A apresentar mensagens correspondentes à consulta guterres ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta guterres ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, setembro 30, 2022

Nervos de aço


A Federação Russa aceitou o pedido de integração das quatro repúblicas criadas no território da Ucrânia, duas em 2014, duas outras pelos referendos organizados na última semana.

Sei que, chegados a este ponto, muitos leitores devem estranhar que o parágrafo com que encimei o texto não esteja recheada de aspas, que a palavra repúblicas não esteja antecedida do ritual auto-proclamadas, que o termo referendos não tenha antes o adjetivo de falsos. Fiz isso de propósito, porque as evidências devem falar por si e as pessoas não precisam de muletas gráficas para entenderem o óbvio. Aquelas repúblicas e a sua independência fugaz valem o que valem, os atos referendários têm a legitimidade que cada um quiser atribuir-lhes. A cada um a sua verdade, ou a sua mentira.

No seu discurso de hoje, somado a outros recentes, Vladimir Putin foi muito claro. A sua leitura da Rússia mostra uma evidente não acomodação à realidade que constituiu a implosão da União Soviética, em 1991, da qual resultou a criação de 15 Estados. Putin não desejava o fim da União Soviética. Já agora, eu relembraria que Mikhail Gorbachev também não.

O que é distintivo nesta doutrina de Putin é a noção, que hoje ficou ainda mais clara, se necessário fosse, de que os espaços geográficos da antiga URSS onde ainda exista uma significativa presença de populações russas constituem, para a Rússia de Vladimir Putin, territórios passíveis de integração na Federação Russa, tida relutantemente como a matriz institucional atual da pátria russa.

A lógica deste raciocínio é extremamente simples: trata-se de tentar reverter, na medida do que hoje ainda é possível, o destino criado a essas populações pelo ato de 1991, que, agora se percebe melhor, não é aceite por Putin como legitimador de fronteiras.

Se repararmos bem, o gesto de Moscovo, ao reconhecer, em 2014, as repúblicas da Abcásia e da Ossétia do Sul, áreas cindidas da Geórgia e das quais tinham saído, depois de conflitos armados, as respetivas populações não russas, já ia precisamente nesta linha.

Na Ucrânia vivia, até ao dia de hoje, a maior população russa expatriada. Na perspetiva de Moscovo, isso agora acaba: essas populações, e com elas os territórios em que residem, passam a integrar a pátria russa.

A circunstância da recolha de vontade se ter processado, nesses territórios até hoje ucranianos, debaixo de uma violenta ocupação militar, o facto de muitos outros cidadãos não-russos que aí viviam terem entretanto saído contra a sua vontade, não contando assim para o apuramento dos esmagadores resultados apresentados, parece não ter visto como afetando a legitimidade desse processo.

O dia de hoje é muito importante para o destino do Direito Internacional, sendo que ao dizer importante não lhe dou o significado de feliz.

António Guterres, ao pronunciar-se sobre a flagrante ilegalidade dos referendos e da sua sequência, com os processos de integração dos novos estados na Federação Russa, falou em nome de uma ordem internacional que tem a ONU no seu centro e que, ao longo de muitas décadas, tem sido o referente da gestão das relações entre os Estados, um pouco por todo o mundo.

Não podemos esquecer que outras potências relevantes, como é o caso dos Estados Unidos, várias vezes colocaram em causa a sua subordinação a esse modelo de gestão pactada do mundo. Aliás, a China continua a fazer o mesmo, com as suas iniciativas nos mares meridionais, dando mostras de ter uma leitura muito própria das regras internacionais.

Nunca, porém, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU assumiu, de forma tão flagrante, o seu afastamento deliberado do normativo internacional que vinha a reger a sociedade internacional, embora, cinicamente, tentando dar ares de a ele se subordinar, como a Rússia hoje fez.

Ao desafiar desta forma a ordem internacional, a Rússia abre caminho a que outros se possam sentir tentados a ir revanchistamente na mesma linha, criando talvez o momento mais perigoso que o mundo está a viver desde o fim do segundo conflito mundial.

Neste tempo de desvario acossado de Moscovo, o mundo democrático e, em especial, os Estados Unidos e a Europa, têm a estrita obrigação de manterem uma contenção de atitudes à altura das responsabilidades que têm na segurança global. Este não é o tempo para emoções, para gestos de gongorismo proclamatório, por muito que isso possa confortar o ar do tempo. É que é para firmeza, determinação e, em especial, nervos de aço.

segunda-feira, setembro 26, 2022

Extrema-direita


Fará 23 anos no próximo mês de janeiro, um partido de extrema-direita foi cooptado para uma coligação de centro-direita na Áustria. O líder do novo governo austríaco era uma figura respeitada da direita moderada, que tinha sido, por bastante tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros de Viena. A posição da extrema-direita no governo era a de um parceiro menor.

Nesse ano de 2000, a Europa política entrou em estado de choque. Ter a extrema-direita num governo dessa Europa dos 15 era impensável!

Jacques Chirac e outros líderes europeus, de direita e de esquerda, pressionaram António Guterres, então primeiro-ministro, para que a Presidência Portuguesa da União Europeia, em nome dos 14 restantes Estados membros, estabelecesse um “cordão sanitário” em torno no governo austríaco.

A nossa Presidência tentou compatibilizar a preservação do estatuto de Viena como membro pleno da União com algumas medidas de caráter bilateral, por parte dos restantes Estados membros, tendentes a sublinhar o isolamento em que o novo governo se colocava, ao ter a ousadia de integrar figuras daquela área política. Foram as célebres “sanções” à Áustria. O Tratado de Nice, então em discussão, passou a incluir medidas tendentes a “prevenir” semelhantes casos, o que o Tratado de Lisboa reforçou. Depois, com a chegada da Presidência francesa da União, o zelo de Paris esmoreceu.

E depois?

Depois, houve os alargamentos e, dentro destes, com o tempo, emergiram casos que acabaram por tornar o “caso austríaco” numa brincadeira de crianças.

Ontem, a terceira economia europeia, um dos países fundadores do processo de unidade europeia, passou a ter uma primeira-ministra de extrema-direita.

De Bruxelas, chegam uns gemidos políticos sem consequências. Como diria Bob Dylan, “ the times they are a-changin’ ”.

quarta-feira, agosto 31, 2022

Mikhaïl Gorbachev


Morreu ontem Mikhaïl Gorbachev, aos 91 anos. Foi o “notário” do fim da União Soviética, da sua implosão em 15 entidades nacionais diferentes, depois de ter sido secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e último presidente do país que fora criado pela Revolução de 1917. 

Como acontece com algumas figuras que são apanhadas na charneira da História, Gorbachev (ou Gorbachov, como é vulgar, entre nós, variar a grafia dos nomes russos) acabou por titular o encerramento de um período, ficando colado à abertura de outro, sem nele se firmar. 

Gorbachev repousa, irremediavelmente, nessa mesma História, como uma pessoa mal-amada no seu país. Mas, ao invés, passou a ser uma vedeta no mundo ocidental, por duas razões conjugadas. A primeira, por ter permitido a transição suave, sem violência, para esse mesmo espaço, das antigas “democracias populares” do Centro e Leste europeus, bem como a reunificação da Alemanha. O ocidente também nunca lhe negou uma imensa gratidão pelo facto da sua prática, como governante, ter culminado na dissolução da União Soviética, que era o seu maior adversário. Gorbachev assinou, na prática, a ata de derrota da URSS no fim da Guerra Fria. Verdade seja que, a não ser ele, outro o teria feito, no culminar do clamoroso falhanço do modelo.

Recordo ter lido algures que, nos ultimos anos, Gorbachev era uma figura que, na Rússia, merecia apenas 14% de apreciações positivas. Critico de Putin, como já o tinha sido de Yeltsin, Gorbachev, se acaso a sua voz tivesse sido ouvida, seria, com toda a certeza, um opositor da invasão da Ucrânia. Vai ter assim alguma graça observar como a Rússia oficial reagirá à sua morte.

Ainda antes de ter andado nas bocas do mundo, Gorbachev veio um dia a Portugal, a um congresso do PCP, creio que no Porto. Era então uma das figuras possíveis para sucessão de Chernenko. Recordo que nenhum dos nossos “kremlinólogos” o apontou como o homem seguinte. Mas, das fotografias que os jornais trouxeram, fixei-lhe a cara.

Um dia, já em Março de 2000, António Guterres convidou-me para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Estava também o ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas e, claro, o intérprete de Gorbachev.

Gorbachev estava em Lisboa creio que para uma conferência. Acabei por jantar de novo com ele, talvez no dia seguinte, dessa vez também com uma sua filha, no forte de S. Julião da Barra, a convite de Castro Caldas, com umas largas dezenas de convidados. Não guardo a menor memória de coisas ditas nesse jantar - e eu tenho boa memória.

Mas recordo o tal almoço, para o qual, confesso, entrei com uma elevada expetativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais, esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixava de ser uma personalidade interessante, mas, quando o avalio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao ler alguns textos seus, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique bem claro: Mikhaïl Gorbatchev é uma das figuras que ficará na história contemporânea, olhado contudo com mais ou menos apreço, consoante as geografias de onde essa sua imagem é observada.

segunda-feira, julho 11, 2022

Guterres


Assisti ao nascimento deste livro. Fico muito feliz por esta, bem merecida, edição internacional. Um abraço, Filipe e Pedro.

quinta-feira, junho 30, 2022

A carta da Líbia


Naquela segunda metade da década de 70, as relações entre Portugal e os países árabes iam de vento em popa. Os mercados árabes, diluídas que estavam as anteriores reticências políticas face a Portugal, no pós 25 de abril, mostravam-se um terreno promissor de negócios para os empresários portugueses.

Como jovem diplomata, eu era então secretário de um grupo de trabalho com o nome pomposo de CICEPMOM (Comissão Interministerial para a Cooperação Económica com os Países do Médio Oriente e do Magrebe), criado, em 1976, pelo ministro Melo Antunes, presidido pelo engenheiro José Torres Campos e integrado por uma meia dúzia de pessoas, entre as quais um engenheiro que dava pelo nome de António Guterres, ainda mais jovem do que eu. 

A Líbia era um desses novos horizontes de trabalho económico externo. O MNE tinha-me mandado lá por duas vezes.

Um dia, algures no segundo semestre de 1978, na velha "EAA" (repartição da África e Ásia da DG dos Negócios Económicos), onde trabalhava, fui chamado ao telefone ("ó doutor, é um inglês para si!", berrou, lá de dentro, uma das senhoras do "apoio"). 

Quem me falava, do aeroporto de Lisboa, não era “um inglês”, mas um diretor-geral do Ministério dos Municípios líbio, que eu havia conhecido, nas minhas viagens a Tripoli. O meu interlocutor disse-me que era portador de uma carta do titular do Ministério dos Municípios líbio para o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, que já era então José Medeiros Ferreira, que entretanto tinha substituído Melo Antunes. Trazia instruções para fazer entrega pessoal da missiva. Ambos se tinham conhecido numa visita a Lisboa, no ano anterior.

Contactado o gabinete do ministro, fiquei a saber que Medeiros Ferreira tinha partido, na véspera, para Nova Iorque, a fim de assistir à Assembleia Geral das Nações Unidas. E que - curiosamente! - iria encontrar-se naquela cidade, no dia seguinte, com o ministro líbio, mas dos Negócios Estrangeiros. Nestas condições, que significado poderia ter uma carta, enviada por intermédio de um correio personalizado, subscrita por um outro ministro líbio - aquele por quem passavam os principais contratos que as empresas portuguesas estavam prestes a assinar com as autoridades do país? Era urgente clarificar o assunto.

O chefe (interino) do gabinete do MNE, na ausência do Eduardo Paz Ferreira, era o meu colega Carlos Neves Ferreira. Cedeu-me um carro do gabinete para eu ir buscar o diretor-geral líbio ao aeroporto. Levei-o ao “terceiro andar” das Necessidades, onde o Carlos lhe explicou que o nosso ministro já estava em Nova Iorque. Mas prometeu que lhe daria conta, de imediato, da mensagem do ministro dos Municípios líbio. Embora um pouco desapontado por não ter levado a missão a termo de forma personalizada, como lhe fora indicado, o meu conhecido líbio entregou a carta, que vinha em envelope fechado. Acompanhei-o de volta ao aeroporto, de onde partiu para Madrid. Dei o assunto por encerrado, no que me respeitava.

Puro engano. Regressado às Necessidades, fui, de novo, chamado ao gabinete do ministro, onde me foi exposta uma dificuldade, que eu tinha de encontrar maneira de superar: a carta estava escrita em árabe! Era necessário traduzi-la - e com urgência. Eu que me desenvencilhasse, como pudesse.

Com a "criança nos braços", com Nova Iorque à espera de novidades, não sabia bem como proceder. Não conhecia, em Lisboa, nenhum falante de árabe em quem pudesse ter confiança! Tinha alguns conhecidos em embaixadas de países árabes, tinha mesmo uma boa relação com o chefe da comunidade muçulmana, Suleiman Valy Mamede, mas a Líbia era já, à época, um país fora do "mainstream" político do mundo árabe, pelo que não podia correr o risco de colocar em mãos adversas uma informação que, pela urgência e pela forma como nos fora transmitida, teria, seguramente, alguma importância e delicadeza.

Foi então que me lembrei que, nos meus tempos de universidade, tinha conhecido um especialista em língua e cultura árabe, o professor Dias Farinha. Descobri-o pela lista telefónica e fui visitá-lo a casa, numa das torres do Restelo. Expliquei-lhe o nosso embaraço oficial e o pedido de urgente ajuda que lhe formulávamos. A resposta foi menos direta do que eu pensava: a sua especialidade era o árabe clássico, pelo que precisava de algum tempo para, com apoio de dicionários, "trabalhar" o texto, embora ele não fosse demasiado extenso.

Ao final dessa tarde, regressei a casa de Dias Farinha. E foi então que constatei, pela tradução feita, que a carta era, nem mais nem menos, um montão de banalidades e lugares-comuns, de formulação de votos pelo prosseguimento das boas relações que eram mantidas entre os setores técnicos, nas áreas onde Portugal se preparava para atuar na Líbia, notas sobre a grande importância que Tripoli atribuía a um entendimento cada vez mais profundo com o nosso país, etc. Enfim, tudo "langue de bois". 

Eu estava siderado, e, claro, preocupado. Inquiri do professor Dias Farinha se, de facto, ele estava bem seguro de que a carta não era mais do que "aquilo", se não havia alguma mensagem subliminar ou se, afinal, eu podia assegurar ao meu ministro que o texto era, como se constatava, mera "conversa fiada". O especialista garantiu-me que sim.

Regressei às Necessidades, informou-se a nossa missão na ONU e, lá em Manhattan, o ministro português deve ter concluído, shakespeareanamente, sobre o alarme dos seus colaboradores em Lisboa: "much ado about nothing".

A historieta não acaba aqui. 

Em 2001, quando fui representar Portugal na ONU, ao cumprimentar o meu colega líbio, julguei nele reconhecer uma cara familiar: era o antigo ministro líbio dos Municípios, de seu nome Abuzaid Dorda. Nada mais nada menos que o subscritor da carta que tanto trabalho me havia dado. Tornámo-nos amigos. 

Dorda teve um futuro complicado: foi chefe da polícia secreta de Kaddafi, seria detido e severamente torturado depois da queda deste e passou oito anos preso. Morreu há semanas, no Cairo, li agora.

Por que é que me lembrei disto? Porque o meu interlocutor no gabinete do ministro, na historieta que aqui deixo, o meu colega Carlos Neves Ferreira, cumpre amanhã 80 primaveras e, com ele, no sunset de Sintra, tenciono beber à sua saúde uma champanhola das sérias. E lembrar os velhos tempos em que éramos um pouco mais novos.

quarta-feira, junho 15, 2022

Popularidade e demagogia


Um dia de 1997, em Lisboa, durante uma reunião do conselho de ministros, António Guterres deu conta da surpresa que tinha tido, numa sua recente visita à Polónia, ao constatar que todos os seus interlocutores locais estavam convencidos de que Portugal iria ser o país que mais dificuldades iria criar aos futuros alargamentos da União Europeia. E, voltando-se para o secretário de Estado dos Assuntos Europeus que eu então era, e que ali estava ocasionalmente por qualquer razão de agenda, alertou: “Espero que, em Bruxelas, os nossos funcionários clarifiquem bem a nossa posição”. Aquela perceção não era apenas polaca: muitos dos países do centro e do leste europeu estavam sinceramente convencidos que iriam encontrar em nós um grande obstáculo à sua pretensão de se juntarem à União.

A lógica dos interesses apontava, de facto, para que Portugal tivesse uma posição muito defensiva no tocante ao efeito, quer em matéria de fundos, quem em termos de vantagens competitivas, que a presença de um elevado número de novos parceiros iria implicar. Mas António Guterres via um pouco mais longe: o alargamento era um irrecusável objetivo estratégico da Europa “deste lado”, o qual, desde o final da Guerra Fria, entendia como imperativo conseguir dar resposta ao anseio de muitos Estados “do outro lado”, recém-libertos da tutela soviética, que pretendiam ancorar a sua liberdade e o seu desenvolvimento no quadro de um projeto que, durante décadas, lhes fora mostrado como paradigma de modelo exemplar de cooperação e de integração económica e, cada vez mais, de cidadania e de valores comuns, que os “critérios de Copenhague” haviam entretanto consensualizado.

O pragmatismo não é contraditório com a ética. Portugal não poderia recusar a outros aquilo que funcionara como reforço essencial do seu próprio projeto democrático e de prosperidade, para além de que a pressão para a inclusão dos novos Estados iria, com toda a evidência, tornar-se crescente. A política europeia de Portugal, com Guterres, tendo os interesses portugueses no seu centro, tinha como filosofia essencial a partilha sincera dos interesses europeus. No tocante ao alargamento, até ao termo do processo, o nosso comportamento iria ser exemplar - e os então candidatos são hoje, estou certo, as nossas melhores testemunhas.

Vem isto a propósito da Ucrânia. Na sequência da agressão russa, Portugal, em uníssono, manifestou uma reação de repúdio a esse inaceitável atentado à soberania de um Estado independente e com fronteiras reconhecidas, dando provas concretas de solidariedade e de empenhamento, em todas as instâncias e por todos os meios que pôde colocar à disposição, desde logo na oferta de grande apoio aos refugiados. Mas, igualmente, demonstrou-o na partilha plena das decisões no seio da NATO, da União Europeia ou nas Nações Unidas. Bem como na disponibilidade de meios materiais de diversa muito natureza. Sempre achei ridículo entrarmos no “campeonato” do grau de retórica adjetivada para denunciar a invasão e criticar Moscovo, mas, até aí, o governo português, ao que me lembro, não ficou mal “classificado”.

Surgiu, entretanto, a questão de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia. Relevando de um lamentável desconhecimento da realidade, logo apareceram, em algumas capitais europeias, os defensores de um “fast-track”, de uma espécie de “via verde”, que permitisse que Kiev, saltando etapas, passasse, a breve prazo, a membro pleno da União. Entre nós, no comentário impressionista, emergiram também, por mimetismo, os promotores zelosos da ideia. Estar com o “l’air du temps” faz parte de um certo estilo de “informação”.

António Costa, desde o primeiro momento, teve a coragem de “deitar água na fervura” neste voluntarismo insensato, não se intimidando em dizer a verdade. Disse-a mesmo em Kiev, em face do presidente ucraniano, para óbvio desgosto deste. Ora um processo de adesão desta natureza não é equivalente à emissão de uma cartão de sócio de um clube, em que os membros decidem dispensar de jóia e de alguns requisitos um novo candidato que se considera desejável que possa partilhar, com rapidez, o nosso convívio. Ser parte da União Europeia é ter não apenas a vontade, mas também as plenas condições, para poder cumprir com o cada vez mais exigente acervo legislativo, até para proteção do país candidato face à feroz competição que a exposição ao mercado interno comunitário implicará.

Além disso, que já não é pouco, alguma experiência mais recente, com as derivas negativas de alguns Estados, prova que é imperativo reforçar as exigências no tocante à observância estrita das regras democráticas e do pluripartidarismo, da separação de poderes e do respeito pela independência da justiça, das regras gerais do Estado de direito, da proteção da comunicação social independente e do respeito pelos direitos das minorias. Alguém que surja a afirmar que a Ucrânia, mesmo antes de ter entrado no atual estado de guerra, cumpria um mínimo destes critérios, não pode ser levado a sério. Vou dizer isto, medindo bem as palavras: a Ucrânia está ainda muito longe de poder vir a ser um membro da União Europeia e, mais do que isso, não é ainda claro que tenha condições para o poder vir a ser algum dia. É impopular dizer isto? Talvez, mas eu digo. E é preciso que isto seja dito.

Mas não tem a Ucrânia o direito de entrar num caminho de aproximação às instituições comunitárias? Claro que sim e tem, exatamente por isso, o direito de apresentar o seu caso e de vê-lo devidamente apreciado. E, por essa razão, por simpatia com esse seu legítimo desejo, devem ser dados todos os passos que sejam possíveis nesse sentido. Mas sem quaisquer pressas, que possam ser lidas como podendo estar a “queimar etapas”, porque o ambiente emocional, que o horror da guerra nos possa e deva motivar, não nos deve fazer esquecer que há outros Estados que, desde há vários anos, com grandes esforços de adaptação interna das suas estruturas, iniciaram um caminho de aproximação às instituições comunitárias que está muito mais adiantado, o que pode e deve justificar a sua entrada mais rápida.

Imagino que por essa razão, na declaração que hoje fez ao “Financial Times”, António Costa deixou o que pode ser lido uma crítica implícita à atitude da presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, que tem vindo a dar mostras de procurar um protagonismo institucional que, lamento ter de dizê-lo, não está a respeitar o equilíbrio dos tratados europeus. Tal como, aliás, acontece com a sua colega presidente do Parlamento europeu, a presidente da Comissão parece deliberadamente querer esquecer que quem decide sobre as adesões à União é o Conselho de Ministros e os parlamentos nacionais da totalidade dos atuais Estados membros. A Comissão faz as suas avaliações e análises, mas são os chefes de Estado e de governo quem tem a última palavra. Ao proceder como procede, ao “pôr o carro à frente dos bois”, a Van der Leyen deve ser dito que deve ter consciência de que está a acicatar a potencial conflitualidade entre os Estados mais vocais e entusiastas, por razões de proximidade estratégica, com as ambições maximalistas de Kiev, e outros, nos quais Portugal se insere, que têm uma leitura mais serena e equilibrada do problema, sem que, nem por isso, se considerem menos empenhados na defesa do caso ucraniano. Até por uma razão simples, embora quiçá menos popular: defender o interesse da Ucrânia é, também, dizer-lhe a verdade.

Mas António Costa disse mais. Deixou implícito, como já antes o tinha feito, o interesse em se estudar, como Emmanuel Macron havia sugerido e o bom senso parece recomendar, a instituição futura de um espaço institucional intermédio, entre o estatuto de Estado terceiro e o de membro de pleno direito, por forma a criar um tempo de aculturação e de transição que, precisamente, possa aferir, à medida dos progressos alcançados, da possibilidade de de Estado candidato vir a obter uma integração plena, antes da conclusão da negociação dos 35 exigentes capítulos temáticos para uma adesão plena. E o primeiro-ministro português disse, além disso, algo também da maior sensatez, o facto de ser importante que a União Europeia se concentre, por ora e essencialmente, naquele que é um desiderato comum, sem a menor sombra de dúvida, sem incorrer em riscos de divisão, entre todos os parceiros comunitários: promover uma forte e empenhada ação de ajuda económica à reconstrução do país, à reforma das suas infra-estruturas, afetadas pela guerra. Essa, além da paz, que não é chamada para aqui, é a prioridade.

Volto ao ponto por onde comecei. Portugal, ao longo da sua história de presença na vida política da construção europeia, sempre revelou o maior interesse em ver as fronteiras da Europa comunitária abertas a todos os Estados que, exclusivamente à luz dos seus próprios méritos, revelem condições para poderem constituir como um valor acrescentado à expansão do projeto de liberdade, paz e desenvolvimento que subscrevemos, em boa hora, fez precisamente ontem 37 anos.

Não fazemos nenhum favor a ninguém ao proceder assim. Estamos apenas a atuar como um país que, ao longo do seu tempo democrático e com escassos sobressaltos nos vários ciclos políticos, tem do seu papel no mundo uma perspetiva solidária, o que já é uma marca e um orgulho da sua política externa. E que, nesse domínio, não recebe lições de ninguém. Nem lições, nem pressões.

terça-feira, maio 17, 2022

Azovstal

Daqui a umas semanas, ninguém mais falará em Azovstal. Os militares radicais ucranianos que lá estavam, agora prisioneiros da Rússia, devem a sua vida à atenção internacional criada em torno de Mariupol. Guterres teve algum papel nisso.

quarta-feira, maio 11, 2022

Ucrânia - é imperioso sair da caixa


Esta guerra já não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. É cada vez maior o envolvimento, através de ajuda militar e de sanções, de muitos países que passaram a ser parte, embora por ora não beligerante, no conflito. Em moldes todavia nunca comparáveis ao sofrimento da população da Ucrânia, as respetivas sociedades estão a começar a sentir as consequências do prolongamento da guerra.

Parece não ter sentido que os países envolvidos no apoio à Ucrânia fiquem a aguardar o resultado, cada vez mais duvidoso, de um processo negocial, aparentemente suspenso, entre Kiev e Moscovo. Há dimensões do conflito, como fica evidente na questão das armas nucleares, que vão muito para além da situação concreta da Ucrânia, embora com ela interligada.

António Guterres disse hoje que não parece haver condições para um cessar-fogo bilateral. Porquê? Porque entende que a Rússia pretende estabilizar alguns dos seus ganhos e não completou o cerco de isolamento que pretende fazer à Ucrânia pelo sul. E também porque o secretário-geral da ONU pressente que a Ucrânia, forte do apoio militar crescente com que conta reverter a sorte do conflito, avalia que as próximas semanas lhe podem trazer vantagens. Um dos dois contendores está enganado na sorte que o relógio lhe pode trazer, mas só no final se saberá qual.

É imperioso sair do impasse da situação no terreno. Os países ocidentais, mantendo-se sempre firmes no apoio que dão à Ucrânia - essa é, alías, a expressão essencial do seu poder neste contexto - deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo. Um conflito que pode escalar para proporções (in)imagináveis não pode ficar dependente exclusivamente dos eventuais resultados de uma diplomacia ucraniana acossada pela agressão e pela expectativa ansiosa da evolução da situação militar no seu terreno.

O envolvimento negocial ocidental deveria, como é óbvio, associar plenamente a Ucrânia e ter no centro os seus legítimos interesses de soberania, mas igualmente não poderia deixar de ponderar as consequências económicas, e em breve também sócio-políticas, decorrentes do efeito “boomerang” das sanções e dos previsíveis problemas decorrentes da situação dos muitos refugiados que não poderão ainda regressar à sua terra . Há que ter consciência, e aparentemente ela parece não existir, de que o momento ótimo de consenso entre os aliados vai começar a diluir-se, por virtude dos efeitos do inevitável desgaste de vontade, em vários paises europeus.

O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força. Ora o ocidente tem hoje, nas suas mãos, dois instrumentos negociais que podem ser decisivos para qualquer compromisso: a sua capacidade e determinação em poder continuar a armar a Ucrânia, colocando-a em condições de ir “empatando” a guerra, e o fortíssimo pacote de sanções, que, recordo, foi posto em prática por virtude da agressão russa, pelo que parte do qual pode ser usado como moeda de troca na hipótese de um eventual compromisso.

Macron mantém o número de telefone de Moscovo. Draghi deu sinais, em Washington, de que favorece um caminho de um diálogo exigente, sempre sob uma posição comum. Berlim, nesta sua fase hesitante, conta bastante pouco para ousadias. O jingoísmo descabelado de Boris Johnson ecoará o que Washington ditar. É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra.

A História mostra que, para pôr termo a um conflito, ou se derrota totalmente o inimigo (e a Rússia não é derrotável, enquanto potência, como sabe quem sabe destas coisas) ou se fala com ele para ir aferindo das hipóteses de um acordo. Pensar que o tempo corre sempre a nosso favor é uma ingenuidade perigosa.

quinta-feira, maio 05, 2022

Guterres

Os que foram tão críticos, apontando a “irrelevância” da deslocação de Guterres a Moscovo e Kiev, já fizeram a sua “mea culpa”, ao terem de constatar que a ação da ONU, articulada com a Cruz Vermelha, por iniciativa do secretário-geral da ONU, está a salvar a vida a muita gente?

terça-feira, maio 03, 2022

Isabel Mota

Há precisamente cinco anos, no dia 3 de maio de 2017, escrevi isto por aqui:

“Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian.”

Isabel Mota abandona hoje a presidência da Gulbenkian. Foi um período muito exigente - quem sabe do que falo sabe por que o digo - na vida da instituição, com decisões complexas, que se traduziram em importantes mudanças para o futuro da fundação. Foi com imensa coragem e determinação que Isabel Mota conduziu a equipa que enfrentou esse tempo, levando a sua missão a muito bom porto. Deixo-lhe aqui a minha admiração pelo trabalho executado e o meu muito obrigado pela simpatia com que, na minha modesta contribuição para a Gulbenkian, sempre pude contar da sua parte.

A partir de hoje, a Fundação Calouste Gulbenkian passa a ser chefiada por António Feijó, que já fazia parte da administração presidida por Isabel Mota. Trabalhámos juntos, durante três anos, no Conselho Geral Independente da RTP. É uma sólida garantia de que a Gulbenkian, que é um dos ativos culturais mais importantes do país, fica em excelentes mãos.

domingo, maio 01, 2022

Schröder e Portugal


Gerhard Schröder é, nos dias que correm, uma das figuras mais controversas da Alemanha. Administrador da Nord Stream AG, da Rosneft e da Gazprom, é visto como um “homem de Putin”, o que, no atual contexto, é, porventura, a “recomendação” menos recomendável.

Schröder foi líder dos social-democratas alemães e primeiro-ministro entre 1998 e 2005, numa coligação entre o SPD e os Verdes, então dirigidos por Joschka Fischer, que derrotou a CDU de Helmuth Köhl.

Na memória económica europeia mais liberal, Schröder é creditado como tendo sido responsável pela introdução de importantes reformas, que, para muitos, terão contribuído para um ciclo de prosperidade económica do seu país. Para a esquerda dos social-democratas alemães, porém, o tempo de Schröder é visto como o de uma forte descaraterização ideológica do SPD, um pouco ao jeito daquilo que Tony Blair fez com o “Labour” britânico.

As eleições legislativas de setembro de 1998 deram a maioria absoluta à coligação SPD-Verdes. O novo governo tomou posse em outubro e Schröder, como novo primeiro-ministro, veio a Lisboa, logo no início de novembro, visitar o seu homólogo, António Guterres, num périplo por todos os parceiros.

O principal dossiê europeu de Portugal era, à época, a negociação da programação financeira plurianual da União, a chamada “Agenda 2000”, que deveria passar a vigorar entre 2000 e 2006.

Desde há meses que me competia andar num incessante “shuttle” pelos vários Estados europeus, tentando “vender” a nossa perspetiva sobre a repartição de fundos. Como a Alemanha iria ter a presidência da União no primeiro-semestre de 1999, competindo-lhe então fechar a “Agenda 2000”, ela era, naturalmente, um dos nossos principais interlocutores.

Uma semana antes de Schröder visitar Guterres, eu tinha estado em Bona (é apenas no primeiro semestre de 1999 que a capital alemã se muda definitivamente para Berlim), chefiando uma delegação técnica. Os temas agro-alimentares eram então uma nossa importante prioridade. Já esqueci o que então “sabia” de trigo duro e de quotas de leite…

Schröder jantou com Guterres em S. Bento. Conheciam-se menos bem. Só trazia pessoas do seu gabinete, nenhum ministro ou vice-ministro.

Guterres, ao lado de quem eu estava sentado no jantar, disse-lhe ter sido informado por mim de que havia muito boas perspetivas de as pretensões portuguesas, no quadro das negociações da “Agenda 2000”, estarem a ser bem acolhidas pelo novo governo alemão. Os contactos que eu tinha tido em Bona iam nesse sentido.

Vimos Schröder ficar com um fácies fechado e, voltando-se para mim, inquirou:

- Falou com quem, em Bona?

Disse-lhe que tinha reunido no ministério dos Negócios Estrangeiros, com uma delegação de vários departamentos alemães. 

- E quem é que chefiava a delegação alemã?

A cena estava a ser algo surrealista! Expliquei que tinha sido o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Hans Von Ploetz.

Schröder voltou-se então para a sua delegação e, em alemão, em voz alta, pergunta: “Quem é esse Von Ploetz?”. De um extremo do seu lado da mesa saltou alguém para explicar, já em voz um pouco mais baixa, ao recém-empossado chanceler, que se tratava de um dos seus dois vice-ministros dos Negócios Estrangeiros, um diplomata de carreira. 

Guterres olhou-me com um discreto sorriso. Eu também estava divertido, mas mantinha-me impassível, a observar a cena.

O chanceler olhou para mim, através da mesa, e disse: “Quando é que pode voltar a Bonn? Este assunto tem de ser visto na chancelaria federal, não no AA” (abreviatura de Auswärtiges Amt, nome do MNE alemão).

(Note-se que a diplomacia alemã era dirigida pelo líder do seu parceiro de coligação, os Verdes, Joschka Fischer. Schröder tinha colocado “ao lado” de Fischer, como outro vice-ministro, um seu homem de confiança, Günter Verheugen. Semanas depois de entrar em funções, Verheugen, que eu conhecia de outras circunstâncias, tinha-me confidenciado que as suas relações com Fischer não eram as melhores. Dois anos mais tarde, Schröder nomeá-lo-ia comissário europeu.)

Olhei de viés para Guterres, que continuava a sorrir beatificamente, e respondi a Schröder, arriscando uma graça: “Até posso ir hoje à noite no seu avião, se tiver lugar para mim…”

Schröder deu uma risada e disse: “Não! Não é preciso! Marque depois uma data com o meu conselheiro europeu”, apontando para um tipo gordo e pesado, que viria a ser uma das “chaves” do nosso (por todos reconhecido) sucesso no compromisso final em Berlim, em março de 1999. Infelizmente, não me recordo agora do seu nome.

Dias depois, lá fui de novo a Bona. Com o meu novo interlocutor, fizemos uma revisão criteriosa de tudo o que havia sido acordado na reunião anterior. Ele disse-me que Schröder lhe havia recomendado que devia “ser tão simpático quanto possível, para tentar resolver o ‘problema português’ “. E foi-o.

No caminho de carro entre a chancelaria federal e a nossa embaixada, onde eu iria depois ter de explicar a um grupo de jornalistas portugueses a razão de duas idas a Bona em tão curto prazo, o meu telemóvel tocou. Era Von Ploetz: “Já sei que estiveste na chancelaria. Houve alguma novidade?”

Disse-lhe que não, mas percebi que ele estava “no escuro”. Naturalmente, evitei dizer-lhe que Schröder, em Lisboa, não sabia bem quem ele era. Para seu percetível contentamento, disse-lhe que ficara com a sensação de que o gabinete do primeiro-ministro me havia confirmado, no essencial, aquilo que, dias antes, ele combinara comigo.

Devo dizer que, nesse momento, senti uma satisfação interior: afinal, os alemães, com toda a sua fama de eficácia, ainda eram mais descoordenados do que nós.

Anos mais tarde, vim a cruzar Hans Von Ploetz, que entretanto fez uma bela carreira como diplomata, julgo que numa conferência em Baku, no Azerbaijão. Não resisti a relembrar-lhe esse episódio, de que ele se lembrava.

Schröder acaba de sofrer, há horas, pela boca do novo ministro alemão das Finanças, a ameaça de lhe cortarem os privilégios que ainda terá como antigo chanceler, tal a fúria oficial que está a cair sobre a sua cabeça, em especial depois de uma entrevista, um tanto arrogante, que deu ao “The New York Times”. Fala-se também de poder ser expulso do SPD.

Para o que aqui me importa, apenas recordo que Schröder se portou impecavelmente com Portugal, durante todo o tempo que pude testemunhar - da “Agenda 2000” às negociações institucionais europeias. O resto é lá com os alemães.

sábado, abril 02, 2022

Lata 1

No “Expresso da Meia Noite”, assistiu-se a um espetáculo extraordinário: o assessor (português) de Viktor Orbán, que se distinguiu a promover a candidata búlgara contra António Guterres, na defesa “patriótica” da ida de António Costa para a Europa. E ninguém lhe lembrou o passado!

quinta-feira, janeiro 20, 2022

David Davis


Ontem, na Câmara dos Comuns, o deputado conservador britânico David Davis lançou uma espécie de “bomba atómica” política, ao apelar, da bancada “tory”, a que o primeiro-ministro Boris Johnson saia de Downing Street.

Davis é um “maverick” da política britânica, uma figura que nunca receia a polémica. Foi o primeiro responsável ministerial para o Brexit, pasta em que ficou famoso por parecer olhar com alguma distância os dossiês técnicos e insistir em proclamações políticas incendiárias. Demitiu-se depois, com estrondo, do governo de Theresa May. Esteve então muito próximo de Boris Johnson, de quem vinha a dar sinais de afastamento nas últimas semanas e que agora parece pretender minar no seio do partido.

Conheço pessoalmente David Davis há mais de 25 anos. No final de 1995, acabado de entrar para o governo de António Guterres como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, fui por ele convidado a ir a Londres. Era então o meu contraparte no governo britânico, como vice-ministro para a Europa. Era uma figura agradável, galhofeira, com a piada cáustica britânica, que dava ares de não se levar excessivamente a sério, o que é sinal de inteligência. É visceralmente anti-europeísta e, por mais de uma vez, deu sinais de ter ambições primo-ministeriais. 

Tinha-o conhecido bem, ao longo desse ano, em várias reuniões do “grupo de reflexão”, organizado no seio da União Europeia, para rever o Tratado de Maastricht. Portugal era representado nesse grupo pelo professor André Gonçalves Pereira, de quem eu era o “número dois”, ao tempo em que tinha o cargo de subdiretor-geral dos Assuntos Europeus.

O convite de Davis ocorreu por ocasião da primeira reunião em Bruxelas a que fui na minha nova função. Durante o almoço com os restantes colegas, Davis disse, a rir: “Um destes dias, os meus funcionários começam a ter ideias de me substituir”. Era uma referência ao facto de me ter conhecido, durante meses, como diplomata e, de um momento para o outro, ver-me no governo. Mas também era apenas uma graça: no Reino Unido, só pode ser membro de governos quem tem um assento parlamentar. Nenhum funcionário do Foreign Office, salvo de abandonar a profissão e conseguir ser eleito, pode aspirar a entrar para um governo. Com uma exceção: se for aristocrata e, por essa via, ter lugar na Câmara dos Lordes.

Na visita que fiz a Londres, Davis recebeu-me com grande simpatia, tendo mesmo feito uma entrevista conjunta comigo na BBC.

O novo governo britânico parecia inquieto quanto ao “novo” Portugal. Tentava perceber se o recém-empossado governo português, chefiado por António Guterres, ia introduzir alguma clivagem, em matéria de política europeia, face à linha seguida pelo anterior executivo, de Cavaco Silva. Alguma coisa devia ter “transpirado” de Lisboa que levava essa perplexidade. Imaginei que fosse a postura muito pró-europeísta de Guterres que estivesse a preocupar os britânicos, que cada vez se viam mais isolados no debate europeu.

Quando, depois de um almoço que me ofereceu no Foreign Office, eu disse a Davis que ia ter um encontro na nossa embaixada com um representante do Partido Trabalhista, vi-o reagir, perplexo: “Vais-te encontrar com os meus adversários?” Eu esclareci: “Quando os vossos ministros forem a Lisboa, asseguro-te que acharemos normal que eles se encontrem com figuras do PSD ou do CSD”. E rimo-nos.

De facto, a preocupação britânica tinha algum fundamento: é possível datar o início dos governos de António Guterres como o ponto de viragem para um crescente afastamento entre Portugal e o Reino Unido, no âmbito da Europa. Embora, depois de 1997, com o governo trabalhista de Tony Blair, tivesse havido alguma aproximação entre os primeiros ministros português e britânico, no terreno de Bruxelas, que me competia gerir, as dissonâncias foram sempre muito grandes, salvo nas questões de Defesa e Segurança e na atitude face à importância de manter o laço transatlântico. Nunca mais se atenuaram, julgo saber.

Veremos agora se Davis, com a sua ousada provocação a Boris Johnson, consegue o mesmo efeito que a célebre intervenção de Geoffrey Howe acabou por ter na queda de Margareth Thatcher, em 1990. Comparando o nível das personalidades envolvidas neste teatro de poder, pode talvez concluir-se que, três décadas depois, os atores têm uma grandeza bem diferente.

segunda-feira, novembro 29, 2021

Tempos de Guterres

 

O livro “O Mundo não tem de ser assim”, a biografia de António Guterres escrita por Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, editada pela Casa das Letras, serviu de pretexto a uma agradável conversa, ao final da tarde do passado sábado, na Livraria Ler, em Campo de Ourique.

Vale a pena revelar que, há já uns anos, numa data que não posso precisar, o meu colega embaixador João Lima Pimentel e eu próprio tivémos um longo jantar com aqueles que viriam a ser os autores do livro e que, à época, esboçavam ainda essa obra. O Filipe Domingues, que eu já conhecia, tinha-me contactado e eu apresentei-os nessa noite ao João Lima Pimentel. O repasto e a sua sequência acabou, recordo-me, quase às quatro da manhã…

Lima Pimentel é um amigo antigo de António Guterres e foi o seu primeiro assessor diplomático. Eu apenas conheci Guterres pessoalmente em 1994, tendo trabalhado com ele durante mais de cinco anos, a partir do ano seguinte. 

Naquela anterior conversa, ambos havíamos dito aos putativos biógrafos o que cada um de nós entendia poder ser dito, para os ajudar a gizar o “retrato” do atual e já então Secretário-Geral da ONU. João Lima Pimentel voltou, depois disso, a falar com os autores, devidamente autorizado por Guterres. Eu, que aliás não tinha muito mais a dizer, remeti-os, sobre o assunto, para algumas coisas que, ao longo dos anos, escrevi no meu blogue sobre o tempo de governo e outras ocasiões.

O livro, que já aqui recomendei, é um excelente repositório de dados e episódios que nos permitem conhecer melhor António Guterres, até ao dia em que ele chegou ao mais alto posto na ONU. No sábado passado, os autores quiseram ir ainda um pouco mais longe na conversa, desta vez com testemunhas, em torno de alguns episódios da vida de Guterres. 

Falou-se então um pouco de tudo, desde o seu trabalho para desalojar o “cavaquismo” até aos tempos de governo, muito em especial o seu percurso europeu. Mas também do seu catolicismo, da entrada para o PS, das suas relações com outras linhas políticas do Portugal democrático saído de Abril. Eu relatei um episódio de que fui testemunha presencial na Sedes, em inícios de 1973, envolvendo Francisco Sá Carneiro, António Guterres e… Marcelo Rebelo de Sousa.

E também se falou da ONU, das dificuldades e limites imperativos de atuação de um Secretário-Geral. E falou-se do “caso austríaco” como a primeira grande confrontação com a extrema-direita europeia, da resistência de Guterres aos convites para aceitar ser presidente da Comissão Europeia e de várias outras histórias mais. 

Tenho a imodéstia de pensar que as pessoas que tiveram a amabilidade de assistir ao “interrogatório” que Pedro Latoeiro e Filipe Domingues nos fizeram não deram o seu tempo por mal empregado.

Contudo, histórias há, desses tempos, que não podem ser contadas, algumas das quais talvez ajudassem a explicar coisas da nossa vida política que ficaram pouco claras. Mas há limites para a transparência: quem, como o João Lima Pimentel e eu próprio, assistiu a certos episódios apenas porque a nossa presença e intervenção, como colaboradores próximos, pressupunha total confiança na nossa discrição, passa a ter um dever permanente de lealdade perante quem nos concedeu esse privilégio. Nenhum de nós ultrapassará nunca essa barreira. 

(Ilustro este texto com uma fotografia no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, em janeiro de 2000)

sábado, novembro 27, 2021

Tenham um bom sábado…


… e, se tiverem interesse, apareçam às 17 horas, na Livraria Ler, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, onde vou discutir, com João Lima Pimentel e os autores de “O Mundo não tem de ser assim”, Guterres e o “guterrismo”.

quinta-feira, junho 24, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, António Freitas de Sousa e eu falamos da renovação do mandato de Guterres, dos cinco anos que decorreram desde o referendo que deu lugar ao Brexit e do encontro em Putin e Biden, em Genebra.

Pode ver aqui

A posição de Portugal

Vamos falar das coisas a sério, sem demagogias?

A Europa está indignada com o facto da Hungria ter aprovado legislação interna discriminatória, em matéria de orientação sexual. A Hungria de Orbán, com um desplante que só a garantia da impunidade permite, faz, há muitos anos, o que muito bem lhe apetece e, uma vez mais, demonstra que os mecanismos comunitários continuam a ser impotentes para travar uma deriva autoritária que coloca em causa as regras a que o seu país se comprometeu aquando aderiu à União. Veremos o que irá suceder neste caso, para além da retórica.

Não nos esqueçamos do comportamento indigno do Partido Popular Europeu ( PPE) - cujos partidos membros portugueses não me ocorrem agora - que, durante anos, pôs “paninhos quentes” nas atitudes atribiliárias de Orbán, que a ele pertenceu com a bênção permanente de quem põe e dispõe no grupo, a CDU de Merkel. Órbán, até por lá tem, em Budapeste, como assessor, um antigo secretário-geral do PPE, aliás um cidadão português que por cá ocupou funções num governo que também optei por esquecer. Foi curiosamente essa mesma pessoa que, a solicitação húngara, dirigiu a campanha da búlgara Kristalina Giorgieva, contra a candidatura de António Guterres a SG da ONU, em 2016. Também não consigo recordar o nome da personagem. Hoje, a minha memória está terrível…

Um grupo de países da União subscreveu, entretanto, uma declaração em que condena a atitude d Hungria.

Portugal, presidência em exercício da União até ao final do mês, declarou que estava em perfeito acordo com o teor dessa declaração - e esse é o aspeto político mais importante a ter em conta - mas que a não subscrevia, porquanto, enquanto presidência, teria de manter uma posição de “honest broker”, dado que mais de metade dos Estados membros também não surgiram a subscrever o texto.

Repare-se que não é claro se os Estados que não subscreveram a declaração se colocam ao lado da Hungria (o que é altamente improvável, para a esmagadora maioria) ou se consideram a forma ou a oportunidade do texto menos consentânea com a maneira como entendem que o tema deve ser tratado (o que é a hipótese mais provável). E isto tem de ser ponderado.

Achei perfeitamente adequada a atitude tomada pelo governo português.

Uma declaração desta natureza não é um documento com qualquer estatuto no ordenamento jurídico da União. É uma opinião, uma afirmação de posição, aliás muito equilibrada e correta. Estou seguro que o governo português, não tem a menor objeção ao texto, como já o afirmou. Mas posso perfeitamente perceber que, enquanto presidência, não se queira associar (mas apoie politicamente, o que, repito, é o mais importante) a um documento que divide a União ao meio. Repito, trata-se de uma tomada de posição de alguns Estados. Não subscrevê-la não tem o caráter de uma “abstenção” perante uma proposta de decisão em Conselho. Aí, seria imperdoável se Portugal não tomasse posição. E tenho a certeza que, se se chegar a esse ponto, a tomará sem hesitações.

Contrariamente ao que aconteceu em 2000, quando a presidência portuguesa titulou, em nome dos “catorze” (todos os Estados membros, menos a Áustria), uma condenação à entrada de um partido de extrema-direita no governo austríaco), desta vez não houve “vinte e seis” (todos menos a Hungria) a reagir. Nessa altura, era a unanimidade menos o visado. Hoje é muito diferente. Em 2000, eu estava no centro desse “furacão” e fui eu quem foi ao Parlamento Europeu defender a posição dos “catorze”.

Esta polémica interna sobre a atitude do governo português morrerá amanhã. Seria muito mais cómodo para mim deixar passar este assunto em silêncio. Mas não deixo. Porque Lisboa teve razão na forma como procedeu. E eu não me importo rigorosamente nada de, quando acho que uma posição está correta, embora me possa pôr contra a indignação adjetivada e demagógica de uma maioria ruidosa nas redes sociais, de dizer o que penso. E o que penso é isto.

E agora, quem quiser, faça favor: “fogo à peça”.

sábado, junho 19, 2021

Nós e o Cohen

Portugal tentou cantar Leonard Cohen. Ontem, Guterres ganhou na ONU. Hoje, queríamos ganhar à Alemanha. Lembram-se? “First we take Manhattan, then we take Berlin”. Era demasiado bom.

Guterres

Há cinco anos, quando António Guterres tomou posse do cargo de secretário-geral da ONU, senti um imenso orgulho pela circunstância de alguém com quem tinha trabalhado de perto, cujas excecionais qualidades havia tido o ensejo de apreciar e admirar, ter ascendido à mais relevante posição no quadro multilateral mundial.

Fui um entusiasta dessa candidatura, por três básicas razões. 

A primeira é que acho que, salvo alguns momentos menos felizes, o Portugal democrático, nos seus diversos ciclos políticos, tem sabido ser fiel aos grandes princípios e valores que fazem parte do acervo civilizacional coletivo dos mundos a que o país decidiu pertencer, que a diplomacia permitida pela Revolução de Abril ajudou a construir. A chegada de um cidadão português àquele lugar de topo no sistema de regulação internacional, por evidente mérito e não por combinas de lóbis e jogos de poder, representava uma prestigiante consagração para Portugal e para a sua diplomacia.

A segunda razão tinha a ver com o próprio António Guterres. A política é uma atividade dura e, muitas vezes, injusta para os seus atores. Fiz parte, com grande orgulho, dos dois governos chefiados por António Guterres. No termo desse ciclo, dei-me conta de que a retribuição, no imaginário nacional, face ao esforço feito por António Guterres para contribuir para uma transformação serena e não confrontacional do país, havia sido escassa. Guterres provou depois, no excecional trabalho feito na área dos refugiados, a consistência de um pensamento solidário e de um elevado sentido de responsabilidade moral. A sua escolha, transparente e indiscutível, para as Nações Unidas, foi um corolário de justiça.

Finalmente, conhecendo um pouco das Nações Unidas, por lá ter trabalhado e por acompanhar com alguma atenção a sua evolução, mas igualmente por ser um “militante” do multilateralismo, achei que uma figura como António Guterres representava, à perfeição, aquilo de que a organização necessitava, em especial no tocante à sua adaptação às agendas de modernidade - menos retóricas e mais práticas - que lhe permitissem ganhar legitimidade e espaço de mobilização no seio das opiniões públicas.

A estas três razões positivas, somava-se uma preocupação: o risco de que uma evolução negativa dentro do país-chave para os sucessos ou insucessos da ONU, os Estados Unidos, pudesse vir fazer correr à organização estaria melhor protegido com alguém que lhe soubesse preservar os princípios e servisse de escudo ético a qualquer instrumentalização ou desvirtuamento. Isso aconteceu, com Trump. Guterres acabou por ser o líder da “resistência”.

Agora, o sentido aclamatório que acolheu a reeleição de Guterres prova o acerto da anterior decisão. Os sinais que chegam de Washington a Nova Iorque são positivos, embora a experiência nos deva tornar prudentes quanto a um excessivo otimismo. Se Biden vier a ser o que parece ser, com Guterres na chefia da ONU, não obstante um tempo turbulento que se aguarda no cenário confrontacional global, o mundo fica muito mais seguro.

quinta-feira, abril 29, 2021

“O Mundo não tem de ser assim”


Ela aí está, com o belo título de “O Mundo não tem de ser assim”, uma biografia muito completa de António Guterres.

Um dia, já há uns bons anos, um dos autores, Filipe Domingues, disse-me ter tido a ideia, com um amigo, de fazerem uma obra sobre a vida do secretário-geral da ONU e antigo primeiro-ministro. Na altura, lembro-me de lhe ter comentado que o único trabalho sobre Guterres que existia, além de datado, ficava muito aquém do que era devido ao cidadão português que mais longe fora no mundo internacional, pelo que uma boa biografia de Guterres claramente que se impunha. E que, antes que alguém, lá por fora, avançasse com isso, era muito bom que se colocassem em movimento.

Para tal, disse-lhes, era vital que eles conhecessem o embaixador João Lima Pimentel, um grande amigo de juventude e que também havia sido colaborador próximo de António Guterres, o qual tinha uma imensidão de histórias sobre o amigo e que, além disso, poderia ser a chave para muitas portas se abrirem, a principal das quais era o próprio potencial biografado, o qual, à época, estaria ainda longe do projeto.

Com os autores, o João Lima Pimentel e eu tivemos uma longa conversa, durante um simpático jantar onde eu conheci aquele que seria o outro autor, Pedro Latoeiro, e em que ambos conheceram João Lima Pimentel. Esse foi, ao que recordo, o meu único contacto com os autores da obra, durante toda a sua feitura. Às vezes, ao longo dos anos que se passaram entretanto, perguntava ao Filipe Domingues como iam as coisas, que sempre teriam de demorar o tempo que este tipo de obras sempre leva.

Fico muito satisfeito por ver agora surgir o fruto daquele que deve ter sido um intensíssimo trabalho. Porque a vida não dá para tudo quando queremos, ainda só tive tempo de passar os olhos por alguns capítulos daquelas quase 700 páginas, densas de um tempo de Guterres que acompanhei, grande parte dele à distância mas, desde cedo, com atenção. Numa outra parte, relativamente curta, com alguma proximidade. Agora, mesmo sem ter lido o livro todo, não quero deixar de saudar um empreendimento que sei ter sido feito com grande rigor e entusiasmo. Como António Guterres merecia, aliás.

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...