No blogue Ié-Ié, Luis Pinheiro de Almeida publicou o plano da mesa do jantar de Estado que, fez ontem precisamente 19 anos, o então presidente Mário Soares ofereceu à rainha Isabel II, na nossa embaixada em Londres.
Estive presente nesse jantar, não por qualquer mérito próprio, mas porque era então o "número dois" da nossa missão diplomática na capital britânica, tendo a meu cargo a coordenação, substantiva e adjetiva, dessa mesma visita.
A deslocação de Mário Soares ao Reino Unido foi um trabalho interessante, mas algo delicado. No plano luso-português, foi necessário muito bom-senso, por forma a conseguir acomodar algumas sensibilidades políticas internas, atitude que, à época, os frágeis equilíbrios políticos interinstitucionais aconselhavam. Na ordem externa, havia que ter em conta que os britânicos não são nada flexíveis na montagem de uma deslocação "de Estado", porque tendem a impor as suas regras, tidas quase por consuetudinárias. Neste tipo de visitas - e, na minha carreira, fui responsável por algumas - as embaixadas vivem, quase sempre, "esmagadas" entre os dois serviços de protocolo, acabando por ser uma charneira onde ambos os lados descarregam as suas diferenças e vontades.
A anteceder uma visita de Estado, várias semanas antes, a capital envia aos postos uma missão preparatória, que desejavelmente deixa os principais aspetos da visita já encaminhados. Dessa vez, os colegas vindos de Lisboa eram chefiados pelo próprio chefe do protocolo de Estado, um funcionário superior do MNE.
Na sala de reuniões da nossa embaixada em Londres, o "staff" da embaixada que estava envolvido na visita e o grupo vindo de Lisboa discutia, a certo passo, o menu do banquete. O "catering" era local, recomendado pela casa real. Optou-se por um menu clássico, europeu. Para projetar a diferença portuguesa nessa refeição, restavam, assim, os vinhos e as sobremesas.
Nos vinhos, não foi fácil o consenso. Mas conseguiu-se. Na discussão das sobremesas, o nosso chefe do protocolo foi arriscando algumas sugestões. Parte delas foram sendo, desde logo, afastadas liminarmente pelo nosso embaixador em Londres, que falava com a autoridade da sua lendária - e indiscutível - competência gastronómica. Outras iam sendo retidas, para posterior ponderação. Até que, a certo momento, o chefe do protocolo decidiu avançar a ideia de se servirem trouxas de ovos.
A reação do embaixador foi tremenda e sonora: "Ó homem! Trouxas de ovos?! Então você não sabe que a rainha não come ovos?".
O chefe do protocolo, que carregava já, nesses dias, um histórico pouco suave de troca de argumentos com o embaixador, espantou-se: "Ai é!? A rainha não come ovos!?". E olhou em volta, procurando solidariedade no seu desconhecimento dessa suposta pecularidade dietética da soberana britânica, que, pelo tom de esmagadora evidência que fora assumido pelo seu colega em posto, era, com toda a certeza, uma banalidade informativa a que, por alguma razão, ele não tivera antecipado acesso.
Eu estava sentado em frente do chefe do protocolo. Mantive-me impávido, bamboleando discretamente "que não", com a cabeça: se um embaixador diz que uma rainha não come ovos, a rainha não come ovos! Ou, pelo menos, é essa a convicção que um leal colaborador é obrigado a espelhar. Não faltava mais nada que assim não fosse!
Porque não sou dado a guardar a menor "memorabilia" de qualquer evento a que tenha assistido na vida, não posso conferir qual o doce português que foi servido à soberana britânica. Trouxas de ovos não foi, com toda a certeza! Mas, até hoje, ainda me interrogo se Isabel II teria ou não gostado dessa deliciosa iguaria, até porque nunca soube se, de facto, a rainha come ovos ou não.
30 comentários:
Uma rainha não tem acento mas apenas coroa.
http://www.ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=11372
O Senhor Alcipe, que agora ando alheio ao mundo, a confrontar freneticamente sondagens e a invocar, nem que ele fosse um santinho, o François Hollande, acordou da sua presente monomania para olhar avidamente este post.
"Sabe o Senhor Alcipe se Sua Majestade come ovos?"
"Quero lá saber o que comem as Majestades, Feliciano! Esta trouxa de ovos, ai, esta trouxa de ovos...Que maravilha!"
Lá tive que lhe cozinhar hoje uma sobremesa. Um kugloff...
a) Feliciano da Mata
Nem com umas pancadinhas nas costas, que nestas alturas ninguém ousa, se poderia levar a rainha a gostar dos ovos ?
José Barros
Muito interessante, Senhor Embaixador !
Provavelmente a Rainha estaria habituada a ovos de galinha. Por que não oferecer-lhe trouxas de ovos de pata ?
É que enquanto a galinha cacareja quer ponha ovos quer os não ponha, a pata põe os ovos e não canta.
A pata é mais "portuguesa" !!!
Se não, não sabe o que perde e o que vem perdendo ...
Enfim, cada rainha com a sua mania ... cada embaixador com o seu saber. Tenho aprendido muito aqui, Senhor Embaixador. Agradeço-lhe.
(Jamais, em tempo algum, imaginei que tivesse este "à vontade" ante um Embaixador. A Internet faz acontecer milagres inimagináveis).
O Embaixador em causa, "gourmet" que "metia as mãos na massa" como excelente cozinheiro que também era, não gostava, talvez, de trouxas de ovos.
Se tiver sido essa a razão e não a invocada, a Rainha foi peão numa boa jogada de xadrez gastronómico.
O post é o máximo... A foto uma iguaria e perdição não acredito que a rainha resistisse...
Meu Deus, a Sra provavelmente não gosta é de trouxas!...
Agora se por gentileza o Exmo Feliciano nos desse a receita... Pronto já nem falo em persuadir o dr. Alcipe a convidar, até porque poder-nos -ia faltar a delicadeza de não aceitar.
"Se um embaixador diz que uma rainha não come ovos, a rainha não come ovos." In FSC
Que assertividade incontornável!!!
Corrija-me, caro Embaixador, se estiver enganado: o embaixador em Londres, à altura, António Syder Santiago, era cônsul-geral de Portugal em Nova Iorque, no edifício Dakota. Iniciava funções exactamente no dia em que John Lennon foi assassinado no local (08DEZ80). Os seus pertences (de Syder Santiago) não conseguiram aliás ser descarregados devido à multidão e só o foram no dia seguinte, aniversário do diplomata português.
LPA
Não, caro Luis Pinheiro de Almeida, não era.
... e eu não conhecia essa curiosa história do Dakota.
Ó Senhor Embaixador, é que o diplomata em questão só gostava de natas.
a) Feliciano da Mata
E há a estória daquele médico português que foi à Suécia com a cara metade e num restaurante o menu era em sueco, língua de que o ilustre clínico nem uma palavra sabia.
Queria galinha, qualquer que fosse o preparo; assim, agitou os braços como se fossem umas asas curtas e fez cócórócócó. O empregado sorriu e trouxe dois ovos cozidos. E a esposa: ainda se fossem umas trouxas de ovos... E o doutor: trouxas somos nós.
É vero.
arriscado servir trouxas de ovos, a não ser talvez no sul de espanha, onde tambem há uma rica doçaria de ovos (de gemas).
Normalmente, os europeus não portugueses acham a trouxa e outros similares extremamente doces, muito fortes. o que se diz empalagoso em espanhol, para nós enjoativo.preferem doces com menos açucar, com frutas, natas ligeiras, leves.
Não estou a desfazer na nossa amada trouxa, excelente doce( embora não seja de abusar)mas não é de facto guloseima para o paladar inglês ou doutras gentes para lá dos pirineus. isto independentemente da rainha e os ovos.
natas leves, muitas natas, certamente que recomendou o embaixador, com um gelado de frutas e algo fresco a decorar. natas, portanto.
Esse Embaixador não sabia do que falava. A rainha adora ovos, sobretudo 'soft boiled'. Há montes de livros com receitas 'reais'. Ela até gosta de ovos de avestruz: http://www.finedininglovers.com/stories/royal-food-dishes
Estranho banquete. A mania da mesa de casamento, ao fundo, faz com que o Mário Soares fique com a Dra. Maria de Jesus Barroso à sua esquerda... E, já agora, por que carga de água está lá o embaixador de El Salvador???
Creio que Luís Pinheiro de Almeida confundiu o nome do Embaixador com o do Chefe do Protocolo, aparentemente dado a tropeções com questões da realeza.
Oh agradeço ao anónimo das 3.32 esta reposição de verdade, que recolocou a rainha na minha consideração, acho tão pouco sensual não gostar de ovos, até porque inibe qualquer pessoa da maior possibilidade de ter colesterol e do terror psicológico de enfrentar a morte com saúde...
Continuo a achar que as trouxas de ovos eram uma boa opção,
comem-se com os olhos...
SM A Rainha Isabel gosta de ovos, mas com bacon não com açucar
Caro Anónimo das 06.40: as regras do protocolo, para este tipo de mesas, são assim mesmo. Quanto ao embaixador de El Salvador, tratava-se do decano do corpo diplomático.
Caro Tomaz de Mello Breyner: nada como quem "sabe da poda" para esclarecer as hostes.
... tiraram o acento à rainha e qu´é feito da coroa? Só vejo trouxas ...
Camaradas, que grande frivolidade estarem a discutir os ovos da realeza em pleno Dia do Trabalhador, quando lá fora a luta das classes oprimidas conhece mais um momento delicado!
a) O Procópio Vermelho
Caro e distinto embaixador a emigo. Mais uma vez os seus leitores são distinguidos com mais uma “pérola” da sua distinta carreira diplomática. Obrigado. Mas ovos ou não ovos, não resisto em citar estes dois importates episódios passados na minha presença na sua tão conhecida Residência, com a Família Real. (Peço, por isso, desculpa pela extensão e ocupação do seu excelente espaço) , Obrigado e o habitual abraço, Gilberto Ferraz
O cenário é a residência do embaixador de Portugal em Londres, em 12 Belgrave Square, SW1. A protagonista é a princesa Ana (cujo título oficial é atualmente Princesa Real)(*) que acompanhava a mãe, Isabel II, na visita oficial à embaixada do nosso país em Londres, em retribuição à brilhante cerimónia sobre as comemorações dos 600 anos do Tratado de Windsor, realizadas na capela de São Jorge, no castelo de Windsor, em 12 de maio de 1986. Enquanto a Rainha se encontrava sentada num dos salões e o então ministro conselheiro (número dois da embaixada), dr. Manuel Corte Real, embaraçado e indeciso se deveria ou não perguntar a Isabel II quanto tempo iria estar na Embaixada, que, muito graciosamente, a Soberana veio a responder com a lisonjeira pergunta e elegante termo: "Então não estou em Portugal? Estarei aqui o tempo que os Portugueses quiserem". Esta simplicidade, aliás caraterística singular da Soberana, reflete uma curiosidade pouco conhecida - o seu hábito de, anonimamente, conduzir pelas ruas de Londres disfarçada em motorista do seu táxi - o táxi real! (+).
Nessa ocasião, a filha, Princesa Ana, circulava pelas salas e falava com algumas das pessoas presentes. Encontrando-me com um grupo de colegas da BBC, a princesa Ana aproximou-se e dirigindo-se a Manuel Santana )que muito bem conhece!) perguntou-lhe quando tinha vindo para a Inglaterra. Manuel Santana (que 20 anos depois viria a ser o chefe da Secção Portuguesa), disse que tinha vindo há 15 anos. A Princesa Ana, a demonstrar uma imperdoável falta de chá diplomático, respondeu: "Então, foi um choque cultural enorme!". O que queria dizer, depois
de ter vindo há então 15 anos, de um país para ela atrasado, vir para a culta e desenvolvida Inglaterra, isso significava a mudança brusca da noite para o dia! Para ela, portanto, o choque cultural teria sido enorme! O que a Princesa Ana não sabia é que estava a falar com jornalistas, que não tão ciosos da sua própria profissão e da sempre ambicionada “caixa”, ou melhor, profundamente chocados com a sua afirmação, preferiram manter este episódio no segredo dos deuses.
(*) Magnífica cavaleira, fez parte dos Jogos Olímpicos (Hipismo) em 1976 montando o cavalo puro sangue da mãe, Goodwill. Igualmente valente na tentativa de rapto em março de 1974, na avenida Pall Mall (que vai dar ao palácio de Buckingham), quando regressava da exibição de uma filme para caridade. Ao ser ameaçada pelo pretenso raptor, e exigido que saísse da viatura, quando havia já atingido três membros da escolta a tiro retorquiu em termos desafiadores: “Nunca, seu estúpido!” Foi protegida por membros do público e o assaltante detido.
(+) Curiosidade citada pelo jornalista e apresentador da BBC, Andrew Marr, na sua obra sobre as bodas de diamante de Isabel II, THE DIAMOND QUEEN Elizabeth II And Her People (edição MACMILLAN, 2011, pág. 7.
Nota. Extrato do meu livro POR TERRAS DE SUA MAJESTADE, atualmente no prelo
Completamente de acordo com Patricio Branco. Tive que reduzir em cerca de 20% a quantidade de açúcar das minhas receitas de sobremesas desde que atravessei os Pirinéus.
O leite condensado e a canela também nao deliciam os nossos amigos gauleses...os british nao sei...
Quem nos havia de dizer que José Tomaz Mello Breyner se revelaria no Stéphane Bern do Duas ou Três Coisas : ))
Senhor Embaixador,
"Só sei que nada sei, e mesmo disso não tenho a certeza"
Mas na minha qualidade de profissional com cerca de 30 anos de carreira sei que para os Ingleses, ovos só "salgados" e nunca doces, pelo que suponho que para SM será a mesma coisa.
Abraço
Caro Embaixador, Protocolo é protocolo, ninguém discute, mas nem por isso deixa de ser tonto. Uma regra básica em qualquer jantar é não se sentar mulher e marido ao lado um do outro. Pôr um Presidente sentado ao lado da mulher é então tontice máxima, com todo e devido respeito. Esse banquete deve de qualquer modo ter sido uma boa chatice, confesse lá...
Numa das refeições do Presidente Mário Soares à rainha de Inglaterra, os ex-emigrantes na Inglaterra: José Neves e Áurea Rego, foram convidados a se sentarem na mesa da rainha. Inédito, mas assim foi. O partido do Presidente Mário Soares começou os seus dias junto dos emigrantes portugueses na Europa. Soube depois que os ingleses repararam na atenção e lembrança do "nosso" Presidente aos emigrantes de quem era amigo do "coração". Muitos dos nossos conterrâneos na altura não gostaram de se ver preteridos para as mesas circundantes. Alguns vieram a ser grandes figuras de estado... mas àqueles emigrantes devem os apoios que internacionalmente nos foram dando alguns estadistas europeus, antes e logo após o 25 de Abril. De cada vez que aqui refere as associações de emigrantes e algum em particular, relembro o muito que significaram para Portugal; para as famílias portuguesas, para o equilíbrio das finanças públicas da altura.
A velha senhora diz-se agora
'rimalhadeira comentista
comentadeita rimalhista',
e evoca memórias das suas 'relações diplomáticas':
não comi natas na embaixada,
nada abichei no protocolo,
lá convidada, hélas, pra nada,
que os tolos, lá, só comem bolo
e eu cá, olá, tão nova e dada,
não sei, porém, tolo, onde pô-lo.
mas minha 'vida diplomática'
muitos mais teve e muita prática.
coordenação (...) adjectiva? elabore...
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