Há anos que hesito em contar esta história. Porque é complicada, porque a leitura que faço do episódio está longe de ser consensual e por todo um conjunto de razões que logo verão. E porque me marcou.
Foi há 20 anos. Eu fazia parte do júri de admissão de novos diplomatas, uma tarefa que levava muito a sério. O nosso objetivo era selecionar cerca de 15 pessoas, dentre mais de um milhar que tinham investido muitas horas da sua vida a trabalhar para ter essa oportunidade. Umas das provas fundamentais desse complexo concurso (desconheço como são as coisas hoje), depois dos exames escritos e antes das provas orais, era então a chamada "prova de apresentação" - uma conversa entre o candidato e quatro membros do júri, durante 20 a 30 minutos, com uma parte em francês ou inglês, na qual se procurava perceber da adequação do mesmo às funções a que concorria, quer na maneira de estar e de se exprimir, quer no seu nível geral de conhecimentos e na forma de os articular. Era uma prova reconhecidamente muito subjetiva, mas que eu considerava fundamental: por ela eu percebi sempre quando o candidato claramente "não servia", embora em alguns escassos casos me tivesse enganado no sentido inverso, isto é, dei a minha anuência à entrada de certas pessoas que o tempo veio a demonstrar não terem as qualificações que pareciam demonstrar, tornando-se menos bons profissionais.
A história de hoje tem um caráter muito particular. Nesse dia, um dos candidatos era anão. Nunca na minha vida me cruzei com um diplomata anão, embora admita que alguns possam existir, em carreiras estrangeiras. Tenho uma noção, empírica e muito discutível, mas que não vou discutir, de que um anão é uma pessoa cuja adequação ao exercício pleno das exigências que a vida diplomática acarreta seria muito difícil. A mim, as razões parecem-me óbvias, mas que sei que seria difícil defendê-las perante a brigada radical do "politicamente correto". O mesmo seria válido, aliás, para os portadores de algumas deficiências, sendo que um anão - também sei! - não é um deficiente.
Quando o candidato entrou na sala, devo dizer que senti que a todos nos atravessou alguma angústia. E se acaso ele tivesse uma qualidade intelectual excecional, se viesse a demonstrar uma "maîtrise" extraordinária, em todas as áreas do universo diplomático em que o interrogássemos? Se assim acontecesse, e apenas pelo facto de ser anão - condição física que, repito, eu assumo considerar não adequada ao exercício de funções diplomáticas -, iríamos eliminá-lo e recusar a sua passagem à prova oral de conhecimentos? Aquela era, aliás, a única prova do percuso do exame onde o facto de ser anão poderia ou deveria ser tido em conta. Por isso, a nossa responsabilidade era ainda maior.
As quatro pessoas do júri não haviam trocado impressões prévias entre si, talvez por algum pudor na abordagem do tema. A conversa começou, no registo habitual. O homem, que já não era novo, fez uma prova que me recordo ter sido apenas sofrível, com algumas evidentes deficiências que, fosse qual fosse o candidato, o não recomendariam para ingressar na carreira. Vou dizer algo que sei ser polémico: considero que ainda bem que assim foi, porque, tivesse sido outra a sua prestação, as coisas teriam sido bem mais complexas para todos nós. O candidato foi eliminado e já não transitou para a prova oral.
Lembrei-me disto há pouco, ao ver uma entrevista com o ator David Almeida, também anão, na SIC Radical. Há histórias, menos comuns, que, pelo seu caráter menos vulgar, nos ficam pela vida. Esta, para mim, foi uma delas.