No sábado, à conversa com o meu amigo Benjamim Formigo, numa almoçarada alentejana no dia em que deixou de poder cantar o "When I'm Sixty-Four", veio à baila o nome de um amigo comum, Arlindo Ferreira, um homem de abril, militar da Força Aérea há anos desaparecido, cuja amizade nos faz muita falta.
O Arlindo era um dos mais hábeis pilotos portugueses de helicópteros. Nunca esquecerei uma noite, em Luanda, há muitos anos, quando ele, que adorava helicópteros, me descreveu os riscos dos acidentes com esse tipo de aeronaves. Tendo ouvido, depois disso, muitas histórias sobre a gravidade dessas ocasiões, mesmo por parte de outros experientes pilotos, sempre que posso escapar a uma viagem dessas faço-o.
Desconfio imenso de helicópteros. Evito andar neles, sempre que posso. Há uns anos, no Rio de Janeiro, vieram perguntar-me se eu me não importava de prescindir do meu lugar, a acompanhar uma importante personalidade política portuguesa, numa viagem a uma plataforma petrolífera "off-shore". Ainda estou hoje para saber se o entusiasmo esfusiante com que acedi ao pedido não foi mesmo mal interpretado. É que tive menos boas experiências na Noruega, num "voo tático" da RAF durante um exercício da NATO, rasando cumes, e em Angola, numa interminável viagem de ida e volta de Luanda a Cabinda, em que eu aguardava um tiro a qualquer momento. E não me senti nada confortável em outras viagens - por cá, nos Estados Unidos, no Congo, na Itália, no Tajiquistão, no Brasil, na Coreia do Sul, em Israel, entre alguns poucos locais mais onde as fiz, às vezes, penso agora, podendo tê-las evitado.
Daquela vez, porém, era inescapável. Tratava-se de uma viagem da OSCE (Organizaçāo para a Segurança e Cooperação na Europa) à Geórgia, em 2003. O programa incluía uma deslocação à secessionista Abcázia, uma zona de onde, depois de violentos combates em 1992/3, centenas de milhares de cidadãos georgianos tinham sido expulsos. Já na véspera, eu não me conseguira furtar a uma ida de helicóptero à fronteira (belíssima) que separa a Geórgia da Chechénia e do Daguestão, onde frequentemente ocorriam incidentes.
Entre a Geórgia e a Abcásia (a Geórgia considera a Abcásia território seu, embora esta tenha declarado a sua "independência", reconhecida em 2008 por Moscovo, seguida até hoje por apenas mais quatro Estados), existe uma imensa "terra de ninguém", repleta de ruínas de zonas urbanas e rurais fustigadas por bombardeamentos. A operação internacional de "manutenção da paz" na Abcásia era então levada a cabo pelas Nações Unidas (a missão acabou em 2009, por pressão de Moscovo), que mandou helicópteros buscar-nos perto da "fronteira" geórgio-abcase, na localidade de Poti, onde tínhamos chegado de avião, idos de Tbilisi. Quando saí do avião e me encaminhei para os helicópteros fui surpreendido por encontrar aparelhos russos Mi-24, ao serviço da Ucrânia, utilizados pela ONU. Desde sempre, nunca fico sossegado quando me é dado ter de viajar em meios aéreos da antiga União Soviética. Preconceito? Talvez seja.
Ao entrar com os meus colegas num dos dois imensos helicópteros que nos iam levar a Sukumi, capital da Abcásia, numa viagem de muitos largos minutos, pude verificar que eram aparelhos antigos, com mostras de excessivo uso no equipamento do seu interior. Vi a minha perplexidade partilhada nas caras dos meus companheiros de viagem. Para me entreter, e porque estava curioso para fotografar as zonas devastadas pelos combates, em especial o célebre vale de Kodori, que no passado fora palco de grandes lutas, preparei a minha máquina, já que tinha conseguido um lugar com boa visibilidade. Mas nada correria como eu tinha previsto.
Mal o helicóptero levantou, a direção que seguiu foi bem diferente: avançou para dentro do Mar Negro, como se dirigisse para sul, ao invés de oeste. Devo ter feito uma careta de espanto, quiçá de desagrado, o que levou um imenso e loiro militar ucraniano, no meio do barulho infernal que nos obrigava a usar uns grandes protetores de ouvidos, a fazer com a mão um gesto que podia representar a deslocação de um avião. Não percebi nada e era impossível trocar palavras naquele vasqueiro. Algum tempo depois, sempre a sobrevoar o mar, lá nos aproximámos de Sukhumi, idos do Sul, como se viajássemos da Turquia para Norte.
Já fora do aparelho, o militar ucraniano aproximou-se de mim, sorridente e perguntou, num inglês macarrónico: "ficou surpreendido por não voarmos sobre a terra?". Eu respondi que sim, embora não confessasse que era por causa das fotografias frustradas, que nunca são de bom tom em zonas de conflito. Foi então que ele me explicou o significado do gesto "aéreo" que antes me fizera. Cerca de dois anos antes, um helicóptero das Nações Unidas tinha sido abatido por um míssil terra-ar, provocando nove mortos, e, por essa razão, os voos faziam-se agora por um trajeto bem longe da costa. Fiquei "ciente", como se diz na minha terra... Já não bastava andarmos em helicópteros do tempo da URSS e ainda havia o risco de levarmos com um míssil. Claro que, até ao termo da viagem de regresso, não pensei noutra coisa.
Não gosto de helicópteros, pronto!