (e hoje é o dia dela). A certo passo, para melhor ilustrar a ideia de que o medo ao comunismo foi uma das forças que ajudou a cimentar a unidade europeia do pós-guerra, repeti uma graça "batida": "Não foram só Schuman e Monnet os grandes impulsionadores da Europa comunitária. Uma certa "gratidão" neste domínio é também devida a Stalin". Instintivamente, do podium, atravessei a sala com um olhar e vi o velho revolucionário agitar-se claramente na cadeira, erguendo a cabeça, fitando-me severo, ao ouvir a referência, que, sei lá!, deve ter sido interpretada como desrespeituosa para com o "pai dos povos" - como um amigo brasileiro costuma referir-se-lhe, entre a brincadeira e o sério. Fiquei curioso.

Josef Stalin foi uma figura que mobilizou emocionalmente milhões de pessoas, antes, durante e depois da guerra (que acabou fez ontem 71 anos), durante a qual titulou a liderança da União Soviética. Não vem para aqui chamada qualquer avaliação sobre a sua figura histórica, odiada e amada em doses maciças. Nunca fui tocado pela admiração pela personagem, que acho, no entanto, de recorte fascinante. Um dia, obriguei um grupo de embaixadores da OSCE, numa visita à Geórgia, a fazerem um desvio até Gori, terra onde Stalin nasceu e onde havia uma sua estátua numa praça, que eu queria fotografar. Mas já não encontrei aberto o "Museu Stalin", para minha arrelia eterna. Detesto perder estas oportunidades, confesso.

Mais recentemente, em Moscovo, deparei com uma manifestação cheia de bandeiras vermelhas, com foices e martelos, e decidi que era um ensejo raro de ver de perto uma reunião pública do único partido que por ali nunca fora impedido de existir, desde 1917. Numa das área do comício, havia uma banca com pins e objetos de antiguidade comunistas, desde velhos exemplares da Pravda e do Izvestia (e um facsimile do Iskra) até estatuetas e imagens de todo o género de Lenine. Aproximei-me e pedi: "Stalin!". Pensei oferecer uma lembrança a um amigo que vivia em Paris e cujas reiteradas invocações de Stalin mereciam a oferta. Vi a perplexidade espelhada na cara dos vendedores. Seria uma provocação? Olharam para o meu ar de turista e deduziram que deveria ser um estrangeiro ainda tocado pelo "grande Stalin". Um minuto depois, trouxeram um pin, de lata manhosa e claramente feito há pouco tempo, por que me pediram uns imerecidos rublos. Ali, logo atrás da "Casa dos Sindicatos", junto à muralha do Kremlin onde a uma sua discreta estátua, que poucos notam, continua a figurar, a memorabilia disponível de Stalin não estava claramente à altura.
  
O Partido Comunista Português foi, como todos os seus congéneres, bem estalinista até tarde. Lendo os textos do PCP nota-se que o seu "phasing-out" do estalinismo, sendo relativamente rápido para os ritmos do partido, não incorporou uma forte autocrítica e não foi marcado por uma "diabolização" da figura de Stalin. Aliás, nos sectores mais profundos do comunismo português, sempre me pareceu ter ficado uma marca residual de grande respeito, quando não mesmo de afetividade, pelo líder que conduziu a URSS nos anos trágicos da agressão nazi.

Há pouco tempo, durante um colóquio em que intervim numa cidade do Alentejo, comentei que o traçado das fronteiras de algumas Repúblicas da Ásia Central, que, vai para pouco mais de uma década, visitei e estudei com algum pormenor, parecia ter sido feito por Stalin com o deliberado propósito de fragmentar etnias e estabelecer um jogo fragilizante de tensões regionais. No final do colóquio, um velho comunista tomou a palavra e criticou a minha interpretação sobre a "perversidade" de Stalin, que achou deslocada e sem sentido, embora me parecesse que desconhecia, por completo, a realidade concreta que eu tinha abordado.

Mas não é necessário ir muito longe no tempo e na idade dos protagonistas para apreciar a adulação a Stalin. Encontrei, há pouco, nas minhas desarrumadas papeladas antigas, um texto publicado no "Luta Popular", o então diário do MRPP, no dia 2 de maio de 1975, intitulado "Vida e Obra de Estaline". É um documento magnífico, denso, adjetivado pela agitação revolucionária. Subscreve-o o "camarada Abel", uma promissora figura da "jota" do MRPP, que hoje é mais conhecido por José Manuel Durão Barroso. Deixo-lhes só esta pérola: "Onde quer que estejamos, mal se pronuncie a palavra Estaline um poderoso campo magnético isola à direita toda a espécie de oportunistas, unindo ferreamente à esquerda os verdadeiros comunistas e os autênticos revolucionários".

domingo, maio 08, 2016

Memórias das Lajes


À expectável ligeireza da memória de Durão Barroso sobre o processo político português que antecedeu a Cimeira das Lajes, numa entrevista ao "Expresso"´(link não disponível, síntese essencial aqui), respondeu Jorge Sampaio com um elucidativo e detalhado artigo no "Público". Convém ler os dois textos para formar uma opinião.

Mas, se se quiser ir um pouco mais longe, importará ler o indispensável trabalho que Bernardo Pires de Lima escreveu sobre o assunto - "A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013).

Na recensão que fiz a esse livro na revista "Relações Internacionais", assinalei precisamente o episódio Barroso-Sampaio: "No processo interno português, o mais interessante de observar é talvez a relação que Barroso foi mantendo com o presidente Jorge Sampaio sobre a matéria. O presidente, desde o primeiro momento, deixou bem claro que considerava um mandato internacional essencial para poder dar a sua “luz verde” a um engajamento formal de Portugal numa eventual ação militar. Mas Sampaio também sabia que não estava nas suas mãos evitar uma posição política por parte do governo favorável a uma intervenção unilateral americana, se esse fosse, como veio a ser, o caso. O livro acompanha muito bem este processo diacrónico, que se presume tenha momentos algo tensos. Deduz-se que Barroso teve um extremo cuidado formal com vista a não cometer deslizes que pudessem ser lidos como uma quebra de lealdade institucional ou do dever de informação. Fica a ideia de que Sampaio pressentiu, desde muito cedo, como tudo iria acabar. Barroso levou a água ao seu moínho, Sampaio salvaguardou a sua posição institucional. Tudo bem?"

Afinal, como eu intuía, não estava "tudo bem"...

Chaves


O Desportivo de Chaves regressou à primeira liga de futebol. É um dia importante para essa bela e simpática cidade.

Parabéns aos flavienses!

Encontradouro

Fiz ontem a conferência de encerramento do Encontradouro, o festival literário que juntou em São Martinho de Anta, em Sabrosa, no belíssimo Espaço Miguel Torga, desenhado por Souto Moura, dezenas de convidados e um público muito interessado que, durante três dias, acompanhou vários debates e iniciativas culturais.

Na apresentação, dedicada a "O Local e o Poder", procurei refletir sobre a génese e as mutações temporais das relações de força que influenciam os processos decisórios à escala nacional, em matéria de políticas públicas, especulando sobre a hierarquia dos poderes fácticos que se revelam determinantes em Portugal e o seu cruzamento, embora nem sempre uniforme e consonante, com os modelos institucionais que formalmente gerem o país.


Tive um grande prazer em poder colaborar com uma excelente iniciativa, num dia importante para os transmontanos, escassas horas antes da abertura do decisivo Túnel do Marão. Na minha intervenção, e a esse propósito, não deixei de constatar que "fica provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça..."

sábado, maio 07, 2016

O local e o poder

Acho que quando alguns dos participantes neste Encontradouro ouviram dizer que era um antigo embaixador na Unesco que ia encerrar este encontro - um festival literário - ninguém teve a menor dúvida de quem era o orador: Luis Filipe Castro Mendes.Pois bem, desenganem-se, não é! Talvez para o ano, seja ele a vir...


Quero começar por agradecer o simpático convite que me foi feito para estar aqui hoje.Foi já há alguns meses, creio que neste mesmo espaço, numa conversa que aqui tive com o presidente do município de Sabrosa, o meu amigo José Marques, que a ideia surgiu.


Não sou escritor, tive uma vida como cultor dessa língua terrível que é o oficiês e nunca publiquei nenhum livro, apenas editei alguns volumes de compilação de textos - o que está para a escrita como a noite está para o dia. Hoje, dedico-me a tentar provocar ondas nas redes sociais através de pequenas notas, num blogue e nessa loja dos 300 das redes informáticas que é o Facebook. Nelas escrevo sobre o quotidiano ou registo, sem pretensões, algumas memórias avulsas, que é aquilo que se dedicam os velhos, antes que se esqueçam de tudo...


No resto, a minha escrita resume-se a colunas na imprensa - e, como antes se dizia, os jornais leem-se num dia e, no dia seguinte, servem para embrulhar peixe (hoje a ASAE já nem isso deixa, imagino eu). Duas dessas colunas, porém, merecem algum destaque. São notas críticas sobre restaurantes. E assim aprendi que nos podem pagar para nos incitar a comer. Não fosse eu já ter dado o fígado pela pátria ao longo da minha carreira, acho que me passaria a dedicar a isto como modo quotidiano de vida... Aqui fica a história singela da minha relação com a escrita.


Assim, e não obstante as minhas qualificações neste domínio não rimarem claramente com este festival, fiquei muito honrado com o convite e aproveito para felicitar vivamente o Município de Sabrosa e este fantástico Espaço Miguel Torga, e organizador científico do evento, Francisco Guedes, pelo êxito evidente desta iniciativa.


E, já agora, devo confessar que não esperava que o governo "da Nação", como antes se dizia, se tivesse dado ao cuidado, num ato de extrema gentileza, de abrir, precisamente hoje, o túnel do Marão, com o objetivo de facilitar a minha deslocação... Mas registo a amabilidade do gesto, como é natural... Fica hoje provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça...


Mais a sério, aproveito para saudar todos quantos aqui vieram colaborar com a sua presença e a sua palavra, - alguns meus amigos, outros pessoas que me habituei a admirar - neste magnífico exercício cultural. A sua participação é, em si mesma, um elogio à coragem e à louvável ambição desta terra, que se orgulha de aliar Magalhães a Torga, ao lançar uma iniciativa desta dimensão, juntando artes e letras - como se dizia noutros tempos. A ousadia de Sabrosa foi assim muito bem correspondida, uma vez mais.


Pelas razões que já referi, a mim, que encerro estes trabalhos, colocou-se-me a interrogação sobre que tema deveria aqui abordar. Surgiram-me várias ideias, mas nenhuma, confesso, ligada à literatura, porque se há coisa que aprendi com a vida foi a não me meter por caminhos que não domino. Também pensei abordar o tema dos diplomatas e da literatura, mas achei melhor não me meter por aí, para não ter de elencar colegas, o que é sempre polémico.


Assim, decidi revisitar uma questão que sempre me fascinou: a ligação do local ao nacional, numa perspetiva de gestão de poder, abordada através da questão do peso relativo das cidades. Isso pareceu-me adequado aqui, em Sabrosa, uma terra que, com iniciativas como esta e com espaços desta natureza, procura romper a fronteira, mudar a geografia, de uma certa forma elevar o local ao nívelnacional. São assim alguns comentários soltos sobre este tema, em jeito nada académico e numa perspetiva assumida de sociologia empírica, que vos vou aqui deixar.


Há um lema que ficou famoso, atribuído ao político americano Tip O’Neill, segundo o qual “toda a política é local”. A ideia é bastante simples, como todas as boas ideias: nas decisões públicas, o impacto na proximidade é aquele que, no final de contas, determina o essencial da sua perceção.


Não é correto inferir daqui que a formatação de uma vontade política, à escala nacional, é apenas um somatório dos interesses expressos pelas realidades locais. Porém, a verdade é que, nas democracias mais representativas e em que a “accountability” se faz mais perante os eleitores do que perante os líderes partidários (pelo resulta claro que não estou a falar de Portugal...), o fator local prevalece nos interesses mais relevantes a salvaguardar pela comunidade.


Basta pensar em Estados com estruturas regionais, sejam de natureza federal ou não, para sermos levados a concluir que a dimensão de proximidade se constitui hoje como uma componente essencial de legitimação da ação política.


E, como é óbvio, as cidades situam-se no centro dessa mesma realidade. Eu não sou um especialista em cidades, sou apenas um mero utente delas. Faço as contas. Na minha vida, morei, sempre por alguns anos, em dez cidades, de dimensão e importância muito diversas - de Vila Real a Nova Iorque, de Oslo a Londres, de Luanda a Paris, do Porto a Brasília, de Viena a Lisboa.


Mas se todas essas experiências foram marcantes e me ajudaram a olhar o mundo de outra forma, a verdade é que ser um cidadão com um estatuto diplomático nos retira sempre alguma riqueza, em matéria de imersão cívica, que só a cidadania local nos poderia conceder.


Talvez por isso, um pouco como os emigrantes que se focam no que deixaram para trás, tive sempre o cuidado de me manter muito atento a Portugal e às nossas cidades, à sua especificidade, à identidade que projetavam no passado e ao que agora projetam. Há décadas que viajo por este país, conheço-lhe todas as suas cidades, a esmagadora maioria das vilas e, aqui entre nós e com imodéstia, quase tudo aquilo nelas vale a pena na sua rede gastronómica - uma das riquezas culturais que é preciso saber explorar. Agora, regressado de vez a Portugal desde há mais de três anos, mantenho um olhar ainda mais atento, até na dimensão retrospetiva, sobre as cidades portuguesas que melhor conheço.


Talvez por ser oriundo da província, daqui de Trás-o-Montes, tive sempre uma perceção muito nítida da diferença que existe entre as nossas cidades, da evidente hierarquia que entre elas se estabelece, seja em riqueza, cultura e qualidade de vida, seja no modo como elas conseguem objetivar a expressão dos seus interesses relevantes à escala nacional. Acho, aliás, talvez porque é um dado tido por adquirido e que se torna banal, por fazer parte da nossa paisagem de todos os dias, que o poder diferenciado das cidades continua a ser uma das componentes pouco trabalhadas da nossa cultura democrática. Desde logo, porque sendo uma realidade histórica - ligada à geografia, à demografia, ao PIB e a variáveis sócio-económicas - ela teima em persistir mesmo para além dos regimes.


Nascido em Vila Real, recordo, desde muito jovem, o modo peculiar como, durante o Estado Novo, a afirmação da realidade política à escala local se fazia junto do poder central. O modelo era muito interessante, porque, perante uma evidente escassez de recursos públicos para acorrer, por exemplo, a necessidades de equipamentos para a melhoria das condições de vida, esse modelo assentava numa espécie de pequenos lóbis, centrados em figuras com projeção “lá em baixo”, em Lisboa, as quais conseguiam, alegadamente a custo, através dos seus contactos privilegiados, convencer os decisores centrais a alocarem alguns financiamentos. Era assim que aparecia dinheiro para estradas, escolas e fontanários ou outro tipo de equipamentos que, de alguns maneira, pudessem reduzir os custos de perifericidade.


Estamos perante um modelo muito primário, quase rústico, mas que tinha a superior "vantagem", se assim se pode dizer, no quadro da cultura da ditadura, de estruturar uma rede de subordinações, de dependências, de gerar um clima de favores, que potenciava a arbitrariedade e, por essa via, um reforço dos poderes fácticos.


Alguns objetarão que, nesse tempo, o modelo de representação de interesses “bottom-up” era esmagado pelo centralismo.A meu ver, um certo pragmatismo do poder ditatorial levava a que as coisas não fossem exatamente assim, a que houvesse uma tentativa de preservar uma certa legitimidade, assente numa suave presença da vontade local, através da relativa audição das personalidades de relevo ou dos dirigentes nomeados.


Voltando à minha terra, ali a Vila Real, numa escala diferente e muito menos poderosa, era também assim que se passavam as coisas. A cidade, como todas as outras, não dispunha de uma representação sufragada pelo voto, e, muito em especial, não tinha interesses económicos fortes na sua proximidade que conseguissem fazer ouvir a sua voz junto do poder político central. Mas a cidade não deixava de existir como sujeito de algum poder residual. Essas tais figuras mais destacadas de que antes falei faziam um papel de representação e, no fundo, de alguma legitimação do próprio regime junto das populações, na medida em que este fosse capaz de ser sensível a alguns anseios atendíveis.


Era um mundo mesquinho, pequeno em todos os sentidos, miserável no método e ridículo na forma.
A cidade era isso: era o Governador Civil (escolhido por ter alguma ligação local e que, de uma qualquer forma, se havia ilustrado junto de alguém em Lisboa), era o presidente da Câmara (tutelado pelo Governador, também sempre nomeado, rodeado de escassos vereadores designados da mesma forma), era o presidente local da União Nacional, eram uns escassos deputados “da Nação”, como então se dizia. A isso se somavam, nesse tempo e no caso de Vila Real, umas tantas figuras, quase sempre com um diploma ou um titulo ou, na falta de estes, com alguns cabedais, na expressão da época. Tínhamos, além disso, um general e um padre com bons contactos. E por ai ficava a nossa "massa critica" de influencia.


Este modelo, com maiores ou menores adaptações, com mais mais ou menos padres, generais ou doutores, era o retrato do poder da generalidade das cidades que eram capitais de distrito. Abaixo desse nível, as coisas era menos expressivas e a vontade local tinha muito maior dificuldade em fazer ouvir-se.


Eu referi Vila Real, mas, mantendo-me neste Norte, poderia falar de Bragança, onde preponderaram nomes como Trigo de Negreiros, Camilo de Mendonça ou Gonçalves Rapazote. Ou de Chaves, ou de Mirandela ou mesmo de pequenas aldeias - daquelas que os escritores gostam de utilizar no fim das introduções dos seus livros, para dar um toque de ruralidade lúdica.


Mas há muito outros casos por esse país. Nesta análise impressionista, acho que, fora da escala Lisboa-Porto, uma cidade, ainda nortenha, como Braga constitui, com Coimbra, um dos melhores exemplos de um modelo de expressão política local com algum sucesso de representação de interesses à escala nacional, naquele tempo da ditadura. Não sei se esse privilégio se deve à duvidosa honra de ter sido o ponto de partida para o golpe militar de 28 de maio - daqui a dias alguns saudosos comemorarão, pela certa, os 90 anos passados sobre esta data - mas a estátua de Santos da Cunha lá está em Braga, como uma espécie de “instalação" da expressão política local.


E até o nosso novo presidente gosta de se reivindicar nos seu afeto ao clube da terra (que tem a grande virtualidade de se chamar Sporting), de que parece que aprendeu a gostar quando o respetivo estádio se chamava 28 de maio.


Mas falemos também de Coimbra. Coimbra foi, durante muitos anos, um fenómeno muito particular. É que, muito para além das dimensões materiais, Coimbra funcionou, durante o Estado Novo, como um original centro de produção simbólica do poder. O facto do ditador ter por lá nascido politicamente, entre borlas, capelos e beatas, e muito do pessoal político da ditadura ter sido daí recrutado (o que era comum à República, bastando lembrar SidónioPaes e Afonso Costa), conferiu a Coimbra uma centralidade política que ia muito para além do seu real estatuto enquanto cidade. É claro que muito do pessoal dito "de Coimbra" não era de lá, era da província, mas era o carimbo académico coimbrão que lhe dava esporas de ascensão potencial na ladeira da governação. No fundo, pode dizer-se que Coimbra era representada em Lisboa pela sua Universidade – o que também nos deve ajudar a refletir sobre o modo como algumas instituições podem, elas próprias, moldar as urbes onde se situam e fazê-las projetar em círculos mais alargados.


E isto conduz-nos necessariamente ao penúltimo dos exemplos, ao Porto. Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia consegue obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto tinha, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.


Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismoesclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político. Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: “o Porto trabalha, Lisboa diverte-se” -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro “novo” de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril.


Porém, o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo. Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a revelar a fraude da abertura marcelista.


Mas foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu relativo isolamento político.Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou muito cedo para a partilha do poder político central.E por lá tem ficado, há uma décadas de forma bastante mais influente, nos tempos que correm apenas através de alguns “tokens”, que às vezes parecem destinados a garantir uma presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, eu imagino que a pergunta deve surgir: “E do Porto, quem é que se põe?”. Eu sei que pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas é esta parece ser a realidade. Desta vez, no novo governo, o Porto não se pode queixar... Porém, não obstante a inegável excelência de muito do pessoal político que os governos foram buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real da cidade no jogo político nacional.


Mas Porto desenha um outro modelo curioso, sendo quase um “case-study”. Refiro-me ao seu perfil reivindicativo. A cidade do Porto assume sempre um discurso tenso, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa.


Com regularidade, o Porto convoca os poderes económicos e os nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de permanente batalha virtual com Lisboa. Porém, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo levar a água ao seu moinho de vento, melhorar o aeroporto, ter as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna é sempre capaz de arrancar.


Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque é verdade que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa. Só que o Porto, por muitas queixas que tenha, consegue, apesar de tudo, ter uma capacidade reivindicativa, e uma capacidade de imposição, muito maior do que todas as outras urbes de província.


Por uma evolução perversa do processo de construção do poder em Portugal, as cidades, enquanto tal, perderam peso, deixaram de ter uma capacidade para se projetar no centro das decisões. Algumas figuras, mais mediáticas ou influentes nas maquinas partidárias, conseguem compensar isso. Mas muitas cidades estão longe de o conseguirem. Hoje, o poder que resta às cidades - e, contudo, não é tão pouco como isso! - é a expressão do poder local, como forma de representação paralela e até, às vezes, de contra-poder ao executivo central, o qual, tendo álibis convenientes para não respeitar a lei das finanças locais, costuma jogar a gestão dos fundos comunitários como uma espécie de “saco azul”. Ora a gestão dos fundos é uma reserva de discricionariedadeque, como é sabido, encontra sempre artifícios técnicos para, como se diz no meu Ministério dos Negócios Estrangeiros, “proteger os amigos, atacar os inimigos e, aos outros, aplicar a lei”. Sem o país sob formato regional, onde poderiam encontrar um espaço de recriação e controlo de alguma “devolution”, as cidades são assim quase obrigadas a viver nesta relação tensa de forças, como todos os dias se vê no muro das lamentações que é a comunicação social.


É claro que, no final deste roteiro sobre a afirmação das cidades, Lisboa é um caso atípico. Capital do país, o seu município beneficia imenso do facto das instituições nacionais estarem aí centradas. Não apenas as instituições de natureza política, mas todas as restantes dimensões que se acolhem no local de onde emana poder, das grandes empresas à Gulbenkian, das principais universidades à comunicação social relevante. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "the powers that be".


Uma capital é sempre uma cidade diferente, que ganha nacional, e até internacionalmente, um protagonismo que é produto dessa centralidade muito particular. Há quem veja no autarca-mor de Lisboa uma espécie de ministro, umas vezes "sombra", outras vezes iluminado pela cumplicidade com o poder central, mas sempre acima dos seus pares. Pode usar-se a presidência do município de Lisboa como passo para uma putativa chegada a Belém. Ora a Câmara do Porto não parece ser o caminho certo para tais voos, como ainda há meses se viu. E isso faz toda a diferença.


Digo isto apenas para tornar uma vez mais evidente que persiste, no Portugal contemporâneo, uma hierarquia entre as cidades. Isso é talvez inevitável. Só o que não é inevitável é que essa hierarquia se reflita, por virtude modelo de organização e funcionamento das políticaspúblicas em Portugal, na limitação dos cidadãos e das instituições para afirmarem, à escala nacional, os seus interesses. E isto conduz-nos à questão fundamental: numa sociedade democrática, será normal que os cidadãos possam ver parte substancial dos seus interesses subalternizados apenas pelo facto de provirem de urbes com menor peso?


Estamos perante um problema de harmonia do tecido nacional que tem de ser pensado. E só pode sê-lo se conseguirmos garantir que a organização sociedade cívica respeita, cada vez mais, o principio da subsidiariedade - isto é, a necessidade das decisões deverem ser tomadas a um nível o mais próximo possível dos sujeitos a que respeitam. E isso implica duas coisas: uma eficiente (e respeitada) lei das finanças locais e uma nova organização da responsabilidade do exercício das funções de Estado, através de um quadro muito claro dos níveis desejáveis de descentralização do poder local.


Fica por discutir a questão sobre se tudo isso não deveria articular-se, num modelo de novo tipo, num quadro regional. Esse é um tema que vai continuar a andar por aí, porque, não obstante podermos considerar que o tempo não será o mais adequado para o suscitar, a racionalidade aponta para que seja esse modelo aquele em que as cidades, num quadro de desigualdade e desequilíbrios territoriais como o que temos atualmente em Portugal, encontrariam o seu espaço ideal de expressão de interesses, simultaneamente com a preservação das suas singularidades.


Deixo-os com esta interrogação sobre a regionalização. Mas também com a ideia de que não é possível desenhar um equilíbrio à escala nacional, em que os interesses de todos os cidadãos estejam protegidos, sem que o país seja capaz de entender que, a nível local, emergem hoje, em alianças institucionais que passam muito para alem das fronteiras, iniciativas que fazem hoje parte da nova identidade de Portugal.


Volto à ideia com que comecei. O essencial é quase sempre local. O sucesso ocorre no aproveitamento inteligente daquilo que nasce das comunidades, onde se cultiva a respetiva diferença, onde se estimula o novo - às vezes ligado ao antigo, mas preso ao quotidiano e pressentido como tal por quem vive perto ou quem se sente próximo. Esta é a verdadeira riqueza de um país, ao que me, também hoje aqui em Sabrosa, foi dado observar.


Sabrosa, 7 de maio de 2016

As mesas ao fundo do túnel


A abertura no túnel do Marão, que hoje tem lugar, não facilita apenas a possibilidade dos transmontanos se deslocarem para lá da serra. Abre também o ensejo a que muitos mais os visitem.

Por isso, e, como antes se dizia, "a pedido de várias famílias", aqui vai um brevíssimo guia para quem pretenda aproveitar uma ida a Vila Real e aí experimentar a gastronomia local.

Para comer bem, uma cozinha tradicional com toque não excessivamente contemporâneo, num ambiente muito agradável, serviço atento e simpático, o visitante deve ir ao "Cais da Vila" (259 351 209), num armazém anexo à antiga estação de caminho de ferro.

Uma das mais antigas casas de pasto da cidade, o "Chaxoila" (259 322 654), foi renovada e modernizada e oferece hoje, na antiga estrada nacional para Chaves, em pouco adiante do quartel, uma bela cozinha, com uma lista marcada pela tradição gastronómica da região.

Num registo de preços mais reduzido que os dois nomes anteriores (ambos com espaços ao ar livre, quando o tempo ajuda), uma excelente "terceira via" pode ser o "Lameirão" (259 346 881), muito próximo do "Chaxoila", com uma lista curta de cozinha "autêntica", que varia todos os dias, onde o toque regional e a simplicidade com qualidade é a marca da casa. Que posso dizer mais senão revelar que é a minha "cantina"?

Para quem andar pelo centro da cidade, uma escolha agradável, num ambiente típico, é o "Terra de Montanha" (259 372 075), um pouco acima da Capela Nova. Na zona do circuito (não sabem o que é o Circuito de Vila Real?), em Abambres, vale a pena fazer uma visita ao "Maria do Carmo" (259 322 407), onde, na minha juventude, passei muitas tardes de "lerpa", a beber "lapardana" (uma mistela com cerveja, vinho branco e açúcar que não só já não servem como eu não aconselharia).

Finalmente, para uma refeição de petiscos, coisas simples e boas, experimentem o (ainda novo) "Tralha" (nas instalações onde funcionou o saudoso "Espadeiro", junto ao Jardim da Carreira) e o velho "Cardoso", perto do Cabo da Vila, com as suas famosas "francesinhas".

Ainda duas notas. Quem visita Vila Real não pode deixar a cidade sem se munir da histórica bola (leia-se "bôla") de carne e dos ultra-famosos covilhetes, também de carne, da Pastelaria Gomes, na avenida Carvalho Araújo. Ali a dois passos, junto à igreja da Misericórdia, dê uma saltada à Casa Lapão, para dali levar as cristas de galo, um imperdível pastel com recheio de ovos.

Aqui fica um mini-guia de Vila Real, para quem gosta das coisas boas da mesa.

sexta-feira, maio 06, 2016

Obama e o mundo


Notei o desapontamento em muitas caras quando, na tarde de hoje, no painel de encerramento da 2ª Conferência de Lisboa, afirmei que Obama nos vai deixar um mundo mais inseguro do que aquele que existia ao tempo em que assumiu funções. Apesar da liderança demonstrada na negociação nuclear com o Irão e da descompressão nas relações com Cuba (numa "esquina" da ilha, chamada Guantanamo, não cumpriu o que prometeu), o saldo da política externa de Obama é medíocre.

Claro que gostei do discurso do Cairo, como agora apreciei o de Hanover, mas a paz e a segurança não se fazem com palavras. A sua gestão das "primaveras árabes" foi péssima, com responsabilidades muito sérias, partilhadas com a França e com o Reino Unido, na exploração ilegal do mandato do CSNU quanto à Líbia, com as consequências à vista das costas europeias. Quanto a Israel, mostrou a tibieza habitual dos presidentes democráticos e não deu um único passo relevante na resolução do conflito - embora Telavive continue a ser mantido como o principal recetor da ajuda externa dos EUA. No Iraque, a diplomacia americana foi um completo desastre, o "phasing-out" do Afeganistão é pavoroso e nada conseguiu fazer no caso importantíssimo do Paquistão. Grande parte da tragédia da Síria deve-se ao desregramento de toda essa zona e, salvo o compromisso das "armas químicas" (com Lavrov a ajudar), os EUA revelaram uma falta total de estratégia para a região. Obama não é culpado pela emergência do Estado Islâmico, mas a América é a grande culpada do desmembramento regional que lhe facilitou o surgimento e expansão. Mas serão os EUA responsáveis por não resolver problemas dos outros?, perguntarão alguns. Eu respondo: são, porque, no essencial dos casos, foram eles que ajudaram fortemente à sua eclosão. O presidente de um país que se arroga o direito de intervir em todo o mundo, na defesa dos seus interesses, tem a responsabilidade de ter de responder pela sua ação global. 

Para o que à União Europeia importa, Obama deixou-se envolver pela agenda da "nova Europa" (e pela Alemanha) no conflito ucraniano, que já havia conseguido contaminar setores de Bruxelas, a começar pela Comissão. O resultado é o que se vê: Moscovo "empochou" a Crimeia, empatou o conflito e controla a crise, com Putin mais popular do que nunca. Do lado de cá, a NATO (que é um "heterónimo" dos EUA) foi obrigada a instalar no seu seio um certo pânico e a descrispação parece agora pouco provável.

Se não nos sair em rifa Trump, teremos Hillary Clinton a suceder a Obama. A senadora democrática que esteve ao lado de Bush na invasão sem mandato do Iraque, que teve um gestão "republicana" do State Department e que tem um postura internacional muito ao estilo da "guerra fria", promete uma presidência '"hawkish" e confrontacional com Moscovo, com tensões que não deixarão de provocar clivagens na NATO e na própria Europa. Essa é também uma das partes da herança (negativa) de Obama.

A eleição de Obama foi, para mim, uma imensa alegria. Como homem, é uma figura respeitável, vê-lo na Casa Branca foi um salto importante para o mundo e tomou algumas decisões internas muito corajosas. Porém, no plano diplomático, foi uma imensa desilusão.

O túnel


Era um jovem engenheiro, originário do Porto, que a vida levou um dia para Vila Real, nos anos 50 do século passado. Rapidamente chegou a presidente do município e, mais tarde, a Diretor de Estradas e deputado pelo distrito. Chamava-se Humberto Cardoso de Carvalho e era meu tio. 

A serra do Marão era o “muro” que ele se tinha habituado a atravessar, entre as duas cidades a que, para sempre, ficou ligado afetivamente. Um dia, ouvi-o falar pela primeira vez no “túnel do Marão”. Foi, seguramente, há mais de meio século. 

Recordo as análises que fazia sobre as “cotas” dos dois lados dos montes, com as alternativas possíveis. Sei que abordara a ideia “lá em baixo”, em Lisboa, mas pode imaginar-se que nem a melhor boa vontade do seu amigo Arantes e Oliveira permitiria dar sequência ao sonho. Mas nunca deixou de falar nele, até ao final da vida.

À época, para mim, que era uma criança, a imagem de um túnel era apenas a de uma realidade ferroviária, muito pouco sossegante, que conhecia à saída da Régua e à chegada ao Porto. Ou no Tamel. Ouvir dizer que os automóveis também se podiam enfiar por aqueles buracos negros soava-me a coisa muito estranha. Mas ele mostrava fotografias de obras idênticas, na França e na Suíça, com um entusiasmo que ajudava a tornar a ideia, não apenas plausível, como desejável.

Para quem, como eu, nasceu em Vila Real, atravessar o Marão, nesses tempos de infância e adolescência, era uma programada aventura. A serra impunha-se como uma imensa barreira entre o nosso mundo e o mundo, com as suas centenas de curvas que davam direito a enjoos e uma longa viagem. Era o tempo em que se ia ao Porto aos “especialistas” ou para uma estada em casa de familiares. Ou para estudar na faculdade. Eram horas de caminho, de cansaço, de distância.

Foi a construção do IP4 que começou a mudar o Marão. Mas, também, a espalhar muitos mortos por aquela via perigosa, até que um “ovo de colombo” veio reduzir a carnificina regular. O desejo de uma autoestrada, que pudesse quebrar o isolamento de Trás-os-Montes, não era um dispêndio inútil em « betão » e défice. Era um gesto mínimo de solidariedade nacional para com uma das regiões mais sacrificadas do país, vítima de uma interioridade que, por muitos e maus anos, Lisboa desprezou. E, sem o túnel, nunca haveria autoestrada.

Amanhã, com a abertura oficial do túnel do Marão, a geografia vai mudar no norte do país, a coesão nacional reforça-se e a justiça faz-se. Neste dia, vou lembrar o meu tio Humberto Cardoso de Carvalho, um cidadão de vontade e coração, a primeira pessoa que me fez ver que, ao fundo daquele túnel com que persistentemente sonhava, estava um país para o qual Trás-os-Montes tinha um indiscutível direito a ter fácil acesso.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quarta-feira, maio 04, 2016

Notícias do anonimato

É muito interessante, por reveladora, a diferença entre os comentários insertos na minha página do Facebook e neste blogue.

Na primeira, porque quem ali surge tem um nome em princípio verdadeiro, os comentários são em geral urbanos, mesmo quando profundamente discordantes e até com alguma agressividade.

Já neste blogue, como se sabe, o anonimato é possível. Não é coisa que eu aprecie, confesso, mas admito que os anónimos (ou os nomes falsos) possam subscrever comentários, positivos ou negativos, desde que assumam uma atitude razoável. Por vezes, anónimos e não-anónimos "pegam-se" entre si e, em certos casos, há excessos. Mas esse é um terreno natural.

Porém, há alguns outros anónimos aqui do blogue (ou nem por isso, porque, através dos IP que ficam registados, já descobri o nome verdadeiro de alguns desses "corajosos") que, conhecedores da permissividade com que me divirto a testar os limites, tentam fazer passar insinuações soezes, provocações rasteiras, sempre dotados da imensa liberdade de expressão e potencial impunidade que a ausência de nome lhes estimula. E nem imaginam o que por ali chega! Insultos, ameaças, até físicas, são o pão nosso de cada dia, tendo-se, aliás, agravado nos últimos tempos. É um excelente espelho sobre algum país que por aí anda, podem crer. Às vezes, penso: coitados, não devem ter mais nada para fazer e esse anonimato agressivo deve confortá-los. Por isso, associo-me a essa terapia ocupacional.....

Manifesto

RECONFIGURAÇÃO  DA  BANCA  EM  PORTUGAL

–  DESAFIOS  E  LINHAS  VERMELHAS  –
  1. Tudo indica que os problemas de reconfiguração da banca em curso em Portugal permanecem, infelizmente, uma questão de relevante actualidade. É público e manifesto o desagrado e preocupações com o modo como esta questão têm sido abordada e decidida, e com a evolução daí resultante. O recente resgate do BANIF é apontado, a vários títulos, como um mau exemplo, que não pode repetir-se: excessivo voluntarismo, pouca transparência, deficiente gestão estratégica, falta de liderança política, destruição de valor e custos significativos e prolongados, para a economia portuguesa. Em particular, são motivos de inquietação  a metodologia e objectivos adoptados pelas autoridades europeias, não devidamente compensados pela actuação dos decisores nacionais.  O  receio de que as falhas identificadas no processo possam vir a afectar qualquer  outro banco português, com graves consequências para o sistema bancário e para o futuro do País, justifica, em nosso entender, uma tomada de posição clara por parte dos que não concordam com o recente curso dos acontecimentos.         
  2. A actividade bancária constitui um sector estratégico, que assegura a intermediação indispensável ao funcionamento de qualquer economia e ao desenvolvimento das suas relações com o exterior. As avaliações e decisões dos bancos  em matéria de concessão de crédito seleccionam, na prática, quais  as empresas e projectos que irão ser financiados. Desse modo, influenciam a composição das actividades produtivas, o crescimento  e a criação de emprego. Por outro lado, o sistema bancário – pelo contacto directo com a diversidade da actividade económica – pode e deve desempenhar também um relevante papel na concretização de iniciativas de investimento e comércio, parcerias e aquisições ou fusões.
  3. A importante função da banca numa economia só poderá no entanto ser assegurada se o sector estiver adequadamente estruturado. Não sendo garantidas as necessárias condições de competitividade na configuração do sector,  é previsível que qualquer banco, ao preferir menor risco e maior rendibilidade nas suas aplicações, oriente as poupanças que lhe são confiadas para os centros de maior dinamismo, agravando assim eventuais desequilíbrios regionais, não apenas no espaço nacional mas também no europeu.
  4. A diversidade de instituições financeiras  pode, pois,  contribuir significativamente para uma concorrência mais transparente, melhor aderência às realidades económicas  e sociais locais, e até para mais eficaz resposta às políticas monetárias, evitando-se  assim a dependência excessiva em bancos “too big to fail” e outros conglomerados financeiros, com os associados riscos sistémicos conhecidos.  Não é aliás por acaso que na Europa e noutras regiões desenvolvidas do globo a propriedade das instituições bancárias tem sido preservada em estreita relação com as comunidades nacionais e regionais.
  1. A crise do sector bancário em Portugal (a partir de 2011) e o recente arranque da implementação da União Bancária Europeia tornam inevitável uma profunda reconfiguração do nosso sector financeiro. É indispensável que esta seja acompanhada com realismo , rigor e transparência  pelas autoridades nacionais e europeias, de forma a permitir que, em complemento de uma adequada política fiscal, o sector bancário em Portugal  contribua para o reforço da poupança nacional e do  investimento produtivo no País.  Uma reconfiguração mal orientada, pelo contrário, redundará previsivelmente no agravamento do actual quadro de estagnação económica e desemprego, podendo mesmo contribuir para  suspeitas e rejeição do projecto de integração europeia.
  1. A diversificação da origem do capital é neste contexto factor determinante da concorrência, i.e.  a estrutura  bancária tem de assentar na diversidade  das instituições accionistas e  da correspondente origem, por forma a que  as empresas portuguesas possam beneficiar de fontes de financiamento provenientes de diferentes nacionalidades e de centros de interesse distintos. Tal não poderá  manifestamente ser garantido, se a propriedade da banca privada portuguesa vier a estar concentrada e/ou dominada por instituições de um qualquer único país estrangeiro.
  1. O triste caso do resgate do BANIF indicia a adoção de um paradigma inaceitável, que não pode ser replicado em casos futuros. Se o que parece é, a actuação do BCE neste caso, em vez de viabilizar soluções com menores custos e igualmente credíveis, antes reflecte uma estratégia que coloca a banca privada nacional na dependência de um muito escasso número de bancos de um país estrangeiro. Além de colocar Portugal numa posição de evidente vulnerabilidade relativamente a quaisquer questões bilaterais ou sistémicas, tal estratégia resultaria em claro detrimento da concorrência e da diversificação do relacionamento bancário externo.
  1. Neste caso do BANIF é também patente que a actuação do BCE menosprezou a dimensão da concorrência e a possibilidade das empresas portuguesas poderem beneficiar de fontes de financiamento  provenientes de nacionalidades diversas e de centros de interesse distintos. Não é compreensível a razão para terem sido afastados do concurso concorrentes de nacionalidade distinta, detentores de licença para o exercício da actividade bancária e com ofertas de montantes significativamente superiores.
  1. Não cabe ao BCE pré- definir a configuração do sector bancário de qualquer país, nem o quadro das suas relações externas. Uma vez definido claramente,  no âmbito  da União Bancária, o quadro estratégico a prosseguir, sem discriminação  de países ou regiões geográficas, compete aos reguladores nacionais, em articulação com os respectivos governos, zelar pela apropriada estruturação, sustentabilidade e solvabilidade da configuração resultante. O regulador nacional não é uma mera delegação do BCE, e não pode eximir-se  a prestar contas às entidades nacionais, especialmente nesta fase de transição para a União Bancária, em que as decisões críticas são tomadas pelo BCE  mas os inerentes custos são suportados exclusivamente pelo país em causa.
  1. No processo de venda do BANIF, registaram-se igualmente fragilidades e omissões na actuação das autoridades portuguesas e em particular do regulador, nomeadamente ao aceitarem – sem devido escrutínio e explicita ponderação de alternativas – um processo de resolução que, além de não devidamente experimentado na Europa, acarreta significativos custos para o sistema bancário e os portugueses.
  1. O caso do BANIF leva-nos a rejeitar a repetição de desenlaces semelhantes  em casos futuros, e desde logo para o Novo Banco e o BCP. Em particular, não é aceitável  que a reconfiguração do nosso sistema bancário possa decorrer em condições menos favoráveis – quanto a prazos e exigências de resgates – do que as facultadas  a outros países europeus,  e que permanecem em vigor.  Há que ter em conta soluções que tornem possível a valorização dos activos, tendo em vista a sua eventual alienação, fusão ou detenção pública a título trasitório. Ou seja, sem recursos públicos adicionais, para além dos requeridos para a continuação da CGD na posse do Estado, uma vez que não é aceitável que, também neste caso, o accionista não deva capitalizar a sua empresa, como é sua obrigação. Acresce que os Tratados em vigor não autorizam discriminações de acordo com a natureza dos accionistas  – privados, públicos ou mutualistas. Compete , pois, ao Governo diligenciar junto das entidades europeias ( e em particular da DGConcorrência) para que as soluções indispensáveis sejam susceptíveis de concretização.
  1. Em síntese, há que assegurar que em futuros casos, incluindo o do Novo Banco, a solução a adoptar tenha em conta a dimensão estratégica ( de longo prazo ) do problema e não somente os aspetos financeiros de curto prazo. Impõe-se por isso que, no caso da venda do Novo Banco, o momento e a forma escolhidos para a sua eventual concretização sejam clara e objectivamente discutidos. Uma extensão do prazo de venda, até Agosto de 2019, tal como a lei permite, poderá justificar-se, tendo em vista o estudo de soluções alternativas, nomeadamente processos de fusão entre instituições, ou de oferta pública de venda (IPO) que assegure um  elevado número de novos accionistas. É igualmente importante que a modalidade de venda escolhida permita que entidades portuguesas relevantes possam participar do processo. Neste contexto não é de excluir, e seria mesmo desejável, a emergência de um banco de capitais portugueses, com expressão significativa no mercado. Importa, assim,  que o processo seja clarificado, definido , tornado público e aberto a todos os potenciais interessados, em totais condições de igualdade,  sendo inadmissível qualquer forma de escolha antecipada dos vencedores.
  1. A finalizar, considera-se indispensável que no âmbito da definição da estrutura accionista do Novo Banco e do BCP, sejam conhecidos os intervenientes que irão contribuir para a clarificação da situação e identificados os responsáveis pela decisão final, por forma a assegurar a transparência do processo, a competitividade do sistema e a sua contribuiçaõ efectiva para o desenvolvimento da nossa economia.
  1. O sector bancário português encontra-se actualmente numa encruzilhada entre dois caminhos distintos: A) reconfigurar-se por forma a conseguir a emergência de bancos fortes ( quer portugueses quer de  nacionalidades diversas) que facilitem e promovam as relações de Portugal com os diferentes continentes; B) aceitar uma redução de autonomia, com crescente dependência da nossa economia do espaço ibérico – como parece decorrer da actuação  recente das instituições europeias – interrompendo e contrariando a longa tradição portuguesa de participação activa e independente na globalização mundial.
O primeiro caminho exige um combate político determinado, com  demarcação clara, por parte dos responsáveis – sem por em causa compromissos europeus e regras inerentes ao funcionamento da economia social de mercado em que nos inserimos – de uma linha vermelha entre soluções que são aceitáveis e as que  não são admissíveis.

É este o desafio que se coloca aos portugueses e em particular  aos seus governantes.

Lisboa, 28 de Abril de 2016

-  Alberto Ramalheira
– Alberto Regueira
– Alexandra Costa Gomes
– Álvaro Beleza
– Ângelo Correia
– António Bagão Felix
– António Barreto
– António d’Orey Capucho
– António Mendonça Pinto
– António Leite Garcia
– António Santiago Baptista
– Aurélio de Sousa
– Bernardo Frazão Sardinha
– Bruno Bobone
– Carlos Fernandes
– Carlos Melancia
– Carlos Morais
– Carlos Pereira
– Carlos Silva
– Celeste Coimbra
– Clemente Pedro Nunes
– Diogo Freitas do Amaral
– Eduardo Catroga
– Eduardo Madeira Correia
– Eduardo Marçal Grilo
– Feliciano Barreiras Duarte
– Fernando Bello
– Fernando Gomes da Silva
– Fernando Correia da Silva
– Francisco Seixas da Costa
– Henrique Neto
– Henrique Simões dos Reis
– Jaime Lacerda
– Joaquim Lopes
– João Baptista da Silva
– João Cortez de Lobão
– João Duque
– João Ferreira do Amaral
– João Miranda
– João Salgueiro
– João Vieira Lopes
– João Alexandre Oliveira
– José António Girão
– José Ribeiro e Castro
– José Roquette
– José Sales Henriques
– José Torres Campos
– Júlio Castro Caldas
– Luís Janeiro
– Luís Aires de Sousa
– Manuel Pinto Barbosa
– Manuel Ramalhete
– Manuela Ferreira Leite
– Manuela Morgado
– Miguel Beleza
– Miguel Lobo Antunes
– Nuno Diniz
– Nuno Morais Sarmento
– Olga Correia
– Paulino Balão Fernandes
– Pedro Ferraz da Costa
– Pedro Teles Baltazar
– Renato Baptista
– Rui Rio

terça-feira, maio 03, 2016

Nações Unidas

Jorge Moreira da Silva, um dos mais competentes políticos que passou pelos governos de Passos Coelho, é candidato a um lugar equiparado a subsecretário-geral das Nações Unidas. Tenho por ele consideração e sincero respeito pelo modo como está na política. 

Faço votos para que seja eleito: seria mais uma consagração internacional da sua qualidade pessoal como técnico e um orgulho para o nosso país.

Nas redes sociais alguns têm, contudo, dado a ideia de que se trata de um lugar "logo abaixo" daquele a que concorre António Guterres - secretário-geral.

Sem minimamente pretender subestimar a importância do lugar a que Moreira da Silva é candidato, convém deixar claro que o título de subsecretário-geral é atribuído a mais de 70 lugares no quadro das NU e órgãos dependentes, sendo que alguns desses lugares foram ou são já ocupados por alguns portugueses.

Repito: não se veja aqui uma menorização de um cargo que seria sempre muito importante e prestigiante para Moreira da Silva e para Portugal, mas não se confundam ou equiparem as coisas.

segunda-feira, maio 02, 2016

Pinto da Costa


O Futebol Clube do Porto atravessa um mau momento. Provavelmente, um dos seus tempos menos gloriosos das últimas décadas. Não sou portista, não tenho a menor simpatia pelo clube das Antas (sou dos que não dizem "do dragão"), fiquei contentíssimo ao ver o Sporting lá ganhar e acho que faz muito bem àquela gente um forte banho de humildade, embora lamente que disso seja o Benfica o beneficiário.

Dito isto, quero deixar claro que considero inconcebível ler e ouvir o que alguns portistas dizem por estes dias sobre Pinto da Costa. É de uma ingratidão sem limites não respeitar o que ele fez pelo FC do Porto, levando-o de um estatuto de província, de eterno "terceiro", aos píncaros do futebol mundial, com conquistas à escala europeia e global que nenhum clube português alguma vez pode sonhar igualar.

O FC do Porto deve tudo a Pinto da Costa, desde a dedicação de uma vida até à capacidade de gestão do futebol que fica a anos luz de qualquer outro clube português e só igualada ou superada por poucos outros clubes pelo mundo. Claro que para isso contribuiu o "desequilibrar" do poder da arbitragem para o Norte. Mas o que é que faziam, até então, o Benfica e o Sporting? O Porto não ganhou o que ganhou pelas qualidades nutricionais da "fruta" servida no Pérola Negra ou pelo facto de apitos mais ou menos dourados terem mostrado amarelos intimidatórios no início de muitos jogos ou livres à entrada da área nos últimos minutos. Ganhou-os também por isso (há agora quem lhe esteja a suceder e sempre o tivesse pretendido) mas, essencialmente, porque os "andrades" foram, a uma distância imensa, o clube mais bem dirigido do nosso país.

Não aprecio o estilo público de liderança de Pinto da Costa, a sua pesporrência e desprezo pelos adversários, a radicalização regionalista e algo saloia do seu discurso, a fanfarronice a que só Rui Rio teve coragem para pôr cobro. Mas tenho uma imensa admiração pelo grande homem de futebol que é, sem par em Portugal, pelo que entendo como profundamente injusta a rejeição que, por estes dias, sofre por parte de quem lhe deve imensas alegrias. O que não é o meu caso.

Alto e bom som

O documento sobre a Reconfiguração da Banca em Portugal, que subscrevi com outras 50 pessoas, fala por si. Não me compete interpretá-lo, sendo apenas proprietário das razões pessoais por que a ele aderi. 

Considero que o texto faz um apelo necessário à assunção de responsabilidades, seja no âmbito dos atores políticos, seja no domínio da ação do regulador, seja na imperatividade da articulação virtuosa entre ambos. O momento do surgimento do texto pareceu-me adequado, porquanto os dias que a banca portuguesa atravessa são o que são e aproximam-se, neste domínio, decisões da maior relevância estratégica para o país. 

Da parte do chefe do Estado, houve já sinais claros de atenção e preocupação com a crescente concentração da sede do poder bancário em Portugal, o que me pareceu muito positivo. Também o primeiro-ministro assinalou o seu desconforto com os constrangimentos europeus colocados às necessidades de capitalização do principal banco público, nomeadamente limitativos do exercício dos deveres de responsabilidade solidária que lhe são exigidos.

Incomoda-me que, da parte do Governador do Banco de Portugal, não tenham emergido, até agora, mais do que uns murmúrios ligeiros sobre a atitude das instituições europeias, em sede de comissão parlamentar, a propósito da saga Banif. É sabido que a parcimónia nas palavras é geralmente tida como a virtude idiossincrática maior da rua do Ouro. Mas, porque «o regulador nacional não é uma mera delegação do BCE», gostava que o presidente do banco que leva o nome do meu país, alguém que co-gere em Frankfurt uma fatia decisiva da nossa soberania, no seio de um processo atípico em que Portugal serve de «cobaia» no laboratório de uma União Bancária que, não por acaso, alguns se recusam a deixar completar, ecoasse em público as razōes do país que representa. 

O dr. Carlos Costa fala, em geral, em tom baixo. O país ficar-lhe-ia grato se, por uma vez, exprimisse as graves preocupações nacionais, alto e bom som - quer o BCE ou a Comissão europeia gostem ou não. Lamento ter de dizer isto, mas, a título exclusivamente pessoal, se acaso entende que não tem condições para o fazer, então talvez fosse seu dever criar as condições naturais para que alguém o possa vir a fazer em seu lugar.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

domingo, maio 01, 2016

Paulo Varela Gomes


Em 2007, andei uns dias por Goa, com a curiosidade de perceber a ambiguidade de uma sociedade onde alguma lusofobia convive com uma complexa memória afetiva de Portugal.

O embaixador de Portugal na Índia e hoje ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, disse-me então que não podia deixar de falar ali com Paulo Varela Gomes, que então dirigia o centro cultural da Fundação Oriente em Goa. Conhecia-o apenas da escrita em jornais e de programas de televisão. Sabia das suas andanças políticas, onde revelara uma saudável inquietação, que o arrancara de alguma ortodoxia original.

Conversámos durante um jantar. Por um par de horas, tive o privilégio de ouvir a sua leitura viva, polémica e informada da realidade de Goa. Era um homem frontal, que dizia o que pensava, num registo às vezes tenso, muitas vezes irónico. 

Foi a primeira e única vez que falámos. A partir de então, passei a lê-lo com muito mais atenção do que tinha feito até então. E ganhei bastante com isso. Homem de uma escrita límpida e profunda, ficou-me a ideia clara de que crescia e se apurava a cada livro publicado, como se a doença inexorável que o afetava lhe trouxesse um sopro de lucidez essencial.

Morreu ontem. Ao seu pai, coronel Varela Gomes, figura que conheço há muitos anos (e de quem, por coincidência, estou a ler uma biografia recentemente publicada), expresso as minhas condolências.

sábado, abril 30, 2016

"A minha terra é Viana..."


A minha terra não é Viana, mas Viana também é a minha terra. Olho para os velhos álbuns de fotografias e vejo-me com meses nos braços da minha avó, no quintal da casa do Largo Vasco da Gama. Aprendi a andar de bicicleta no Límia Parque e a nadar na Doca, enrijei nas águas do Cabedelo, passei horas de vento, para "apanhar iodo", em tardes na Praia Norte, para onde caminhava através da Ribeira, do Campo e dos Estaleiros. Testemunhei as conversas do meus pais na Caravela e no Girassol, com muitos amigos vianenses que, como eles, há muito se desvaneceram com o tempo. Aprimorei-me no bilhar do Sport e no ping-pong da Nun'Alvares. Enchi-me de cinema no Palácio e no Sá de Miranda. Adolescente, passei horas no Oceano e no Viana-Mar, que vi nascer. Fui em romagem, por madrugadas em bandos divertidos, ao Cais Novo, comprar pão à padaria, lançando da ponte, com o Sales cangalheiro, garrafas ao Lima, com mensagens definitivas para o mundo. Por muitos anos, passei todas as minhas férias "grandes" e Natais em casa da minha avó, rodeado de primos, de tios, de afeto e de brincadeira. Da minha cama de infância, a janela recortava Santa Luzia, cujo escadório subi em teima de records. Da "torre" da casa, o sótão, via-se o mar e eu perdia-me entre livros e coisas mais velhas do que todas as histórias daquela família que, num dia de 1912, veio de barco de Ponte de Lima para a mais bonita cidade do país. E, claro, vivi em Viana muitas Festas da Senhora da Agonia.

Já adulto, Viana passou a ser um destino regular de visita e férias, com momentos muito bons e outros bem tristes. Tenho por lá família, sinto-me ali em casa, uma casa de que conheço alguns cantos melhor do que muitos vianenses mais distraídos. 

O convite que a Câmara de Viana me fez para ser este ano o presidente das Festas da Senhora da Agonia, mais do que honrado, deixou-me emocionado pelo ensejo que me é dado para assim acarinhar a memória do meu pai, um vianense saudavelmente "exilado" em Vila Real, que ao longo da vida me ensinou a gostar daquela terra como se fosse a minha. Em rigor, não posso dizer, como Pedro Homem de Melo um dia pôs na boca de Amália, que "a minha terra é Viana". Mas - quem me conhece sabe isso - é como se fosse. 

sexta-feira, abril 29, 2016

Homenagem

No dia de hoje, em Lisboa, apetece-me muito homenagear esta cidade brasileira, cujo nome me está a escapar.

Um historiador improvável

Já não me recordo da primeira vez que falei com Fernando Rosas. Mas não foi há muitos anos. O seu nome era-me bastante familiar na vida política portuguesa mas, embora caminhássemos do mesmo lado da estrada, acabámos por não coincidir na maioria das opções cívicas que fizemos.

Um dia, convidei-o a ir a Paris com outros historiadores, numa evocação que organizei na embaixada sobre a "Liga de Paris", a estrutura de coordenação política que juntou os exilados na luta contra a Ditadura Militar, implantada em 1926. Desde então, através de amigos comuns, temo-nos visto mais. E, algumas vezes, "contracenámos" nas televisões a comentar a política.

Fernando Rosas deu ontem a sua última lição na Universidade Nova. Foi uma carreira curta de alguém que, à partida, não estava academicamente vocacionado para a História. Mas o país ganhou imenso com essa sua opção, ainda que tardia. A História contemporânea portuguesa encontrou nele uma figura que se constituiu como uma referência muito importante, em especial nos seus trabalhos de análise e desconstrução do salazarismo, bem como na interpretação dos grandes movimentos da sociedade portuguesa no século XX. Com uma excelente capacidade expositiva, Rosas é, nos dias de hoje, e além do mais que é muito, um magnífico divulgador histórico na televisão, que, ao contrário de outros no passado, tem o mérito de aliar um rigor sem concessões a um discurso muito apelativo.

Não conheço bem as regras do mundo académico. Mas, a avaliar por tantos outras pessoas a quem já vi dar a "última lição", acho que o dia de ontem abriu apenas um novo capítulo para aquilo que Portugal pode vir ainda a aproveitar do grande historiador que é Fernando Rosas.

Um abraço para si, Fernando!

... e logo se vai ver!

Ver aqui .