Sou dum tempo em que se "emigrava", cedo na vida, da província para Lisboa ou para o Porto, às vezes para estudar, muitas outras simplesmente para aproveitar a macrocefalia económica das grandes cidades.
Porque tínhamos saído adolescentes da terra de origem, era-nos necessário, nos tempos das visitas em férias, começar a adquirir localmente um estatuto de adultos, em cidades ou vilas que, à partida, nos não reconheciam como tal, porque, no imaginário local, não passávamos do "filho de" fulano.
Foi assim comigo em Vila Real e, anos mais tarde, estou certo que o mesmo aconteceu, por exemplo, ao dr. Pedro Passos Coelho, que, embora bastante mais novo, teve um circuito de vida comum a muitos vilarealenses.
Mais no caso da minha geração, durante esses regressos episódicos à cidade, pelas festas ou pelas férias, um dos ritos iniciáticos de reconhecimento desse "upgrading" passava pela partilha das mesas nos cafés mais tradicionais, com pessoas mais velhas - sempre homens, claro! Levavam-nos amigos que nos ajudavam a fazer essa transição e, a pouco e pouco, íamos tendo direito de assento nesses grupos de pessoas.
Alguns eram homens de personalidade marcante, verdadeiros "opinion-makers", quase sempre com ideias bem definidas, respeitados, por vezes temidos, acolitados por amigos que se apagavam sob o seu brilho e davam deixas para as suas "saídas". Muitos eram incontestáveis chefes de tertúlias, que contavam histórias deliciosas sobre gente local desaparecida.
Alguns eram homens de personalidade marcante, verdadeiros "opinion-makers", quase sempre com ideias bem definidas, respeitados, por vezes temidos, acolitados por amigos que se apagavam sob o seu brilho e davam deixas para as suas "saídas". Muitos eram incontestáveis chefes de tertúlias, que contavam histórias deliciosas sobre gente local desaparecida.
(Não resisto a contar uma das mais clássicas, a imorredoura frase do Dr. Sampaio e Melo, o qual, do alto da sua bigodaça e voz forte, uma tarde dos anos 50 anunciou, perante um dúzia de amigos: "Tenho a comunicar-vos que acabo de dormir com a mulher de um dos presentes!". O embaraçoso silêncio que se abateu sobre o grupo, por penosos segundos, só se diluiu com o esclarecimento subsequente: "Com a minha, claro!")
Nesses encontros de gerações, que, com o decorrer dos anos, atenuam décadas de diferenças de idade e colocam todos numa espécie de camaradagem atemporal, os mais novos iam criando lentamente o seu estatuto, sendo-lhes dada uma atenção progressiva, à medida da própria maturidade que iam demonstrando. Mas o papel das grandes figuras, desses marcos humanos que fazem a identidade das pequenas cidades, esse mantinha-se intocado e intocável. Eram advogados, médicos, engenheiros ou empresários que, com o prestígio e os cabedais ganhos, a que muitas vezes se somava um tecido familiar conhecido e reconhecido, se haviam alcandorado ao pequeno grupo de "grandes senhores" locais - e uso a expressão com todo o sincero respeito que o conceito me merece.
Uma tarde, no final dos anos 60, numa dessas mesas a que eu tivera acesso numas férias da universidade, a discussão derivou para a caça e para a pesca. Como estes eram temas que nada me diziam, fiquei calado, a ouvir os "experts". A certo passo, vieram à baila as imperativas alvoradas a que aquelas atividades obrigam. Nesse particular, o meu silêncio já traduzia algo de embaraçado: nessas férias escolares, os meus pequenos almoços raramente tinham lugar antes do meio-dia, na obediência ao sacrossanto princípio de que "se esta vida são dois dias, há que aproveitar bem as noites...".
Liderava tal conversa o dr. Manuel Vaz de Carvalho.
Tratava-se de um advogado literato, poeta de mérito, muito culto, de qualidade intelectual reconhecida desde os tempos de Coimbra, figura prestigiada da barra da Justiça, cujo verbo argumentatório se dizia ser temido por magistrados e colegas, muito para além dos limites da comarca. Vivia numa moradia na Timpeira, então um arrabalde da cidade, com um rancho de filhos, educados com rigor, onde a minha e as subsequentes gerações ancoraram sólidas amizades. Com uns cabelos revoltos, tinha voz forte e um fácies grave, que escondia uma finíssima ironia e uma imensa capacidade de ser amigo do seu amigo.
Tratava-se de um advogado literato, poeta de mérito, muito culto, de qualidade intelectual reconhecida desde os tempos de Coimbra, figura prestigiada da barra da Justiça, cujo verbo argumentatório se dizia ser temido por magistrados e colegas, muito para além dos limites da comarca. Vivia numa moradia na Timpeira, então um arrabalde da cidade, com um rancho de filhos, educados com rigor, onde a minha e as subsequentes gerações ancoraram sólidas amizades. Com uns cabelos revoltos, tinha voz forte e um fácies grave, que escondia uma finíssima ironia e uma imensa capacidade de ser amigo do seu amigo.
O dr. Vaz de Carvalho, num dos momentos da conversa, sentenciou, para a mesa: "Eu nunca percebi como pode haver por aí uns maduros que não sabem apreciar um nascer-do-sol, a clareza de uma manhã de primavera na saída para uma pescaria, o fresco desafiante das primeiras horas de um dia de outono, para partir por esses montes à caça! Há por aí uma malta que se levanta sempre tarde, que perde as noites e que não sabe apreciar o sol das manhãs". E a diatribe prosseguiu, com o fuzilamento verbal desses madraços.
Embora a tirada me não fosse dirigida, eu sentia-me potencialmente esmagado, porque a "carapuça" servia-me à medida. Em busca de apoio solidário, olhava para dois ou três camaradas de noitada sentados em volta, que miravam os espelhos da "Pompeia", disfarçando, brincando com as colheres do café, num tempo em que não havia ainda telemóveis para fingir ocupação. E, sei lá!, para dar-me ares de à-vontade, devo ter pedido ao Neves mais um "fino"...
E lembro-me de ter tido a tentação de dizer: que também eu gostava imenso do nascer-do-sol e do fresco do início da manhã. Só que, imediatamente a seguir, costumava ir deitar-me... A prudência aconselhou-me, e bem, a não lançar essa graçola para a mesa, pela impertinência que o meu estatuto ainda não permitia. Nem quero imaginar o que o dr. Vaz de Carvalho me responderia!
Poucas vezes havia contado esta historieta. Na semana passada, ri-me, com ela, com o Paulo, o genial guitarrista e professor universitário, filho do dr. Vaz de Carvalho, num simpático almoço a dois, no sossego do Lameirão.
Ao princípio desta tarde, soube que o dr. Manuel Vaz de Carvalho tinha falecido, precisamente ontem. Ainda fui a tempo de dar um abraço sentido à sua família. E de aqui deixar esta despretenciosa historieta, em memória de uma das grandes figuras que marcou a Vila Real do meu tempo.