Os portugueses acordaram, há dias, para uma situação que a maioria desconhecia: há juízes portugueses a atuar no sistema judiciário de Timor-Leste. Não estão lá apenas como formadores dos novos quadros timorenses, mas são, eles próprios, quem ministra justiça, quem profere sentenças, as quais obrigam e impendem sobre os cidadãos e as instituições timorenses, a começar pelo próprio Estado.
Este modelo não é original. Por exemplo, em África, no período subsequente à descolonização britânica, mantiveram-se vários executores de justiça provenientes do anterior poder colonial, apoiados no facto da nova ordem jurídica se ter mantido, por muito tempo, próxima da que antes fora utilizada. No caso de Timor, foram as próprias autoridades a solicitar esse apoio e, ao que julgo saber, grande parte da cooperação nesse setor foi útil e bem aceite, colmatando temporalmente as lacunas locais.
Os incidentes que recentemente levaram à expulsão de juízes portugueses vieram, contudo, pôr a nu a relativa incongruência deste tipo de cooperação. Ser juíz não é a mesma coisa que ser engenheiro ou economista. A um juíz deve reconhecer-se a autoridade de um órgão de soberania, a qual, de acordo com a divisão tradicional de poderes, só pode ser limitada pela lei e não releva da vontade dos restantes parceiros institucionais do Estado, na equação de poderes que Montesquieu consagrou. Ora é para mim evidente que um estrangeiro, contratado a prazo por um governo, só por um exercício de ficção pode surgir ungido desse poder soberano. É assim uma receita fácil para o desastre, em especial perante dossiês que se prendem com grandes interesses internacionais do Estado ou que dizem respeito a figuras deste, como aconteceu no caso timorense.
Estranho que o Estado português não tenha estado devidamente atento para a sensibilidade deste tipo de situação, que agora se vê que, a prazo, tinha fortes condições para correr mal. Os avisos e os alertas, como agora se soube, foram muitos, ao longo do tempo. E, naturalmente, também não é desculpável a forma displicente como as autoridades timorenses atuaram, sem cuidar do impacto dessa atitude num dos sistemas de cooperação mais generosos com que sempre pôde contar.
Restam os juízes. Pode compreender-se o desgosto dos atingidos, mas eles devem reconhecer que a sua defesa pelos órgãos institucionais portugueses foi cabal e solidária. Por isso, e até para proteger a sua própria imagem, exige-se-lhe agora algum recato deontológico, que marque precisamente a sua diferença face ao sistema que os atingiu. Trazer para a comunicação social elementos a que tiveram acesso por via de processos que lhe foram confiados só reforça a razão a quem os acusou e dá de si uma má imagem profissional. E já nem falo do inenarrável agente policial que diz ter mandado para fora do território de Timor-Leste - o Estado que lhe pagou e que nele confiou - um contentor com informação...