quinta-feira, junho 04, 2015

Católicos


Há anos que repito aos meus amigos que sou adepto de "um clube essencialmente católico", o Sporting. Porquê? Porque "só ganha quando deus quiser"!

Mas não era preciso exagerar, nomeando Jesus para treinador...

quarta-feira, junho 03, 2015

Saudades do Gastão


Foi em Paris. Era quase meia noite. Eu tinha passado por casa desses meus amigos para o que pensava ir ser uma conversa breve e que, afinal, acabou por se prolongar. E o dia daquele casal começava sempre mais cedo do que o meu.

O Gastão, o velho cão da família, nunca me havia dado grande confiança, sempre que eu ia lá a casa. Aturava as festas que eu lhe fazia com aquele ar solene que os porteiros dos hotéis de luxo dedicam a qualquer visitante com um rendimento abaixo do Bill Gates. Essa noite não foi exceção: o Gastão, que descera as escadas para me aguardar à porta, ignorou-me depois olimpicamente, deixando-se ficar no tapete do corredor, lugar de guardião imponente da casa que era a sua predileção. Mas só até certa altura. Num determinado momento, ia já alta a conversa, o Gastão fez a sua entrada na sala. De início, não saiu da soleira da porta, onde estacou por uns minutos. Porém, Logo depois, começou a aproximar-se de mim. Estaria interessado no que eu estava a dizer? Mas não havia da sua parte o sinal da menor agressividade. Estava ali, mirando-me, à medida que eu falava. Não olhava para mais ninguém da casa, só para mim, para o único visitante. Ia-se aliás aproximando cada vez mais, já quase não me permitindo cruzar a perna, no sofá onde me sentava. Não era incómodo, mas era estranho.

Estranho foi também o súbito sorriso dos donos da casa, a quem eu, a certo passo, devo ter dado qualquer nota física de "uneasiness" com a crescente proximidade do Gastão. A explicação veio logo:

- Não sabes por que é que o Gastão se está a aproximar de ti, pois não? Porque quer dar a volta noturna com o dono e, por sistema, faz essa "pressão", como que a "dizer" à visita que acha que chegou a hora de se ir embora. Desculpa lá!

Guardei para sempre este episódio com o Gastão, cuja postura digna, com traços de esfinge egípcia, lhe chegou a merecer o neologismo de "embaixacão".

O Gastão morreu agora. De velho. Durante muitos anos foi um companheiro ímpar dos seus donos. Esteve com eles em tempos muito, mesmo muito, complexos. Pode presumir-se que sentiu os estados de alma de quem lhe dedicava uma imensa afeição. O Gastão retribuiu como podia e sabia, mas fê-lo de tal forma que a sua memória irá acompanhar os donos para sempre. A ambos deixo aqui um abraço forte.

terça-feira, junho 02, 2015

A grande oportunidade

O encontro havia sido marcado através de um cuidado boca-a-boca, sem o uso de telefones. Não podiam correr o mínimo risco. A revolução estava na rua há menos de um mês. Os "agentes da DGS" tinham sido detidos, avançava o "saneamento" dos envolvidos com o regime caído naquela data "fatídica" de abril de 1974. Os "inimigos da Pátria" andavam à solta pelo país, tinham atravessado a fronteira sem limitações, outros haviam sido libertados de Caxias e Peniche, estavam mesmo a ser vistos como "heróis". O "esforço patriótico pela defesa do Ultramar" revelara-se, enfim, em vão, com os "movimentos terroristas" cada vez mais senhores da situação em África. O marcelismo, como eles sempre haviam pensado, havia sido o "coveiro do Estado Novo".

Era um grupo de radicais de direita, que combatera politicamente Marcelo Caetano e mantivera bem acesa a "chama do exemplo de Salazar", que se havia juntado nesse fim de tarde, em casa de um deles, lamentando o estado de um Portugal que viam reduzido ao "retângulo" europeu, eles que haviam feito toda a sua vida animados pela "gesta do Império". A alguns, começavam a chegar rumores da sua iminente prisão. Haviam-se exposto em publicações "nacional-revolucionárias" e o "sinistro" MFA, "manipulado pelos comunas" não deixaria de tirar desforço. Uns eram mais conhecidos, outros eram figuras cinzentas dessa odiada "extrema-direita", que estava agora na primeira linha da diabolização que a imprensa e a televisão acicatavam hora após hora. Alguns haviam integrado o "Jovem Portugal", outros haviam saído dessa escola "nacionalista" que foi a coimbrã "Cidadela", outros ainda haviam escrito laudas no "Agora" e, depois, na "Política", passando em certos casos pelo "Resistência" e folhas congéneres.

Trocaram informações, avaliaram riscos, estudaram hipóteses. Para alguns, a saída do país era a única solução. Outros alimentavam a ideia de dar corpo a formações políticas conservadoras, de que viriam a ser exemplos o "Partido do Progresso", o Movimento Federalista Português" ou o "Partido Liberal". A hipótese de integrar o CDS tentava alguns mais moderados, enquanto os mais radicais consideravam já ajudar Manuel Múrias no lançamento do "Bandarra". Outros testavam o caminho para o Brasil ou para Madrid. Nenhum estava, contudo, minimamente otimista.

O ambiente estava assim longe de ser festivo, tudo parecia correr mal, e essa foi a razão porque o espanto invadiu todas a caras quando, de uma cadeira do canto da sala, uma voz se ergueu com uma frase surpreendente e enigmática:

- Havia aqui uma grande oportunidade!

"Uma grande oportunidade"?! As denúncias caíam sobre eles, nos seus empregos a sua situação e das suas famílias estava a tornar-se, dia-a-dia, mais complicada, os que eram docentes haviam deixado de poder entrar nas universidades, lá em casa as "criadas" passaram, de repente, a surgir como intrusas e potenciais denunciantes, os "homens" das quintas de família mostravam-se crescentemente arrogantes, alguns "amigos" haviam-se prudentemente afastado. Os militares que lhes eram próximos tinham sido postos de lado, dos responsáveis da "polícia política" nem era bom falar e a própria "nomenklatura" do marcelismo, que tão irresponsável se havia mostrado para travar a revolta da "soldadesca", estava, também ela, agora em apuros. E era nesse contexto que aquele companheiro de luta falava de "oportunidade"?!

Todos se voltaram para ele. E ele explicou. Não tinham regressado ao país todos os "traidores" que, ao longo dos anos, de Moscovo à Argélia, de Paris à Suécia, de Roma a Londres, se haviam refugiado no estrangeiro, alguns "bombistas", outros desertores e "subversivos", que estavam bem identificados e que, de súbito, acharam que já podiam passear-se com toda a desenvoltura pelo Rossio?

Os outros concordaram, mas não conseguiam perceber onde ele queria chegar. E ele completou a explicação:

- Não estão cá todos os que o regime andou, durante décadas, a tentar agarrar? Quando eu falo de  "oportunidade" é para significar que, se ainda fosse possível, "dar uma volta a isto" e retomar o controlo do país, tinhamos, agora e pela primeira vez, todos esses traidores por aqui, metiamo-los "na grelha" e o país podia, enfim, ver-se livre para sempre desse bando de comunas e de gentalha da mesma laia. Por muito tempo, não nos iriam incomodar! Não era uma grande oportunidade?!

Esta é uma história verdadeira. Ouvi-a de um participante dessa reunião de maio de 1974, em que este terá sido o único momento divertido.

segunda-feira, junho 01, 2015

O café do senhor José

Não muito longe de minha casa, existe o café do senhor José. Não se chama assim, mas é assim que é conhecido na família, que lhe dá preferência, que lhe gaba a simpatia, a atenção do serviço e os doces variados. Passei por lá algumas vezes (para o meu gosto, é exagerada a "walking distance" em relação a minha casa, mas esse é um problema meu) e confirmei amplamente a avaliação feita. Constatei também que, pela exiguidade do espaço onde se aloja a clientela, anda-se lá dentro um pouco aos encontrões, mas que isso não provoca a menor reação negativa nos fiéis fregueses do bairro. O ambiente no café do senhor José é magnífico e familiar.

Mas se a circulação da pequena multidão no café do senhor José não constitui um problema e se consegue resolver sempre sem o menor incómodo de ninguém, já o é, a certas horas, o insuportável estacionamento dos automóveis dos dois lados da rua, nas suas cercanias, sem respeito pelos transportes públicos e privados que tentam circular, não raramente provocando confusões e episódicos engarrafamentos, sem atenção pela pressa dos outros. É que alguns comodistas frequentadores do café do senhor José - ou da lavandaria do chinês ou da padaria ou da farmácia ou mesmo da ourivesaria - decidem levar até à porta o seu carro. Pena é que não saibam que não lhes basta morar por ali para poderem exibir um atestado de civilidade. Esta demonstra-se por essa coisa tão simples que é a educação, que reside menos no beija-mão e mais nos gestos comuns de urbanidade do dia-a-dia.

Lisboa é uma cidade muito agradável para viver e o espírito de bairro ajuda muito a isso. Mas mais ajudaria se os lisboetas fossem mais cuidadosos com os direitos dos outros, fossem mais civilizados e menos egoístas, cuidassem em pôr o lixo convenientemente nos devidos recipientes, não deixassem os carros nos passeios sem espaço para os peões passarem, não parqueassem viaturas no meio da rua a impedir os elétricos enquanto entregam as crianças nos infantários ou colégios, se mostrassem previdentemente solidários com quem se suja com o lixo dos seus cães.

Também eu gostaria muito de poder ir de carro tomar um café matinal ao sr. José, ao Chef ou às Cristal lá do bairro, agora que a Valquíria se tornou num local "inível", como dizia um velho amigo. Mas não vou, porque teimo em ter pelos outros o respeito que muitos outros não têm.

O Bruxo de Fafe em Lisboa

Sentadinho na cadeira
Quase chega
Com os pézinhos ao chão,
A esforçar-se.

Se se senta mesmo à beira
E escorrega,
Pode dar um trambolhão
E desgraçar-se.

De dedito espetado,
Perspicaz,
Ele debita com desdém
O arrazoado.

É rapaz bem informado
E é capaz 
De mandar aqui e além
O seu recado.

Quem lhe conta os segredos
Que revela?
Quem lhe dá tanto pretexto
P'ra brilhar?


Como sabe aqueles enredos,
O tagarela?
Sempre "dentro do contexto"
P'ra variar.

Ao olhá-lo, perorando
Com delícia
(Que o valente pequerrucho
Desabafe!)

Qual Sibila revelando
A notícia.
Já o conhecem como o Bruxo
Lá de Fafe.

31/5/15

O meu amigo e colega António Russo Dias publicou na sua página de Facebook este retrato rimado que não resisto a reproduzir. Estou certo que até o dr. Marques Mendes o apreciará

domingo, maio 31, 2015

Notícias de Oeiras


- Então não dizes nada sobre a vitória do Sporting na Taça de Portugal?

- Está a custar-me, confesso! Não me apetece lembrar aos meus amigos do Porto que acabámos de os igualar no número destes troféus.

- Então, e o Benfica?

- Coitados! Lá ficaram com a tacita Lucílio Baptista, uma espécie de segunda dama de honor. Todos contentes...

- Mas ganharam o campeonato!

- Claro! E, por uma vez, ganharam bem! Mas a propósito é que isso vem? Não era de taças que tu querias falar?

Levy


Pela décima vez, o filósofo francês Bernard-Henry Levy voltou a ser atingido, numa ocasião pública, por tartes de doce, o conhecido "atentado pasteleiro", que a história tem consagrado.

Levy é uma das mais irritantes personagens do universo intelectual francês. É, além disso, o "iluminado" político que conseguiu convencer Nicolas Sarkozy à operação de intervenção na Líbia, apresentando-lhe as figuras da oposição a Kadhafi que acabaram por fazer o "lindo serviço" que está à vista! Grande parte da tragédia das migrações mediterrânicas deve-se ao atual caos na Líbia, provocado por uma intervenção que não levou a cabo exclusivamente aquilo a que o mandato das Nações Unidas lhe permitia, "explorando o sucesso" (como dizem os militares) e descuidando o dia seguinte. Foi a clara e oportunista subversão desse mandato que deu um bom alibi à Rússia para recusar soluções para a Síria no Conselho de Segurança.

Noel Godin, o anarco-humorista que organiza regularmente estes "atentados" contra o cabelo estudadamente armado de Levy, realiza o sonho clandestino de muita gente. Francesa e não só...

Carlos Costa


Conheço Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, há bastantes anos. É uma personalidade a quem sempre reconheci um elevado sentido de responsabilidade no serviço público, uma pessoa séria e dedicada, com grande conhecimento da área financeira e europeia. Não tenho a menor dúvida em considerá-lo um dos grandes técnicos que Portugal possui nesta área. 

Todos estes atributos não excluem a possibilidade de Carlos Costa poder cometer erros. No caso BES pareceu-me ter ficado evidente que Carlos Costa, podendo tendo visto chegar a "vaga" da tragédia que se aproximava, não foi capaz, em tempo útil, de "puxar o tapete" a Ricardo Salgado. A doutrina divide-se sobre as razões por que assim procedeu, sendo que a versão menos benévola é a de que teve receio de provocar um embaraço público ao governo no termo da presença da "troika", com risco de afetar a "glória" da "saída limpa". 

Já me parece menos criticável a solução encontrada para o BES, embora todos devamos estar solidários com os custos que a mesma implicou para muitos. Naqueles difíceis dias, julgo que Carlos Costa - que o executivo deixou, de forma cobarde, sozinho no meio da praça - teve uma atuação muito responsável e tecnicamente tão boa quanto era possível. Com a única exceção, como à época aqui disse: não ter acautelado a eventualidade do processo poder acabar por ter um encargo substancial para o erário. Neste particular, ao afirmar, com aparente convicção, aquilo que não era uma evidência, fez um desnecessário frete ao governo e não prestou assim um serviço à imagem do Banco de Portugal. Foi pena.

A recondução de Carlos Costa por Passos Coelho não me surpreendeu. Como também não me surpreendeu que os tenores da maioria na Assembleia da República, que haviam sido estimulados pelas declarações da ministra das Finanças a criticar a supervisão na Comissão parlamentar de inquérito sobre o BES, tivessem mudado de agulha verbal, quando confrontados com (mais um)a cacofonia dissonante do governo - e isto não é um elogio para eles, é claro. 

O primeiro-ministro quer no Banco de Portugal, nos próximos anos, alguém que prolongue, qualquer que seja o seu destino nas urnas, a defesa da bondade da solução encontrada para o BES. Melhor: alguém que lhe sirva de pára-raios retroativo no caso do processo Novo Banco vir a obrigar um forte custeio orçamental. Passos Coelho, lá de Massamá, irá silenciosamente fazer dizer que a decisão da solução foi de Carlos Costa. Se acaso as coisas correrem menos mal, então não deixará de lembrar que foi ele quem renomeou Carlos Costa.

Termino dizendo que Carlos Costa não deveria ter aceite continuar sem exigir ao governo que o PS ficasse associado à sua recondução. Da mesma maneira que, quando foi nomeado por um governo PS, este não deixou de tomar em conta a opinião do então principal partido da oposição, o PSD, partido de quem Carlos Costa nunca escondeu estar politicamente próximo. Tenho muita pena que isso não tivesse acontecido, por Carlos Costa e pelo país, que necessitaria de ter, nos próximos anos, um governador do Banco de Portugal forte e com um reforço político assegurado.

sábado, maio 30, 2015

Seleção

Na semana que agora termina, fiz parte de um painel de seleção de jovens "trainees" para uma das maiores empresas nacionais, cujo negócio se situa maioritariamente fora do país. Ao longo de vários dias, foram muitas horas de diálogo com dezenas de jovens de diversas origens académicas, sem exceção com mestrados em excelentes instituições universitárias, com idades que raramente ultrapassavam os 25 anos. O grupo a selecionar representava já só 1% (leram bem) dos inscritos, que haviam sido sujeitos, ao longo de meses, a um rigoroso processo de seleção profissional. Já em 2014 tivera experiências idênticas, em Portugal e no estrangeiro. Dentro de semanas, farei isso noutro continente.

Devo dizer que ser parte deste exercicio é, ao mesmo tempo, uma experiência fascinante e delicada. 

Fascinante porque este tipo de experiência acaba por ser uma montra ilustrativa do Portugal de hoje. Ouvir os jovens falar das suas ambições, dos seus interesses pessoais, do modo como olham o país e o mundo, da sua leitura da relação com a família e os amigos é muito interessante e instrutivo. No meu caso, para quem viveu muito tempo no estrangeiro e perdeu um pouco a ligação à realidade do país novo que aí está, este tipo de tarefa, somada às incursões que tenho vindo a fazer na vida universitária, permite "atualizar-me" sobre Portugal. E, sem ter tido surpresas, confesso que tive algumas revelações.

A delicadeza deste tipo de exercícios é, contudo, muito grande. Trata-se de conseguir avaliar, pela observação da interação em exercícios conjuntos, complementada por entrevistas individuais, a disponibilidade para o trabalho em grupo, o potencial de liderança e de entusiasmo pelas tarefas que os esperam, que leitura esses jovens têm da realidade que os envolve, procurando perceber, por detrás do que exprimem e de como se exprimem, se revelam potencial para as exigências específicas da profissão a que se estão a candidar. A complexidade agrava-se ainda mais pensarmos na imensa responsabilidade que consiste, através de um simples "sim" ou de um "não", dar sequência ou pôr termo a um sonho de carreira, a um investimento pessoal num concurso que, para cada um deles, pode significar uma profunda mudança de vida. 

sexta-feira, maio 29, 2015

Anarquismos

Ontem, à hora de almoço, passei em frente à morada onde esteve instalado o restaurante "Os Anarquistas", junto ao teatro da Trindade. O que por lá está hoje já não lembra o que foi. Era um dos mais antigos restaurantes de Lisboa, criado em 1906, por décadas pouso de artistas, intelectuais, jornalistas e outros frequentadores de animadas tertúlias. Diz-se que o nome viria mais dessa agitação verbal do que de qualquer vocação libertária. Recordo-me de, nos anos 70, quando trabalhei na zona do Chiado, ter lá comido algumas vezes, curiosamente sem grande memória apreciativa do que o restaurante servia, registando apenas que não era muito barato e que fazia parte da tradição de cozinha de galegos que muito marcou a restauração de Lisboa. 

Há anos, um amigo meu passou em frente ao restaurante e, num impulso, decidiu almoçar por lá. O nome tinha mudado e ele achou curioso experimentar o que propunha a nova gerência. Entrou, sentou-se, pediu a lista à empregada e começou a ler o seu jornal. Quando levantou os olhos, notou, com alguma perplexidade, que naquele espaço só havia mulheres, em todas as mesas à sua volta. Essa estranheza foi reforçada pelo facto de algumas delas deitarem olhares insistentes para a mesa onde ele estava, sozinho, a aguardar o que tinha encomendado. A persistência dessas miradas começou mesmo a incomodá-lo. 

De repente, teve um sopro de conforto: tinha acabado de entrar uma velha amiga! Finalmente, ia quebar o seu isolamento! A reação da amiga, contudo, surpreendeu-o: "O que é que tu estás aqui a fazer?!". De início não percebeu o espanto mas o sorriso malicioso da sua agora companheira de mesa acabou por fazê-lo compreender no que se metera! O espaço que sucedera a "Os Anarquistas" era agora um lugar gay feminino! A amiga, uma conhecida figura pública que ele sabia ter essa tendência, estava divertidíssima. Ele, logo que pôde, pôs-se a milhas... 

Falar claro


Há dias, num debate público, veio à baila a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). De imediato, convergiram sobre a organização os tradicionais discursos congratulatórios sobre o trabalho desenvolvido, com a "juventude" do modelo a ser arguida como justificação complacente para as suas insuficiências. Não foi por espírito de contradição que não me juntei ao coro.

A CPLP tem quase duas décadas, pelo que tem já as responsabilidades da maioridade. Se hoje é o que é, isto é, se não atingiu uma velocidade de cruzeiro mais entusiasmante, não foi por falta de tempo: foi por ausência de vontade política dos Estados integrantes para ter ido mais longe.

Não vale a pena esconder o facto de que a organização sofre da anómala circunstância de que, ao contrário das suas congéneres britânica ou francesa, não está centrada no seu país membro mais relevante à escala global. Como a questão do acesso da Guiné-Equatorial bem demonstrou, Portugal não tem hoje qualquer tutela substantiva sobre a CPLP – e isso torna-a, em grande medida uma organização mais igualitária e equilibrada. Mas, nem por isso, mais dinâmica.

Desenhada nos seus estatutos sob valores ético-jurídicos tributários de uma cultura política “eurocentrada”, no processo interno da CPLP projeta-se uma ordem de valores onde prevalece a leitura mais flexível e relativizada com que, tradicionalmente, o Sul sempre olha as dimensões democráticas ou do Estado de direito. Isto é um juízo de facto, não de valor.

Mas este é apenas um dos aspetos em que a atipicidade da CPLP se objetiva. Com “sócios” nos cinco continentes, sem fronteiras entre si e com graus de desenvolvimento muito díspares, os Estados CPLP têm a caraterística de operarem em espaços de afirmação geopolítica sem potenciais contradições entre si. O crescimento de cada um dos Estados acarretará assim vantagens sinérgicas para o conjunto. E isto é muito valioso.

Duas décadas depois da sua criação, o que leva a esta evidente “anemia” da organização? O principal fator é o facto do Brasil não se ter decidido utilizar a CPLP como um instrumento matricial da sua política externa. É no empenhamento do Brasil que reside a chave do futuro da organização. Mas isso não chega.



A CPLP tem de ser olhada em perspetiva e repensada, de forma aberta e descomplexada, nisso envolvendo a multiplicidade dos agentes que hoje se expressam em português. Uma língua falada por muitos milhões de pessoas mas da qual praticamente ninguém fala fora desse espaço. E isto é preocupante.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 28, 2015

O consenso "à la carte"

A palavra "consenso" tem uma carga forte nos últimos anos. Nem sempre pelas melhores razões.

Nos últimos tempos, sempre que foi necessário fazer pagar aos portugueses um custo que afetasse os seus haveres, o governo apelou ao consenso do principal partido da oposição.

Há dias, viu-se isso na hipótese de voltar a cortar nas atuais reformas. Era a forma de partilhar o odioso, uma forma de desresponsabilização sobre o fracasso de uma política. Em 2013, como se recordarão, o presidente da República foi um complacente agente da "operação consenso".

Mas, curiosamente, não se viu agora o chefe do Estado apelar publicamente a que, em temas como a questão da privatização total da TAP ou da recondução do governador do Banco de Portugal, o maior partido da oposição fosse ouvido. Por que será?  O consenso é "à la carte"?

quarta-feira, maio 27, 2015

150 anos em português


O "Diário de Notícias" faz 150 anos. Para um jornal, é obra! Esta bela imagem de Stuart, de 1930, cujo desenho a alguns trará à recordação dos tempos do "major Alvega", serve-me de suporte à nota sobre um debate em que participei esta manhã, comemorativo do aniversário, sobre os desafios da língua portuguesa no mundo, com colegas de vários países lusófonos, no Pavilhão de Portugal do Parque das Nações.

terça-feira, maio 26, 2015

Teresa Paixão


A RTP 2 é o parente pobre da RTP. E, no entanto, sob a mão culta e imaginativa de Teresa Paixão, o canal dá hoje, cada vez mais, grandes lições de qualidade televisiva, em sinal aberto, a muita gente que anda aí pelo cabo.

Um grande abraço de parabéns, Teresa! Viva a televisão pública!

Acordar sereno

Nos tempos da “outra senhora”, o discurso oposicionista dizia que os portugueses ansiavam por ter a certeza de que, quando alguém lhes batia à porta de manhã cedo, era o padeiro e não a polícia política. Os padeiros, ou os leiteiros, já não batem diariamente à nossa porta (infelizmente!) e a polícia política desapareceu. A democracia pretendeu regular o arbítrio e, em tese, dar sossego a um cidadão que não deva nem tema.
 
Nos dias de hoje, os portugueses anseiam por uma sociedade previsível, continuam a não gostar de más surpresas, estando contudo preparados para as mudanças que lhes sejam benéficas. A sociedade democrática tem a mudança no seu ADN. Ao colocar regularmente aos eleitores a possibilidade de escolhas, abre o caminho à alteração das regras da sociedade, mas, sempre e só, com o objetivo de melhorar a qualidade das políticas públicas, de oferecer aos cidadãos soluções coletivas mais favoráveis à realização dos seus interesses individuais.
 
Porque não é de admitir que os programas políticos apresentem novas propostas apenas pelo capricho de “fazer diferente”, é suposto que a imaginação de quem se propõe mudar o “statu quo” não ultrapasse nunca esse limiar de responsabilidade cívica. Olhando para o que o principal partido da oposição agora propõe – e que, no essencial, está já à vista dos futuros eleitores -, parece evidente que tal vai nesse caminho.
 
Nos últimos anos, esta espécie de “suspensão da democracia”, que o programa da “troika” e os excessos locais de zelo nos trouxeram, acarretou uma instabilidade sem precedentes na vida dos portugueses. Era inevitável? Se o respeito pelas pessoas, em especial pelas mais idosas, mais frágeis e mais desprovidas de recursos, tivesse sido a regra orientadora da execução das políticas, o país não teria mergulhado nesta angústia ansiosa de que ainda se não libertou.
 
A arrogância autoritária com que hoje se mudam as regras, com que unilateralmente se reformula o contrato entre o cidadão de boa fé e o Estado, em que a instabilidade fiscal e legislativa em geral passou a fazer parte do nosso quotidiano, em que uma espécie de administração “kafkiana” se converteu numa instância inapelável, tudo isso induziu nos portugueses uma profunda síndroma de desconfiança. Nos dias que vivemos, está criada a sensação de que nada pode ser dado por assente ou adquirido, porque o que era verdade ontem pode deixar de sê-lo amanhã, sem uma desculpa, sem uma justificação, no fundo, sem respeito pelos cidadãos.
 
Se há um conselho – e um só – que eu possa dar àqueles que se propõem como alternativa para tutelar o Estado nos próximos anos é o de que procurem transmitir aos portugueses a certeza de que tudo farão para que eles possam vir a acordar, todos os dias, sem o temor de que esse mesmo Estado lhe vai trazer más surpresas e mudanças drásticas e incómodas à sua vida e das suas famílias. Alguns anos vividos nessa simples mas essencial estabilidade poderiam ajudar muito a recuperar a confiança perdida, reconciliando os cidadãos com o seu Estado.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

A ler vamos...


José António Inácio de Sousa Quitério, conhecido como José Quitério, de quem aqui já muito se falou, homem que deu à cultura da alimentação em Portugal grande parte da sua vida, acaba de publicar este seu quinto livro, onde reúne textos magníficos, que nos ensinam e dão muito prazer.
 
Se pudesse, publicava aqui essa elegia que se chama "O Adeus português ao Bacalhau", um texto imperdível que este livro também acolhe, onde a História se cruza com a cultura e a cultura da nossa culinária, um fresco nacional onde todos estamos representados.
 
Muitas vezes, no final das noites, nas madrugadas em que hesito entre a escolha da última leitura, regalo-me com um pedaço de um texto de José Quitério como faço com as crónicas de Manuel António Pina ou de Miguel Esteves Cardoso ou com a poesia de Alexandre O'Neill. São eles, entre outros, que, com o seu humor saudável, me mantêm bem acordado para as coisas da vida, antes de ir dormir.
 
Leiam este livro de José Quitério. Garanto que não se arrependerão!

segunda-feira, maio 25, 2015

Terei olhado os jacarandás?


Entre abril e junho, em alguns locais de Lisboa, florescem os jacarandás. É uma árvore que alia a beleza a algum incómodo, porque o seu fruto, quando tomba sobre a pintura dos automóveis, não deixa os respetivos proprietários em excessivo contentamento.

Tal como a parte superior da rua Castilho, a avenida dom Carlos I (nunca percebi por que se diz "primeiro", porque nada indica que vá haver um "segundo"...) parece-me ser a artéria da capital onde os jacarandás oferecem um panorama mais deslumbrante (agora me lembro que, no jardim da casa onde vivi em Brasília, havia também um jacaradá fabuloso!).

A "dom Carlos" foi, em 1974, o local onde o MES (o então recém-criado Movimento de Esquerda Socialista) tinha as suas instalações, em dois prédio diferentes. Já me tenho perguntado se, à época, a nossa militância (eu sempre fui um sofrível militante) nos permitiu atentar na beleza do arvoredo da artéria. Duvido muito! Embora as coisas e as pessoas bonitas não fossem indiferentes a uma geração que se entretinha então a fazer a Revolução, posso imaginar que o ritmo desses dias (e, principalmente, dessas noites) não dava espaço para contemplações dessa natureza. É que só uma certa maturidade nos conduz a parar perante algumas coisas (e também pessoas) que, por muito evidentes "ali à volta", tendemos a não olhar com a atenção devida.

Ao andar pela cidade, reparei uma vez mais nos jacarandás. Mas, passados todos estes anos, só há horas descobri que, no largo do Rato, também há jacarandás. Não deixa de ser curioso...   

domingo, maio 24, 2015

Sem saudades

Náo há nenhuma razão particular nem nenhum motivo próximo para que aqui recorde uma pequena historieta que o meu pai me contava, em criança, e que sempre muito me impressionou. Só o facto de a ter relatado a um amigo, hoje, durante uma conversa.

Era a propósito de um cavalheiro que, nos anos 20 do século passado, estava emigrado no Brasil. Era um homem relativamente abastado, pelo êxito obtido nos seus negócios. Para trás, deixara a família, numa aldeia nos arredores de Viana do Castelo. Cada três ou quatro anos, regressava à terra, nessas longas viagens de barco que o aproximavam ou separavam da mulher e dos filhos.

Invariavelmente, o convívio com a família distante "acabava mal". Depois de algumas discussões, que se agravavam nos últimos dias da sua estada na aldeia, acabava quase sempre por bater nos filhos, numa atitude que chocava os seus amigos.

Um deles ousou um dia perguntar-lhe a razão desse comportamente, tanto mais que os filhos manifestamente gostavam dele e sofriam com a sua ausência. A resposta do homem, na rudeza de uma cultura comportamental em que a exposição do afeto não era muito comum, foi surpreendente: "É porque gosto muito deles que lhe bato, nas vésperas da minha partida. Vou estar de novo fora muito tempo, até posso morrer por lá. Por isso, ao bater-lhes, espero que sofram menos com a minha ausência, que tenham menos saudades de mim"

Diplomatas


Há dias, descobri por acaso, numa livraria, um pequeno livro editado pela Universidade Católica Editora que recolhe os testemunhos pessoais de seis embaixadores portugueses sobre o futuro da União Europeia. Trata-se da transcrição de palestras feitas em 2013 e 2014 pelos nossos embaixadores em Madrid, Roma, Londres, Berlim, Dublin e Paris - respetivamente, Álvaro Mendonça e Moura, Manuel Lobo Antunes, João de Vallera, Luís de Almeida Sampaio, Bernardo Futscher Pereira e José Felipe Moraes Cabral.

Lamento imenso que este livro não tenha tido a divulgação que merece. Cada um a seu estilo, com perspetivas e metodologias de abordagem diferentes, estes meus colegas, também muito diferentes entre si, apresentam um magnífico fresco de reflexões sobre a Europa, lida esta a partir dos países onde estão ou estiveram acreditados.

Tenho pena que a classe política portuguesa e a nossa comunicação social não leia com atenção estes trabalhos, porque talvez pudesse, através deles, avaliar da excecional qualidade de observação da nossa diplomacia, do modo atento como defendem o interesse português no contexto da União Europeia e do mundo, bem como da profundidade, culta e profissional, da sua abordagem. É que, ao fazê-lo, talvez pudessem diluir algumas ideias preconceituosas sobre aquela que é uma grande carreira de serviço público, por vezes caricaturada e muito mal tratada. 

sábado, maio 23, 2015

Joaquim Durão


Há menos de dois anos, publiquei aqui este texto:

"Há pessoas que perdemos de vista, às vezes por anos, e que, por um acaso, voltamos a reencontrar. Ontem, voltei a cruzar uma figura que as novas gerações provavelmente desconhecem mas que, décadas atrás, foi um nome destacado do desporto nacional, imensamente popularizado pela televisão. Refiro-me ao xadrezista Joaquim Durão.

Conhecemo-nos em Angola, quando ele foi por lá representar o xadrez português. Encontrámo-nos depois, em outras ocasiões. Curiosamente, seria de novo Angola - ou melhor, uma conversa sobre um artigo que ontem publiquei sobre as relações luso-angolanas - a "juntar-nos".

Joaquim Durão tem hoje 82 anos e uma história notável contada no curto filme (6 minutos) que pode ser visto aqui."

Revelo agora que nos "juntámos" nesse dia 17 de outubro de 2013 numa longa conversa telefónica, por sua iniciativa, a felicitar-me por um artigo que eu tinha escrito num jornal sobre as relações luso-angolanas. Disse-me então coisas muito simpáticas, porque, sem eu saber, seguia a minha vida com alguma atenção. Lembrou-me ter estado no lançamento de um livro meu, uma surpresa muito agradável que eu também não tinha esquecido. Tomei a iniciativa de lhe enviar outro que ele não possuía. Nunca mais falámos.

Joaquim Durão fazia parte das minhas antigas memórias televisivas. Aprendi a "mexer as pedras" com ele no écran. Foi ele quem, com o seu estilo agradável e didático, me fez despertar o gosto pelo xadrez. Possuo uma foto do meu pai a jogar uma "simultânea" com Joaquim Durão, nos claustros do Governo Civil de Vila Real, em que havia conseguido um empate com o mestre, feito de que muito se orgulhava. Em 1984, Joaquim Durão foi a Angola, onde o seu prestígio como xadrezista era imenso. Em alguns dias consecutivos, em jantares em minha casa, nesses tempos poucos fáceis da vida de Luanda, criámos uma relação de forte simpatia, que perduraria para sempre.

Soube que Joaquim Durão morreu, há três dias. Se não fosse uma banalidade, eu diria que perdeu o seu último jogo, numa vida felizmente cheia de grandes vitórias. Mas não sei dizer melhor. Deixo aqui o meu muito sincero pesar à sua família.

Rockwell