Intervenção feita no dia 25 de abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, a convite de Manuel Alegre e de António Costa, na passagem de meio século sobre a publicação do livro de poesia "O Canto e as Armas".
Caro António Costa
Caro Manuel Alegre
E agora, apetecia-me dizer: "Amigos, companheiros e camaradas". Porque era assim que aquela, que esta voz nos surgia pela noite dentro. Mas já lá vamos.
Há dias, na iminência desta ocasião, perguntei a mim mesmo quando terei ouvido falar, pela primeira vez, em Manuel Alegre. Foi num aparelho de rádio lá de casa, em Vila Real, que o meu pai, uma noite, numa espécie de iniciação, assegurando-se que as portadas das janelas estavam bem fechadas, partilhou comigo, pela primeira vez, a escuta da Rádio Voz da Liberdade. Imagino que, nessa noite da minha adolescência, eu deva ter crescido um pouco com essa partilha de cumplicidade, por parte de alguém com quem, anos antes, tinha ido ver Humberto Delgado, na sua passagem pela capital transmontana.
A voz que ouvíamos nessas noites, mas que então não sabíamos ter o nome de Manuel Alegre, tinha uma envolvência convocatória de uma natureza que eu nunca experimentara até então. Para o meu pai, mais do que a proclamação anti-colonial, sobre a qual tinha sentimentos divididos, como ao tempo acontecia com muita gente que se sentia próxima da oposição democrática, era na denúncia aberta do ditador, das patifarias do regime e na revelação daquilo que a imprensa nos escondia que residia toda a virtualidade daquela mensagem.
Com o tempo, já não sei bem como e quando, coloquei o nome de Manuel Alegre naquela voz que nos chegava da "rue Auber, nº 13, Alger, Argélia" - endereço que, no fim da emissão, nos era recomendado que usássemos para eventual correspondência. Nunca ousei escrever para lá, mas, há uns anos, fui a Argel e passei pela porta. Como curiosidade, a rua já não se chama Auber, chama-se Mohamed Chabani. Sem saudades mas com alguma nostalgia, lembrei-me então dessas noites em que colávamos o ouvido ao "Telefunken", embalados pelo "Vozes ao alto" de Lopes Graça.
Passou algum tempo até uma outra noite, também em Vila Real, em que um amigo, então sacerdote católico, me leu pela primeira vez alguns poemas de Manuel Alegre, a tal voz que vinha da Argélia. Esse amigo chamava-se António Cabral e era, ele próprio, poeta.
Fomos muitos, a partir de então, os que conheceram, partilharam e cantaram a poesia de Manuel Alegre - da "Praça da Canção" a "O Canto e as Armas". Para nós, para a minha geração, aquela poesia era muito mais do que literatura. Era a expressão escrita da revolta, era a trova que alimentava a luta anti-fascista, era a vocalização rimada que educou muito dos que vieram a fazer o 25 de abril.
Foi nessa poesia empolgante e empolgada, adjetivada de vigor revolucionário, saudavelmente subversiva face ao estado de coisas que se vivia no país, que então assentávamos, com ou sem música, a nossa esperança na chegada do dia em que por aí viria essa coisa, dificil de obter mas afinal muito agradável de viver, que é a liberdade.
Há 43 anos, o país viu chegar Manuel Alegre, olhou pela primeira vez a sua cara. Lembro-me de o ver com Fernando Piteira Santos a anunciar a criação dos Centros Populares 25 de abril. Uma estrutura efémera, como efémeras foram muitas das iniciativas que brotaram do entusiasmo da Revolução. Para trás tinha ficado Argel e o complexo microcosmos de tentativa de coordenação da luta contra o Estado Novo, aí criado nos anos 60.
Depois, Manuel Alegre, com a naturalidade dos lutadores, enveredou pela política, pelo PS. Foi algumas vezes polémico, divisivo, nunca acomodado, com voz própria. Teve as suas vitórias e as suas derrotas - confortáveis vitórias e honrosas derrotas - porque é essa a essência do regime democrático e é esse o destino de quem se propõe servi-lo. Passaram todos estes anos. Manuel Alegre é hoje, no país cuja liberdade a sua poesia ajudou a construir, um dos rostos mais simbólicos da nossa democracia. Neste primeiro 25 de abril que passamos sem Mário Soares, Manuel Alegre permanece, para todos nós, como um expoente da Revolução e da liberdade que ela nos trouxe.
Mas hoje estamos aqui também - ou essencialmente - para falar e ouvir poesia. E, em matéria de poesia, deixem-me que lhes diga, este é um país feliz. Foi uma excelente ideia, meu caro António Costa, ter um poeta na Cultura. É um "luxo" que só prestigia Portugal.
O livro que hoje aqui evocamos - "O Canto e as Armas", ao lado da "Praça da Canção" - foi uma bela ferramenta literária para a Revolução de abril. Mas eu imagino que Manuel Alegre, nos dias de hoje, olhe para esses dois livros com um sentimento ambivalente. Por um lado, claro que não os renega, não apenas por serem as suas primeiras obras, mas também pelo facto de terem sido aquelas que o fixaram no nosso imaginário. Mas, do mesmo modo, posso crer que, em algum momento, tenha sentido a tentação de "ver-se livre" deles. Porquê? Porque, com toda a certeza, tem o justo sentimento de que muito daquilo que, a partir de então, publicou é, no plano puramente literário, bem superior a essa histórica produção "de juventude".
A vida, contudo, pode ser algo injusta: não conheço quem saiba de cor algum dos seus belos poemas mais recentes. E, no entanto, muitos de nós - a começar por mim - somos capazes de declamar (mal ou bem, logo se verá) os mais antigos dos seus poemas, porventura menos valiosos como literatura, mas seguramente bem mais importantes para a nossa memória afetiva.
Ainda há dias, ao reler com atenção "O Canto e as Armas", me comovi com alguma dessa trova. É que, ao lê-la, eu estava a recordar-me, também um pouco, desses "bons amargos tempos", como uma amiga minha os qualificou ainda esta manhã, em que eu tinha todo o futuro à minha espera. O futuro, esse futuro, aqui está, agora, no Portugal democrático em que vivemos, conquistado pelas armas, há 43 anos, habitado pela palavra dos poetas que souberam fazer rimar abril com liberdade.
Muito obrigado, Manuel Alegre.
25 de abril sempre!
Viva Portugal