Há pouco, numa troca de mensagens, lembrei-me de Mário Castrim. Castrim foi casado com a escritora Alice Vieira e morreu há 14 anos. Foi ele próprio escritor e jornalista. Autor de excelentes obras para crianças, escreveu teatro e editou livros de ensaios. É um nome que, nos dias de hoje, merecia ser mais conhecido do que é. E é pena, porque o país da Cultura deve bastante a Mário Castrim, pessoa com quem nunca me cruzei mas que sempre admirei.
Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca, ficou talvez mais conhecido por fazer crítica de televisão, em especial no "Diário de Lisboa". Nos dias de hoje, com montanhas de canais acessíveis, os mais novos espantar-se-ão talvez que essa função tivesse alguma relevância entre nós. Mas tinha, e muita, nos tempos em que havia um único canal, a oficial e oficiosa RTP, fautora da imagem que o regime queria dar de si mesmo, que cuidava dela com um desvelo proporcional ao jeito que lhe dava como fator condicionante da opinião pública.
Todos os dias, o DL trazia-nos o "Canal da Crítica", onde Castrim, num português de lei, nos deliciava com "innuendos" e artimanhas estilísticas, com vista a dar a volta à censura, comentando programas, apreciando conteúdos, às vezes com notas bem à margem daquilo que comentava. Era um regalo conseguir ler por entre as linhas de Mário Castrim, mesmo que soubéssemos que, aqui ou ali, o "lápis azul" dos coronéis da rua da Misericórdia tinha feito os seus estragos. Mas até algumas ausências pressentidas de texto chegavam a ter significado.
(Esses eram "bons tempos"? Uma ova! Eram tempos sinistros e o facto de, por vezes, os referirmos com leveza e ironia deve ser apenas visto como uma forma de exorcismo. Que isto fique muito claro!).
Mas Castrim era muito mais do que um mero crítico de televisão, sendo esse embora um terreno em que nunca teve um émulo à sua altura. Era um intelectual e um homem das letras, que orientou o magnífico DL Juvenil, um espaço do "Diário de Lisboa" que, num tempo em que não havia blogues nem facebook, permitia a publicação de textos de conteúdo literário a muitos jovens - alguns que foram e são hoje figuras consagradas da nossa Cultura.
Politicamente, Mário Castrim era, creio, militante comunista e, com a Revolução, o seu radicalismo, algo extremado, veio ao de cima. Alguma da unanimidade de que até então usufruía nos meios oposicionistas veio a reduzir-se nesses anos "da brasa", como aliás aconteceu com muito boa gente. A certo ponto, alguém, com graça, apodou-o mesmo de "sectário-geral"...
Castrim era magnífico na polémica, mesmo antes do 25 de abril. Recordo-me bem de duas confrontações que teve. Uma com Artur Portela Filho, com uma das peças a ter o título genial de "Ó Artur! Ó Portela! Ó Filho!". Outra, bem pesada, com Luiz Francisco Rebello, que creio chegou a meter ameaça de bengalada. E Castrim usava uma!
Regresso ao ponto em que comecei. Provavelmente, muito poucos, nos dias de hoje, se recordarão já de Mário Castrim. Entre os outros, os mais antigos, alguns lembrá-lo-ão sob um olhar bem diferente do meu, quiçá mesmo oposto. Mas esta é a "graça" da democracia da opinião, que Castrim, com a sua pena acerada na pele tosca da ditadura, também nos ajudou a construir.