quarta-feira, setembro 21, 2011

Júlio Resende (1917-2011)

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A democracia e a Europa

Ontem, um velho e avisado amigo francês comentava comigo o facto de apenas cinco dos 17 membros da zona euro terem, até ao momento, ratificado o programa de ajuda à Grécia aprovado no dia 21 de julho - faz hoje precisamente dois meses! A maioria desses Estados argumenta com a lentidão dos processos decisórios internos, isto é, com a necessidade de serem respeitados os procedimentos democráticos de cada país.

Com um ar irónico, atrás do qual se escondia uma premonição lúgubre, esse meu amigo concluía: "Quem havia de dizer que haveria de ser a democracia a acabar com a Europa". Sem, por ora, partilhar necessariamente a funesta previsão subjacente ao raciocínio, não me contive e acrescentei: "Tendo a democracia nascido na Grécia..."

segunda-feira, setembro 19, 2011

O MES

Acabo de receber uma "convocatória" para um almoço em Lisboa, a 12 de novembro. Nessa data se celebrarão 30 anos passados sobre um jantar com que um partido decidiu encerrar a sua (já então muito escassa) atividade. Comemorar um jantar com um almoço é uma saudável redundância gastronómica.

Assim, e se tudo correr como espero, lá irei de Paris a Lisboa, para estar presente nesse repasto (escolham um sítio de decente amesendação, por favor!) onde muitos nos encontraremos, sem nostalgias nem proclamações, para lembrar essa "improvável aventura" a que, para sempre, ligámos a nossa juventude e a nossa esperança.

É claro que não estaremos todos por lá: alguns já se foram, outros saíram para outros destinos, uns poucos, ainda, deixaram-se tomar pela indiferença. Mas seremos mais do que os suficientes para nos revermos nessa ideia que continua a unir-nos, muito para além das conjunturas e dos percursos que cada um decidiu seguir.

O partido de que acima falei, o MES, o "Movimento da Esquerda Socialista" (ironizava, ao tempo, um amigo de outras ondas políticas: "mas há uma direita socialista?"), juntou muito boa gente nesses tempos pós-abril, pessoas vindas das lutas académicas, do sindicalismo menos alinhado, do catolicismo inquieto. Gente que não se revia noutras linhas então dominantes no mercado das opções políticas. Com o tempo, cada um de nós escolheu o seu caminho, embora a grande maioria quase sempre para o mesmo lado. Alguns revemo-nos de tempos a tempos, outros quase nunca se encontram. Mas, para sempre, somos todos, com imenso orgulho, "do MES".

Um dia, ao tempo do primeiro governo Guterres, o então primeiro-ministro, numa viagem de trabalho ao estrangeiro, em que o Augusto Mateus e eu o acompanhávamos, perguntou: "Neste governo, há uns seis ou sete antigos militantes do MES, não é?". Olhei para o Augusto e respondi, sem ter a certeza exata do que afirmava: "Um pouco mais, julgo que somos aí uns 14". António Guterres olhou para nós, verdadeiramente surpreendido. Nunca se havia dado conta que, em pouco mais de 40 ministros e secretários de Estado havia essa elevada percentagem de antigos membros do MES. Creio que, por um segundo, deve ter pensado que convivia com uma eventual "quinta coluna". O que estaria bem longe da verdade.

A inexorável lógica quantitativa do voto nunca foi o forte do MES. Como alguém diria, mais tarde, o nosso voto era um "voto de qualidade" ou a expressão de uma "imensa minoria". Em 1975, nas primeiras eleições, para a assembleia constituinte, no auge da sua expressão política, as urnas conferiram ao MES uns impressivos 1,02% de votos, o que conduziu um seu dirigente a uma declaração que ficou histórica: "Com esta votação, só temos condições para crescer...". Nesses tempos de façanhudos dirigentes políticos, cheios de pronunciamentos de rotunda gravidade, o MES teve sempre muito poucos votos mas imenso humor.

O rumor dos claustros

O embaixador errava, por aqueles dias, pelos corredores das Necessidades. Pelo vigor da passada, pelo modo confiante como observava à sua volta, era patente que estava ungido da determinação daqueles a quem, ao virar da esquina do futuro próximo, iriam ser atribuídas novas e importantes responsabilidades. Os contínuos já o olhavam de uma forma mais respeitosa, os jovens adidos com os quais se cruzava baixavam a cabeça, num reverencial temor, ficando a segredar murmúrios em torno do seu nome. Ele era, nesses dias de mudança, o objecto privilegiado do chamado "rumor dos claustros" - uma vetusta forma de boataria diplomática que, em casos limite, chega quase a ser constitutiva de direitos.

Forte das bençãos do destino que inexoravelmente se aproximava, faltando apenas o despiciendo detalhe do convite, mas já com a segurança dos putativos eleitos, prenhe de confiança que contactos recentes só tinham adubado, abriu a porta de um determinado gabinete e, não podendo conter a exploração do sucesso que aí vinha, comentou, para uma funcionária, pessoa tida por bem informada, dado o seu lugar na geografia funcional da casa, ciente de a ir ver ecoar as suas expectativas:

- Então!? Fala-se por aí muito no meu nome, não é?!

A senhora, uma distinta servidora da casa, já vira passar muitos mundos, das glórias aos ocasos, testemunhara a chegada e a partida de várias ambições, olhava já para tudo aquilo com uma relativização construída num sereno bom-senso. Pelo que, arvorando um indefinível sorriso, respondeu ao seu interlocutor:

- Falava, senhor embaixador, falava! Agora, esta semana, já se fala noutros nomes...

domingo, setembro 18, 2011

Os mercados


A televisão trouxe, há pouco, a imagem sorridente de um "trader" da City londrina que terá provocado um imenso buraco financeiro ao banco suíço UBS. Ainda recordo uma história, que ficou famosa, de um idêntico especialista que, creio que em Singapura, fez, há alguns anos, uma falcatrua de grande dimensão. 

Devo dizer que o que me espanta mesmo é como estas coisas não acontecem mais vezes, com estes "jongleurs" do dinheiro alheio, que passam o tempo a olhar para monitores e a dar ordens de compra e venda, jogando diariamente com fortunas que vão muito para além daquilo que qualquer mortal pode ambicionar ganhar numa vida.

Há uns anos, em Londres, um amigo levou-me a ver uma dessas salas atulhadas de ecrans, que existem por toda a City. Espantou-me a baixa idade dos operadores desse mercado virtual, cuja lógica de funcionamento, confesso, apenas percebi "pela rama". Mas ficou-me a ideia de que a exigência física e psíquica desse tipo de ambientes provoca um elevado desgaste, o que justifica que só jovens se possam ocupar dessas tarefas. Pelas noites dos "pubs" londrinos, via-se depois essa gente que se divertia, que iria dormir as escassas horas que a sua idade permitia, antes de regressar, de novo, ao seu intenso e exigente quotidiano.

Há uns meses, aqui em Paris, estive presente num encontro fechado entre entidades do setor oficial português e um grupo de umas dezenas de "traders" parisienses. Eram eles, na versão francesa, os famosos "mercados", contra os quais todos somos tentados a protestar, mas cuja filosofia de funcionamento é hoje a incontornável base económica das nossas sociedades.

Olhei bem para eles (e elas): era jovens entre os 25 a 35 anos, modernos, vestidos "business casual", que ouviam, com displicente atenção, algumas explicações que, tudo o indicava, lhes entravam por um ouvido e lhes saíam pelo outro. É que eles estavam-se claramente "nas tintas" para os pequenos esforços de melhorias na nossa economia que lhe eram anunciados, para as ligeiras reversões de tendência negativa que procurávamos potenciar, para as expetativas de futuro cuja importância tentávamos destacar. Nós éramos um país sob elevada desconfiança, com muito escasso crescimento, com indicadores que só um impensável ato de fé ou de improvável boa vontade lhes poderia sugerir como favorável.

Eles, os "mercados", que mal sabem onde é Portugal, que desconhecem olimpicamente que o chá que bebem chegou à Europa pelas rotas dos descobrimentos, que de portugueses só conhecem as "concierges", algum colega tresmalhado ou o Cristiano Ronaldo, por ali estavam num visível "frete" que os bancos e as entidades financeiras de que dependiam lhes haviam imposto. Regressados aos descasacados locais onde trabalham, confirmariam, com toda a naturalidade, por operações maciças de venda, o alargamento dos "spreads" dos nossos "bonds" face aos congéneres teutónicos, como a lógica dos interesses que representavam exigia.

Estes "traders" - os mercados - têm como único e compreensível objetivo potenciar o lucro de quem lhes coloca os bens nas suas mãos, procurando ganhar margens e especular com os desastres alheios. Não é justo que se lhes peça qualquer laivo de ética, ou melhor, é de esperar que tenham a ética do lucro como único referente da sua vida profissional e pessoal. Com toda a sinceridade, acho que não os podemos condenar por isso: eles são apenas o produto, aliás tecnicamente bem eficaz, da prevalência do modelo liberal nas sociedades contemporâneas.

A nossa angústia, que não tem solução, é que se, no passado, eram apenas as empresas que estavam sujeitas a este "casino", agora chegou a vez dos Estados. Mas não deixa de ser ridículo que nos queixemos dos "croupiers". Mesmo que estes, uma vez por outra, metam "algum" ao bolso, como agora aconteceu. Com os diabos!: alguma vez há-de ser a vez deles...

Vinhos transmontanos

Há quem possa pensar que trazer vinhos portugueses para França é como "levar bananas para a Madeira" (embora esta ilha portuguesa, nas últimas horas, não esteja, propriamente, em odor de santidade). Eu penso que não. Os vinhos de Portugal, para além do caso especial e sem par do vinho do Porto, têm hoje casos de qualidade que pedem meças a muitos vinhos franceses. E, para além do "mercado da saudade", constituído pelos portugueses e seus descendentes que por aqui vivem, os nossos vinhos podem e devem crescer no mercado francês.

Ontem, abri as portas da Embaixada para a Confraria dos Vinhos Transmontanos, que realizou um "capítulo" em Paris, com a entronização de novos confrades (entre os quais o autor deste blogue). A região transmontana esteve presente com diversos e magníficos vinhos, para além de produtos alimentares muito diversos a cargo de um dos melhores restaurantes do norte de Portugal, o "Carvalho", de Chaves, que já aqui mereceu, no passado, a necessária referência.

Tal como já aconteceu com outras regiões do país, a Embaixada testemunhou assim uma bela jornada de divulgação da região de Trás-os-Montes.

sábado, setembro 17, 2011

A Mônica e Portugal

Há uma regular comentadora brasileira deste blogue, de seu nome Mônica (no Brasil usa-se o acento circunflexo no nome), cuja candura chega, algumas vezes, a baralhar a nossa lógica. A Mônica gosta de Portugal e assume, face a realidades que por aqui reflito, sentimentos simples e ternurentos.

Ontem, como poderão ler, a propósito do euro, a Mônica dizia-me: "Tenha um bom fim de tarde sem pensar em Portugal. Pode? Porque acho que está certo, mas fazer o quê?".

Eu agradeço imenso à Mônica o seu cuidado. Mas tenho de responder-lhe: não posso, Mônica, provavelmente o defeito é meu, talvez eu devesse "desligar", mas não consigo. Cada vez menos.

Para melhor nos tentar perceber - as pessoas como eu -, a Mônica tem de ler um grande poeta português que, infelizmente (e bem tentei!), não está ainda editado no Brasil. Chama-se Alexandre O'Neill e escreveu, por exemplo, isto*:

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

De qualquer forma, e com sinceridade, muito obrigado, Mônica!

* Já um dia por aqui publiquei isto. Mas nunca é demais.

Não há almoços grátis

Em abril de 2006, ao tempo que vivia no Brasil, fui convidado para ir falar a Harvard sobre a experiência de integração portuguesa nas instituições europeias. No almoço oferecido pela universidade, antecedendo a minha prestação, um professor canadiano perguntou-me, com uma surpreendente naturalidade, até quando Portugal conseguiria manter-se no euro.

Estávamos na ressaca do primeiro período de desregulação no seio da moeda única, com vários países, entre os quais o nosso, a excederem as barreiras macroeconómicas previstas no Pacto de estabilidade e crescimento, fixado em 1997. Portugal estava então a fazer uma tentativa, temporalmente bem sucedida, de redução do seu défice público.

Confesso que, à época, foi para mim um grande choque a pergunta do canadiano. Levei-a mesmo à conta de alguma arrogância anglo-saxónica e de uma leitura paternalista da realidade europeia. A minha resposta foi simples e muito sincera: todo o esforço que Portugal tiver que fazer para se manter na moeda única europeia será sempre muito inferior ao preço que o país terá de pagar no caso de ser obrigado a sair do euro.

Ao olhar para o debate que, em alguns sectores de Portugal, começa a gizar-se em torno da nossa pertença ao euro, dou por mim a pensar hoje exatamente aquilo que então disse em Harvard.

quinta-feira, setembro 15, 2011

Googlisboetas

Cada vez tenho mais simpatia pelo Google.

Origens

Desde há uns meses, a Renault tem como seu diretor-geral delegado, correspondente a nº 2 da empresa, mas a quem cabe a gestão executiva, o português Carlos Tavares, um reputado quadro internacional, vindo da indústria automóvel americana.

A revista económica "Challenges" dedica-lhe hoje quase duas páginas, desenhando o seu perfil e entrevistando-o sobre o que pretende vir a fazer naquela que é uma das "jóias" identitárias da indústria francesa, recentemente abalada por alguns problemas.

No passado, quando o nome de Carlos Ghosn, o PDG da Renault, era citado na "Challenges", recordo-me de aparecer uma frequente referência à sua nacionalidade brasileira. Agora, ao falar-se de Carlos Tavares, um homem que sei que tem grande orgulho nas suas origens lusitanas, nem uma palavra sobre o país e a cultura de onde é oriundo.

Curioso, não é? Tanto mais que Carlos Tavares, como bem sabemos, está longe de ser o primeiro português a trabalhar na Renault...

Euro

A declaração franco-alemã, segundo a qual o futuro da Grécia é na zona euro, reveste-se de grande significado. 

A contrario, e a olhar para o comportamento dos mercados, talvez se pudesse também dizer que o futuro da zona euro está na Grécia. 

Sem ironias, e cada vez mais, hoje somos todos gregos.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Razão

Mário Soares olhou, um tanto surpreendido, para o homem. Não percebera o que ele queria significar ao afirmar:

- O senhor é que tinha razão. Eu não acreditei.

O português, empregado do restaurante onde ontem jantávamos, acrescentou:

- Em 1973, quando o servia num almoço por aqui, perguntei-lhe se aquilo, lá por Portugal, ia mudar. O senhor disse-me que não tardaria muito. Tinha razão. Mas, na altura, não fiquei convencido. Ando há anos para lhe dizer isto.

terça-feira, setembro 13, 2011

Richard Hamilton (1922-2011)

Lágrima "pop" por Hamilton.

Ouvi bem?

Leio na imprensa, nesta madrugada, que o comissário europeu de nacionalidade alemã teria sugerido que as bandeiras dos países membros endividados fossem colocadas a meia-haste. 

Independentemente de outras razões bem ponderosas que justificariam que certos países mantivessem a sua bandeira a meia haste, pode presumir-se que a sugestão possa ter efeitos retroativos - isto é, que assim se recorde todos os países que, em 2003, violaram os limites do défice público previstos no "pacto de estabilidade e crescimento" e que, desta forma, iniciaram o processo de fragilização de todo o sistema.

segunda-feira, setembro 12, 2011

Memória

Era uma senhora de 67 anos. Fui-lhe apresentado no sábado à noite, na baixa Normandia.

Disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand".

"Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me, amável.

"Pois não! Mas passeou por lá, de motocicleta. Ou não?"

Reação, alguns segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?"

Era Marie-Christine Barrault, que tinha acabado de declamar uma bela seleção de textos, a ilustrar a peça musical "Carnaval des Animaux", de Saint-Saenz, num magnífico festival cultural, numa zona rural, perto de Alençon.

Em 1969, no seu primeiro filme, aos 25 anos, protagonizou uma cena inesquecível do cinema da "Nouvelle Vague" francesa, o "Ma nuit chez Maud". Depois disso, teve uma carreira muito diversa. Repetiu Rohmer, por exemplo, no delicioso "L'amour l'après-midi" (que inspirou a frase de um amigo meu: "mais vale à tarde do que nunca!"), fez o já histórico "Cousin, cousine", esteve no "Stardust Memories", de Woody Allen, e até em "Le soulier de satin", de Manoel de Oliveira.

Foi um prazer cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente virtual. E lá bebi, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando esses tempos. 

Presenças

Colóquio, esta manhã, na prestigiosa e prestigiada École Nationale d'Administration (ENA), sobre o "triângulo de Weimar". Oradores anunciados, entre outros: Alexandre Kwasniewski, antigo presidente polaco; Hans-Dietrich Genscher, antigo MNE alemão; Tadeusz Mazowiecki, antigo PM polaco, Hubert Védrine, antigo MNE francês, Hanna Suchoka, antiga PM polaca. Nenhum destes oradores apareceu.

Onde é que eu já vi isto?

sábado, setembro 10, 2011

11 de setembro

Nestes que foram os dez anos passados sobre o 11 de setembro, e porque vivi então a data em Nova Iorque, quando aí era embaixador português junto da ONU, fui chamado a dar testemunhos em diversos jornais, rádios e televisões. 

Não procurei ser original, até porque há muito que sedimentei aquilo que penso sobre o que se passou nessa data e no que se lhe sucedeu.  

Correndo o risco de ser repetitivo, e para quem possa estar interessado, deixo "links" para três textos: aqui, ali e acolá. Hoje, escrevi no "Correio da Manhã" isto.

Mas é isto é o que eu gosto de recordar de Nova Iorque, com um abraço aos amigos que por lá deixei.

sexta-feira, setembro 09, 2011

Encontro

- Já não se lembra de mim?! Pudera! Com a vida que tem...

Era um homem pequeno, magro, de olhar penetrante, tenso, um sorriso que não era mais que um esgar. Tinha-se aproximado pela rua, aos zigzags, e agora, no passeio, travava-me o passo.

Costumo ter boa memória visual, mas, por mais que me esforçasse, não me recordava dele. Podia ser que com o fluir da conversa...

- É natural que já se tenha esquecido de mim. Passou já tanto tempo. Mas eu não esqueço aquelas palavras simpáticas que, há anos, me dirigiu, sobre o meu trabalho. Ficaram-me para sempre.

Que teria eu dito? Continuava mudo, encurralado no passeio estreito, com os carros à disparada, a impedir um início de retirada. O meu esquecimento seria da idade? É que continuava sem me lembrar de nada. O que já me incomodava.

- Pois eu, depois de ter por lá andado - bons tempos! -, tive uma vida muito complicada. Traições, sabe? Não se pode confiar em ninguém.

Onde é que teria sido o "lá" onde ambos nos tínhamos, ao que parece, encontrado? Sem nomes, relatou invejas que o tinham prejudicado, perseguições de que fora vítima, uma carreira profissional arruinada. Até a família! Tudo tinha corrido mal.  Estava no desemprego.

Por essa altura, eu tinha passado aquele limiar temporal em que já me não era possível, com decência, perguntar quem ele era, onde nos conhecêramos, o que realmente fazia ou fez. O discurso do homem, culto e rico na expressão, revelava-me alguém bem preparado, mas, igualmente, uma personalidade abalada, perturbada. Continuava a acreditar que, por uma qualquer referência que acabasse por surgir, ainda ia "agarrar" a origem da figura e ligá-la a uma circunstância que me fosse comum.

Informou-me que lhe aparecera uma oportunidade para dar aulas. Começava na semana seguinte. E, algo críptico, acrescentou:

- O problema vai ser aguentar até lá.

Crendo ter vislumbrado uma escapatória, peguei na palavra, porque até então não tivera espaço para qualquer deixa, e disse-lhe que, se essa oportunidade se abria, seria apenas uma questão de tempo até pôr a sua vida em ordem. E adiantei umas platitudes de sala de espera de médico, como "o mundo dá tantas voltas" ou "sabe-se lá o dia de amanhã" ou "vai ver que tudo acabará por correr bem".

Vi, com alívio, que o meu interlocutor concordava, assentindo com a cabeça.

- Tem toda a razão, disse. Mas há-de concordar que é dificil, como no meu caso, estar sem comer quase há 24 horas. Mas vou aguentar! Não se preocupe...

Aí, fraquejei. Levei a mão à carteira e preparava-me para tirar uma nota, quando ele reagiu:

- Não, não! Nem pense nisso! Não junte uma humilhação mais àquelas por que tenho passado. Nunca perdoaria que o meu amigo ficasse com uma má impressão de mim. Posso ter fome, mas tenho a minha dignidade e, em especial, quero conservar a minha imagem. Como lhe disse, nunca esqueci as suas palavras. Basta-me isso! Eu cá aguentarei...

A cena invertera-se. Ele estóico, eu a pedir-lhe que aceitasse, dada a situação em que estava, uma simples nota para aconchegar o estómago. Não tinha nada a ver com humilhação ou dignidade, disse-lhe. Eu tinha muito gosto...

A relutância do homem começou a esbater-se. Condescendente, lá cedeu:

- Bom, se o meu amigo quer mesmo fazer-me esse favor, eu posso aceitar. Mas com uma condição! Isso é imperativo! Sem ela, não aceito! O meu amigo vai dar-me o seu endereço, para eu lhe enviar, logo que receber o primeiro salário da escola, aquilo que agora faz o favor de adiantar-me. Tenha paciência! Isso não dispenso! Nem eu aceito esmolas nem o meu amigo, pessoa que muito admiro, alguma vez seria tentado a dar-mas. Eu conheço-o!

Concordei, claro, "flattered" e aliviado com afastamento da suspeita de que eu pudesse ousar dar-lhe uma esmola. E lá lhe avancei alguns euros, acompanhados de um cartão pessoal. Sei lá porquê, senti-me aliviado. Parecia que o homem me acabara de fazer um favor. Na verdade, eu estava grato por ter recuperado a minha "liberdade", saído daquela conversa tão intensa. E lá se foi ele, rua abaixo.

Já passaram alguns meses, nunca mais tive notícias, claro. Quem seria o homem? Teria ele a menor ideia de quem eu era, antes de ter visto o meu nome no cartão?

quinta-feira, setembro 08, 2011

Apaches

É muito simpático ler, num novo blogue onde preponderam profissionais da palavra escrita, coisas simpáticas sobre este nosso espaço.

Muito obrigado ao "Forte Apache", nestes seus primeiros dias, com sinceros votos de bom trabalho na blogosfera. Nestes tempos que o bom senso aconselha a que sejam "de bonne guerre", é de esperar que possam contar com Cochise... 

Táticas

Já estou a imaginar o preço que vou pagar por este post! Mas vou arriscar.

Hoje, numa conversa, e a propósito de um filme, veio à baila a relação entre o futebol e as mulheres. E surgiu a ideia que pode haver uma clara homologia entre táticas que lhes respeitem. 

(Advirto que só deve continuar a ler este post quem saiba alguma coisa de futebol e de mulheres. Ou, para ser menos ambicioso, quem saiba alguma coisa de futebol).

No futebol, há algumas equipas que têm como típica caraterística deixarem a posse de bola ao adversário. Para os observadores menos avisados, em especial para quantos olham para as estatísticas que a televisão revela em termos quantitativos, uma equipa que demonstre elevada percentagem de posse de bola - isto é, do tempo em que a bola se mantém nos pés dos seus jogadores - revela um domínio efetivo sobre a outra equipa e, em princípio, tem mais oportunidades para ganhar o jogo. Ora a experiência mostra que, muitas vezes, o tempo de posse de bola acaba por ser um indicador bastante enganoso: não raramente, que anda muito tempo com a bola nos pés, dando ideia de dominar completamente o jogo, acaba por ser derrotado. Porquê? Porque há uma tática futebolistica que consiste em dar oportunidade à outra equipa de ter a ilusória ideia de que controla o jogo, "entragando-lhe" a gestão da partida, quando, na realidade, continua a deter os "cordelinhos" essenciais da mesma.

Mas que diabo tem isto a ver com as mulheres? Tudo. Conheço casais em que o marido parece conceder todo o espaço à sua cara-metade, em que esta gere a coreografia social de afirmação exterior do casal, num aparente desequilíbrio, que, às vezes, chega a ter laivos de algum masoquismo. Porém, uma análise mais fina e em "séries" de observação mais longas dá conta de que quem verdadeiramente controla o casal acaba por ser o homem, o qual, apagado numa aparente modéstia, e sujeito até a um "downgrading" público ostensivo, acaba, na realidade, por ser o decisivo "mastermind" da equação matrimonial. Tenho exemplos de alguns casais que funcionam neste registo e, diga-se, tenho a sensação que os homens que o assumem acabam até por se sentirem muito felizes.

Tinha eu contado isto a uma pessoa, pensando ter "descoberto a pólvora", quando ela me adianta: e o contrário? E quando são os homens quem julga controlar o jogo? Fiquei perplexo. Vou rever esta tese "tática"...

... e logo se vai ver!

Ver aqui .