Existem histórias de piropos brejeiros, outras de piropos incómodos e inconvenientes, mas há piropos que têm o sabor de uma história, uma história de vida que se preserva como um acontecimento e que deixa marcas.
Esta é a história de como um piropo foi importante na minha vida e dela fez parte.
Ó rapariga és tão feia!
Este piropo perseguiu-me durante anos. Andava ainda na escola, tinha que obrigatoriamente passar por uma velha taberna onde estava sempre sentado num banco, também velho e desgastado, um homem gordo de rosto avermelhado e brilhante, voz surda e de idade indefinida ou, eu pelo menos, não lha sabia definir. Retenho dessa imagem, típica de tempos idos, dos homens que, fugindo ao convívio familiar, faziam das tabernas locais de encontro. Retenho, na passagem, os cheiros, aquele cheiro agridoce do vapor do vinho, das comidas, exalando fumos e aromas.
E aquele homem sempre ali, como sentinela constante, presente nas conversas e sempre atento ao movimento da rua.
Eu passava, eu tinha que passar. Por vezes atravessava a rua e furtava o olhar daquele lugar. Deliberadamente procurava ignorar a presença certa daquele homem, subtraí-la ao meu olhar vagueando-o para um lado e para outro, para a parede, disfarçando, resistindo ao olhar furtivo. E encontrava, encontrava sempre ou era ele que me encontrava naquela furtividade mal denunciada, mal disfarçada. Outras vezes eu remexia nos bolsos do casaco ou na mala, na esperança que ele não desse por mim. Antecipando o tempo, que falta me fez um telemóvel, tornava o disfarce mais natural, mais corriqueiro. Mas ele dava por mim. Sempre dava por mim,
Ó rapariga és tão feia!
E lá se ficava a rir, desabridamente, de um modo meio estranho e provocador. Eu podia sair de casa mais cedo, atravessar outras ruas, cansar-me num caminho mais longo, eu podia, eu podia... Mas havia sempre qualquer coisa que me levava ou me atraia à passagem por ali. A sedução de um não piropo que afinal o era.
Esse tempo passou. Nunca mais voltei a passar por ali e a lembrança daquele local, daquela taberna e daquele homem deram origem a uma difusa memória de um caricato acontecimento.
Muitos anos mais tarde, passando pelo local, já diferente, onde a taberna deu lugar a um café com um ar decadente, encontro sentado à porta, numa reedição de uma imagem antiga, a figura de um velhinho com ar simpático. Passo, em passo ligeiro, indiferente ao significado do local, das suas presenças habituais, dos cheiros e aromas que lhe davam o estatuto de local único composto de hábitos de pessoas, do ruído das conversas, das discussões mais ou menos acaloradas e de rituais. Uma vaga e distante imagem do que ele tinha representado para mim. Esquecida! Para minha surpresa oiço uma voz rouca, sumida,
Ó rapariga “cada” vez estás mais feia!
Voltei-me para trás. Era ele, o homem que tantas vezes me tinha embaraçado, cabelo branco, coluna vergada pelo peso dos anos. Reconheci-o e no reencontro senti de imediato uma imensa ternura. Aquele homem, aquela presença já não me inspiravam a vergonha e a timidez de outros tempos, as mãos não suaram por conta do embaraço que ele me provocava. Aquele homem, aquela presença eram a expressão viva de pedaços da minha adolescência e não resisti a contar-lhe o quanto me tinha perturbado nos meus tempos de juventude. Rimo-nos os dois.
Ó rapariga tu nunca foste feia eu é que gostava de me meter contigo!
Abracei-o com ternura e emoção.
Recuperei, dezenas de anos depois, a minha imagem de adolescente, afinal bonita. Nunca mais o vi mas hoje, lembrei-me deste episódio e senti saudades dos lugares e das pessoas, das muitas pessoas que viveram naquele tempo, naqueles locais e que ainda hoje povoam a minha memória.
* Esta deliciosa história é da autoria de Maria Odete Santos Silva e surgiu hoje no meu Facebook. Com a simpática autorização da autora, que a havia escrito aquando da primeira vez que o Bloco de Esquerda havia sugerido a criminalização do piropo, publico-a agora aqui.