Leio que o Português passa, a partir de agora, a estar presente no ensino de duas escolas secundárias norueguesas, fruto da dedicada ação da minha colega embaixadora
Clara Nunes dos Santos. Os embaixadores, quando querem, podem fazer a diferença.
Quando, em 1979, cheguei à Noruega, meu primeiro posto diplomático, a aprendizagem da língua portuguesa fazia-se na Universidade de Oslo, num minúsculo departamento dependente da secção espanhola, como frequentemente acontece. Era seu responsável o professor Kåre Nilsson que, nesse mesmo ano, lançou o primeiro dicionário de Norueguês-Português. A embaixada prestava o apoio possível (que era muito pouco) a esse núcleo lusófilo, que tinha quatro ou cinco alunos. O grande discípulo de Nilsson, também docente de Português, era o tradutor da nossa embaixada, o professor Johan Jarnaes, um bom amigo que hoje vive a sua merecida reforma em Kongsberg, dedicado à recolha de cogumelos.
Um dia, num intercâmbio universitário com que a embaixada nada tivera a ver, um consagrado professor da Universidade de Coimbra foi a Oslo proferir uma conferência, a convite do departamento de Português. Quando, na véspera, num jantar que lhe foi oferecido na residência, constatámos que a palestra era sobre uma temática muito especiosa, ligada à utilização dos pronomes reflexos num certo tipo de frases, e que seria proferida exclusivamente em português, assaltou-nos uma preocupação: quem iria estar presente na conferência? Quem, entre os noruegueses, conseguiria segui-la?
A nossa preocupação tinha fundamento. No início da sessão, lembro-me bem!, estavam presentes, para além da embaixada "em peso" - isto é, quatro pessoas... - e de uma funcionária do então Fundo de Fomento de Exportação (a quem eu havia pedido que viesse), um representante da secção espanhola (meu amigo pessoal, também "arrancado a ferros") e oito noruegueses, entre os quais Nilsson e Jarnaes.
A palestra lá foi andando, por um pouco mais de meia hora, em estilo académico cerrado, debitando teses complexas. O tom era monocórdico, o assunto era mais do que críptico, mesmo para nós, portugueses, que estoica e patrioticamente íamos resistindo à chatice. O embaixador e eu sentávamo-nos na primeira fila, fingindo estar atentos, "desertos" por que aquilo terminasse. Íamos sentindo, atrás de nós, a sala a esvaziar-se, à medida que o tempo passava. No final, para além dos funcionários da embaixada, notei que restava, num canto, uma figura de olhar fixo, que eu estranhara desde o primeiro momento. Era um homem de quarenta e tal anos, com ar norueguês. Quem seria esse admirável cultor nórdico da língua portuguesa, que fora capaz de seguir atentamente aquela difícil palestra?
No dia seguinte, na embaixada, comentávamos o evento. Perguntei então ao Jarnaes quem era aquela figura estranha - mas simpática! - que havia resistido até ao fim da conferência e que ajudara, na medida do possível, a atenuar a escassez de público. O nosso dedicado Johan Jarnaes (de que deixo uma fotografia que descobri na internet) explicou-me então, algo embaraçado: era um seu amigo, cego, que ajudava na secção espanhola e que ele próprio encaminhara de volta à sua sala, no fim da conferência. Tinha-lhe pedido para vir, para "compor" o nosso público... Estava explicada a "persistência" do homem.