sábado, maio 06, 2017

Trocos

"Não acredito!" A jovem da loja dos sumos da rua Nova do Almada olhou para mim, incrédula.

Duas horas antes, eu tinha entrado (não muito, porque aquilo é esconso) pela porta dentro, com uma nota na mão, a pedir trocos, para estacionamento. Não obstante a situação da caixa registadora, neste domínio, não ser brilhante, a jovem havia sido de uma grande simpatia e lá me arranjou um par de moedas.

Agora, duas horas e tal passadas, aí estava eu, com o dobro dos trocos na mão, a "devolver-lhe" a gentileza, pedindo uma nota "em troca". A jovem estava siderada com o meu gesto. Sorrimos - e ela era bonita - e eu fui à minha vida.

O meu carro, parcado em frente, lá estava, dentro da hora do estacionamento, naquele dia em que a app da Emel "não dava". Tudo perfeito!

Foi então que vi o pequeno envelope vermelho no pára-brisas, Dentro, a fatídica multa. Era uma zona para residentes! 60 euros a pagar! Afinal não eram trocos...

sexta-feira, maio 05, 2017

Grau zero


“O senhor não tem o monopólio do coração”, lançou Giscard d’Estaing a François Mitterrand, com maestria, no debate presidencial de 1974. Qualificado de “candidato do passado”, Mitterrand retorquiria a Giscard, em 1981, que ele era “o candidato do passivo”. Mais um septanato decorrido, o mesmo Mitterrand, presidente recandidato, calaria o seu “challenger”, o primeiro ministro da maioria hostil, Jacques Chirac, quando este sublinhou que ali não estavam um presidente e... um primeiro-ministro, mas apenas duas pessoas com estatuto idêntico, com o soberbo: “Tem toda a razão, senhor primeiro-ministro”. Chirac começaria a cair aqui.

Alguns desengravatados na linguagem argumentarão que os tempos já não estão para “punhos de renda”, que a linguagem franca é a regra do jogo, que os dias que correm convocam outro tipo de discurso. Imagino que sejam as mesmas pessoas que não se escandalizam com as javardices insultuosas ditas pelo presidentes dos clubes, que assim ditam o tom à turbamulta alarve das claques, com as violências consequentes.

Pode ser que sim, e as ruas da amargura em que se transforma, em certas tardes, o nosso debate parlamentar parece dar-lhes razão. É claro que o tempo do “olhe que não, olhe que não”, entre Soares e Cunhal, já lá vai há muito, que a elegância do confronto político parece francamente perdida.

Mas o bom senso, e até o sentido prático de deixar abertas algumas portas para o diálogo, talvez recomendasse que se preservasse uma reserva de urbanidade. É que a política também se faz à porta fechada e o que se diz em público, se passar determinados limiares, pode condicionar certas pontes que o futuro pode revelar necessárias.

Tenho vindo a pensar mais nisto desde que testemunhei, um pouco atónito, o nível verbal das trocas entre Donald Trump e Hillary Clinton. E, na passada quarta-feira, ao constatar o “grau zero” a que chegou o confronto de Marine Le Pen com Emmanuel Macron, interroguei-me sobre o efeito que este tipo de linguagem poderá vir a ter junto dos respetivos eleitorados.

Mas depois, pensando melhor, cheguei a conclusão de que estamos perante um fenómeno bi-unívoco, isto é, os líderes cada vez mais refletem o nível do eleitorado que os apoia e o seu êxito parece ser proporcional à simbiose que demonstram com essa base. Só assim se explica que passem impunes atentados flagrantes à verdade dos factos – como Trump ousa todos os dias e Le Pen deixou patentes no debate.

Este é um tempo político perigoso, feito de caricaturas, de simplismos, de linguagem primária, que subordina a razão à emoção. Se a isto somarmos a dispensa da ética, a legitimação dos egoísmos e da discriminação e a ausência de respeito pelos outros, está criado um caldo de cultura que, no passado, deu no que deu.

Cri de coeur


Uma vitória de Marine Le Pen "significaria o fim da União Europeia porque a UE, sem a França, não faz sentido. E significaria o colapso do euro e a crise financeira, com consequências através do mundo". Quem disse isto não foi uma pessoa qualquer, foi Gérard Araud, embaixador francês em Washington. Acabo de ler na Newsletter diária do Washington Post. 

Pode um embaixador ter propósitos destes, hostilizando abertamente uma candidata que a vontade popular francesa poderá conduzir à chefia do seu país? 

Araud, um excelente profissional, que conheço bem (era diretor político do Quai d'Orsay quando eu era embaixador em Paris), tem, com certeza, a plena consciência de que está a ultrapassar a "linha vermelha" da neutralidade que aos servidores públicos incumbe ter perante as escolhas democráticas. As eleições em França decorrem em total liberdade, sem o menor condicionamento, pelo que não há a menor dúvida de que a resultante final do sufrágio, qualquer que ela seja, corresponderá à livre vontade do povo francês. Por isso, Araud prevaricou, de acordo com as regras estabelecidas e que lhe cumpria cumprir.

Mas eu percebo Gérard Araud. Um diplomata não é um eunuco político, é um cidadão que sente os problemas do seu país e, provavelmente, tem mesmo uma leitura mais qualificada do efeito externo das escolhas internas. E ele pressente que, se a França viesse a escolher Le Pen, isso teria um impacto muito negativo para a imagem e prestígio do seu país. E escolhe dizê-lo.

Ao tomar esta atitude, Araud sabe que, em caso de vitória de Le Pen, a sua "cabeça" rolaria e, muito provavelmente, teria de deixar o serviço diplomático. Por isso, pelo facto de um dos mais prestigiados diplomatas franceses ter ousado abandonar a neutralidade a que a função o obriga, dando este "cri de coeur", pondo em risco a sua carreira, pode ter-se uma ideia mais clara da gravidade da escolha que os franceses serão chamados a fazer no domingo.

Segunda-feira


Emmanuel Macron ganhou o debate televisivo contra Marine le Pen? Confesso que, depois do Brexit e de Trump, sou bem mais cuidadoso nas opiniões que emito sobre realidades estrangeiras e, em especial, nas avaliações prospetivas sobre o sentido desses eleitorados. Porquê? É muito simples: o referencial de análise que cada um de nós utiliza é sempre desenhado à luz daquilo que pensamos ser o eleitor comum, do qual, implicitamente, tendemos a não nos afastar muito em termos pessoais (embora possamos fazer um esforço interior para tal). Ora isso não leva suficientemente em conta a circunstância desse mesmo eleitor "médio" poder ter, entretanto, mudado bastante, fruto de situações conjunturais que podemos não conseguir medir convenientemente, de ele ser hoje menos sensível a sentimentos e realidades que, no passado, sabíamos que estavam mais presentes nas suas escolhas. Quero com isto dizer que fatores emocionais, que somos levados a considerar como primários e simplistas, podem afinal ter um papel central na decisão de cada um. Por exemplo, o rigor factual nas propostas ou comentários dos candidatos, que sempre tendemos a considerar qualificadores do seu discurso, podem dizer muito pouco a eleitores que se deixem tentar pelo "vale tudo" e que considerem isso um preciosismo dispensável. Viu-se nos os debates entre Clinton e Trump.

Repito: Macron ganhou o debate? Para mim, ganhou, mas tenho a certeza de que um "enragé" (para utilizar a clássica expressão do maio de 1968), que deteste um tipo engravatado com ar "certinho", a lembrar a alta finança e o "sistema" que ele acha que lhe põe em causa o seu emprego, que lhe abriu as fronteiras por onde entra a “diferença” que ameaça a imagem que tem da sua identidade nacional, que o não protege dos terroristas e dos "voyous" que lhe assombram a segurança das ruas no HLM onde vive, que, para ele, representa tudo aquilo que mobiliza a sua raiva, essa pessoa não pensa exatamente como eu. E pode, afinal, sentir-se representada pelo escárnio (que eu acho alarve, mas ele talvez não) presente nas atitudes de Le Pen durante o debate, indiferente ao facto de ela não saber quando foi introduzido o euro ou o seu visível desconhecimento da máquina europeia. O eleitorado, dirá o leitor, não são só "enragés"? Claro que não. Mas o eleitor "médio" sereno, que oscilava entre o centro-direita e a social-democracia, por muitos anos o fiel da balança do sistema, por onde andará hoje, com as estruturas políticas da direita clássica e dos socialistas destroçadas? Hoje, está visto, é tão “enragé” o operário vítima das deslocalizações como o é o estudante sem emprego à vista que votou Mélenchon ou o idoso burguês do XVIème que se assusta ao cruzar-se nas ruas com as “burkas” e que até tinha perdoado os pecadilhos a Fillon para ter um “genérico” de Sarkozy no Eliseu.

Logo veremos. Mas, seja qual for o resultado, o mundo irá mudar com esta eleição francesa.

Se, numa hipótese que não espero, Marine le Pen entrasse no Eliseu, a disrupção e a instabilidade que isso provocaria no projeto europeu seriam imensos e imediatos. Se for Macron a ganhar, como me parece mais provável, será sempre mais um presidente “by default” do que uma escolha pela positiva.

Em qualquer dos cenários, vai ser necessário esperar pelas eleições legislativas de junho, de cujo resultado dependerão as condições de governabilidade de qualquer presidente. Uma coisa é clara: uma forte “onda” Le Pen trará impactos determinantes sobre esse mesmo sufrágio, atenta a “balcanização” do voto dos seus múltiplos opositores.

A França será muito diferente a partir de segunda-feira. A outra má notícia é que, muito provavelmente, a Europa também, e para pior.

quinta-feira, maio 04, 2017

O adeus de Philip


Foi hoje anunciado que o príncipe Philip, duqie de Edimburgo, vai deixar de surgir em cerimónias públicas. A sua fragilidade física justificará que deixemos de o ver ao lado da raínha Isabel II. Enfim, ao lado não, porque há uma arte que ninguém como ele domina: estar sempre dois passos atrás da soberana, garantindo, não obstante, um lugar com suficiente proeminência na cena, a que a sua estatura também ajudava. Do príncipe, a História não reteve grandes tiradas e, bem pelo contrário, fixou mesmo algumas "gaffes". Não deve ser fácil ser príncipe consorte, mas, jogando o trocadilho, ele tem, no entanto, a sorte de sê-lo de uma raínha que é uma excelente profissional na função que exerce.

Há já uns bons anos, na Noruega, tive uma simpática amiga, diplomata equatoriana, de seu nome Marta Dueñas. Era casada com um norueguês "muito norueguês", daqueles que construíam (não sei se ainda constroem) as próprias casas familiares de madeira, ao longo de vários meses ou mesmo anos. Chamava-se Erik e recordo-me que tinha um humor já algo "sulista", por virtude do convívio com os colegas da mulher, como era o nosso caso.

Um dia, o Erik contou-me uma troca de palavras que teve com o príncipe Philip, durante uma visita de Estado da soberana britânica à Noruega. Como era de regra, após o jantar oficial, o protocolo ia convidando os diplomatas, por uma ordem vagamente próxima da respetiva antiguidade, para se aproximarem do rei norueguês - à época Olav V - e da sua convidada. Numa linha mais atrás, o príncipe Philip exibia o seu sorriso e deixava cair alguns comentários.

Quando a diplomata equatoriana e o seu marido foram apresentados aos reis, o duque de Edimburgo acercou-se de Erik e, num aparte só ouvido pelo dois, comentou: "você e eu temos uma coisa em comum: são as nossas mulheres que trabalham!" Erik não sabia o que dizer: ele próprio tinha uma exigente profissão e vir a ser toda a vida "consorte" da mulher era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Mas não quis desiludir o príncipe e deixou escapar: "De facto, é um privilégio estar na nossa posição..." Não contava com a reação de Philip: "Privilégio?! Isto às vezes é muito aborrecido, pode crer! Para si não é?". O norueguês, que detestava cocktails e jantares oficiais, a que só assistia por virtude da profissão da mulher, achou que tinha ganho espaço para uma graça: "Ao menos, bebemos uns copos!" Ao que Philip, sorrindo, respondeu: "Pois hoje, a mim, de nada me valeu ainda ser marido da raínha! Ainda não consegui que me servissem um scotch..."   

quarta-feira, maio 03, 2017

Refugiados

A tradicional auto-flagelação lusitana, essa endémica mania de desqualificar o que alguém faz em nome do país, tem vindo a "desfazer" no acolhimento dado aos refugiados, destacando que muitos "fogem" de Portugal, após precariamente instalados.

A ver se nos entendemos: cumprindo bem a sua história como país recetor de deserdados da sorte, Portugal foi dos primeiros Estados a abrir portas, à sua medida, à recente vaga de refugiados do Médio Oriente. Fê-lo através de uma notável mobilização do Estado e da sociedade civil, da igreja e dos municípios. Como cidadão, fiquei orgulhoso com o modo generoso como o nosso país se mobilizou.

Portugal fez a sua obrigação, fê-la bem e à medida das suas possibilidades - que são as do país mais pobre da Europa ocidental, como alguns teimam em esquecer que há muito somos. Houve, com certeza, falhas, mas, genericamente, as avaliações feitas são muito positivas e reconfortantes.

Arguir com a posterior saída dos refugiados é não entender que, na sua condição, é de todo natural que procurem ir em busca das melhores oportunidades, que essas são as que países mais ricos proporcionam, onde as possibilidades são em maior número, em que os apoios sociais são mais amplos, onde porventura há comunidades da mesma origem, mesmo familiares e amigos já integrados.

Há que ser rigoroso na avaliação do que eventualmente possa ter corrido mal, aprendendo todas as lições daí decorrentes. Mas não deixemos que a árvore nos tape a floresta e que a acidez agrave as úlceras alimentadas pelo eterno discurso da verrina. 

Isabel Mota

(fotografia de João Paulo Dias)

Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian. E aproveito também para, neste momento, deixar um abraço de grande amizade a Artur Santos Silva, que abandona a chefia da instituição, depois de um exigente mas muito bem sucedido mandato, num período que, como é sabido, não terá sido nada fácil para a gestão dos recursos que sustentam a atividade daquela casa.

terça-feira, maio 02, 2017

Uma história do Nuno


Era àquela hora despovoada em que o Procópio tem escassas almas, imediatamente antes do jantar. Às vezes, há por lá uns canastrões a "fazer a folha" a secretárias em busca de ascensão, ou um tête-à-tête de negócios. O Nuno Brederode Santos tinha chegado, depois das seis, fazia horas para ir jantar ao "Mãe de Água". Eu estava por lá por um mero acaso, muito longe do meu turno. 

Vimo-lo entrar e sentar-se ao balcão. Trazia a marca indelével dos chatos. Saudou-nos na "mesa dois", à distância. O Nuno sabia quem era. A certo passo, com o resto da sala deserta, copo na mão, o cavalheiro aproximou-se da "dois", perguntou se se podia sentar. Saí um pouco da conversa, com ele a inquirir do Nuno sobre umas coisas que não me diziam o menor respeito. Com generosidade inclusiva, o tipo voltou-se então para mim: "Sabe, eu e o Nuno conhecemo-nos do tempo do Ertilas, aquele café de Campo de Ourique. Grandes noitadas por lá, não era, Nuno?". O Nuno, complacente, dizia que sim. Comentei então que o Luís, o magnífico empregado do Procópio que nos aguenta nas últimas décadas, havia trabalhado nesse café. O "Ah! Sim?" (versão lusa do anglo-saxónico "really?!") foi a única coisa que lhe saiu.

Esgotados os minutos em que nos encharcou de conversa, o cavalheiro preparou-se para sair. Nostálgico, comentou, de novo íntimo, com o Nuno: "Grande Ertilas! Belo café! Grandes tempos! O nome do café é grego, não é?". O Nuno, grave, acenando que sim com a cabeça, confirmou. Era um nome grego, da mitologia, claro.

O tipo saiu. Eu tinha de fazer o mesmo. O Nuno ia para o restaurante. Perguntei: "Conhecias bem o tipo?". "Mais ou menos, mas nunca o vi no Ertilas..." Riamo-nos, já fora, pelas escadas, quando comentei: "Não fazia ideia de que Ertilas era um nome grego!" "Grego?" O Nuno deu uma gargalhada das dele: "Ertilas é Salitre ao contrário"...

Ontem, não pude ir aos Prazeres, despedir-me do Nuno. Lá por Campo de Ourique, como o Ertilas, o bairro onde o Nuno nasceu.

segunda-feira, maio 01, 2017

A hora do aeroporto



O cavalheiro estava bem disposto, não obstante já ter passado mais de meia hora, sem que as bagagens surgissem na passadeira, depois do voo que nos trouxe de Paris.

A mulher, cansada, acabara de dizer que estavam ali a "perder tempo". Ele não se mostrou de acordo:

- Estás enganada! Quando vimos de Paris para Lisboa, chegamos com uma hora de diferença, não é? Ora muito bem: essa hora existe precisamente para compensar os atrasos da TAP e para permitir que haja tempo para entregar as malas.

Bem visto!

Primeiro de maio

Tinha uma "Légion d'Honneur", discreta, gasta, como deve ser. Quase 90 anos. Estava sentado ao nosso lado, nas mesas do fundo da sala de baixo, hoje, no almoço do Stella. "Cabillaud" e uma "carafe" de vinho da casa. De repente, a língua diferente aproximou-nos. Ao saber-nos portugueses, do "cabillaud" passou-se ao bacalhau. E depois a Salazar ("un homme remarquable") e aos "oeillets rouges" dos comunistas. Quando enveredou pelas "concierges portugaises", concentrei-me de vez no "fillet de boeuf saignant, sauce bernaise". Intervalo. A certa altura, entre nós, falou-se do Trocadéro, ali perto. Ouvida a palavra, não resistiu: "J'y étais, l'autre jour, avec Fillon", esclareceu, sem necessidade, para o nativo do "XVIème" que era. Claro que estivera no comício de Fillon, onde Juppé foi tido como "le candidat de la gauche". Tentei, por uma última vez, evitar a atualidade, fugir à controvérsia. Falei-lhe, admirativo, da condecoração que tinha ao peito: "Le Général! C'est lui qui me l'a donnée." Mas derivou, de novo, para a política dos dias. "Tout ça c'est la faute de Mitterrand". Animado pelo Bourgogne, lancei: "Quand même, avec lui, les chars soviètiques n'ont pas descendu à la Concorde!", recordando o que dizia a direita assustada, nesses anos 80. Não topou. "Hollande c'était un imense désastre! Un salaud! Et l'autre, ce Macron c'est bonnet blanc, blanc bonnet". Lembrei-lhe que Macron vinha do Banco Rothschild... como Pompidou. O imenso Baba au Rhum que comia ("soyez généreux" com o rum vertido, havia ele pedido ao empregado, rindo) tremeu com a pequena provocação. "Il faut le stopper, Monsieur!" Disse-lhe que era turista, que não tinha nada a ver com o que se passava, mas que tinha uma curiosidade: "Et le Géneral? Qu'est-ce qu'il penserait de la possibilité de voir une Le Pen à l'Elysée?". "Cher Monsieur, tout ça c'est trop serieux pour des plaisanteries". "Mes hommages, madame", disse ele para o outro lado da minha mesa. E saiu, com a bengala cheia de tentações. Que raio de 1° de maio em Paris!

O Hubert

Ao final de uns minutos, eu já estava arrependido de ter puxado conversa. Ele era do Haiti, negro, vivia em França desde os anos 90, tinha aquele francês caribenho macarrónico. Comecei por perguntar-lhe pelo seu país, pelo terramoto, pelas vagas migratórias para a América, Canadá e França. Vieram também os Duvalier à baila - do pai ao "baby Doc" e aos "tonton macoute" -, falámos da desilusão que foi o Aristide. Ele era democrata, contra a ditadura, falou do desvio de verbas para a reconstrução, da escassa esperança na nova solução governativa. A certo passo, dei comigo a cometer o lapso de lhe perguntar quem é que ele achava que ia ganhar a eleição francesa do dia 7. O homem começou a responder relativamente sereno, equilibrado, quase diplomático. Depois, subitamente, confessou, excitado, que ia votar Marine Le Pen. Não contestei, não disse nada, ouvi a sua litania sobre a necessidade da França sair do euro, regressar ao franco, travar a entrada de estrangeiros (!). "Com um franco comprava-se uma baguette, agora é preciso o equivalente a seis francos", sem que eu lhe perguntasse quanto ganhava então. E, de um momento para o outro, Macron passou a ser o objeto de todas as críticas. Ainda estive para perguntar-lhe se, por acaso, já tinha refletido no que poderia vir a acontecer, em caso de vitória de Le Pen, aos estrangeiros, mesmo aos que, como ele, já estavam há muito em França. Contive-me, para não atiçar ainda mais a conversa que ele empolgara. E, praticamente, "desliguei". A certa altura ouvi-o denunciar a aliança de Macron e com o Hubert. Conheço relativamente bem as figuras políticas, e outras, francesas, mas não consegui chegar à personagem a quem ele se referia. O tal Hubert surgir-lhe-ia umas vezes mais no discurso, que agora era contra a "globalização", o "neo-liberalismo" e clichés assim. Eu já tinha deixado para trás a conversa. Saí do carro. Paguei. E, um segundo depois, como dizem os brasileiros, "caiu a ficha": o Hubert, esse maroto conluiado com Macron, que eu não identificava, era afinal o Uber. Muito por causa dele, o taxista haitiano de Paris vai votar Le Pen. Que lhe faça bom proveito, é o que não lhe desejo.

domingo, abril 30, 2017

Viver com Trump


Por muitos anos, Donald Trump foi, na imagem exportada pela América, a caricatura arrogante do dinheiro, mulheres espampanantes à ilharga e abundância de notas pitorescas em páginas sociais. As suas incursões discursivas no mundo da política eram vistas com alguma sobranceria pelos ocupantes institucionais do espaço. É que, por lá, os milionários que revelam ambições políticas tentam, em regra, concretizá-las a nível local. Talvez por essa razão, a sua vocação presidencial foi inicialmente acolhida com o desdém concedido aos "newcomers", num sistema que parecia blindado à intromissão de intrusos. 

Trump foi mais hábil do que se supunha. Com o tempo, conseguiu explorar um "nicho de mercado" que a arrogância dos aparelhos políticos tradicionais não tinha visto chegar: uma certa América agora triste – branca, insegura, indignada com a sua sorte e em crise de identidade – de há muito sem voz própria com expressão eficaz. Mas não deixa de ser muito irónico que os "losers" se tivessem deixado seduzir eleitoralmente por um dos ganhadores da economia "de casino", neste caso no seu sentido mais literal. Ou talvez não: Trump era a imagem do sucesso de que tinham sido excluídos e falava para eles, com palavras e soluções simples, com que ostensivamente contestava o sistema que esses setores sentiam como culpado pelo seus azares de vida. E Trump, contra os aparelhos, foi eleito.

A administração Trump comemora agora os clássicos 100 dias, que costumam convocar balanços. A maioria dos americanos não parece partilhar, de forma entusiástica, de qualquer euforia. E, de facto, poucas razões teria para tal. Este seu atípico presidente, que para o comum da comunicação social bem-pensante é um embaraço para a imagem dos EUA, pouco provou naquilo que dele se esperaria como líder da maior potência mundial. Pelo contrário, mostrou um chocante nível de impreparação que causa angústias em muitos setores.

Na política interna, a forte ascendência republicana no Congresso não tem conseguido produzir, necessariamente, uma coerência na resultante decisória correspondente ao seu expressivo poder quantitativo. Esperar-se-ia que a autoridade do presidente fornecesse uma linha orientadora e unificadora, mas Trump e a sua equipa já mostraram não serem os "brokers" ideais desses diferenciados interesses. Isso leva a um espetáculo de medidas erráticas, na obsessão de concretizar o desmantelamento do período Obama. E o saldo de realizações, ao final destes 100 dias é mais magro do que nunca.

A agenda externa proposta foi aquela que, compreensivelmente, mais agitou o mundo. Mas, curiosamente, foi aquela em que algumas reversões de percurso foram mais evidentes. A expressão do poder externo parece, por ora, entregue a militares, o que sossega os setores patrióticos e dá a Trump a possibilidade de exibir fogachos de poder bélico. A grande questão que o mundo se coloca é saber se a política de “espetáculo” seguida pelo presidente americano terá, ou não, expressões de desregulação, em quadros geopolíticos de forte tensão, que esse próprio mundo tenha de vir a pagar.

(Artigo publicado no dia 28 de abril no "Jornal de Notícias", a propósito dos "100 dias" de Trump)

Foi-se o Nuno


Morreu Nuno Brederode Santos. Se, na vida, me cruzei com alguma gente brilhante, o Nuno estava, sem favor, nos melhores. Mas era mais, era um amigo certo, um amigo único. Numa noite da vida em que tudo parecia desfazer-se, foi o Nuno que chamei para junto de mim, para relativizar essa dor.

Nuno Brederode Santos teria a graça dos iluminados, se acaso eles existissem. Tinha uma fascinante rapidez de raciocínio, uma memória arrasante para o interlocutor, aliada a uma cultura multifacetada e maturada, nos livros, nos filmes, nas tertúlias. Era dono de uma palavra ágil, oportuna, capaz de golpes de génio verbal como raramente testemunhei em alguém. Num grupo, animava todos, era atento a quem sentisse isolado, cuidadoso ao extremo com os problemas dos outros. Era um pessoa solidária, sempre ao lado das coisas da vida que valem a pena, das causas pelas quais era importante travar as batalhas, por mais perdidas que elas se anunciassem. Escrevia como poucos o sabem fazer, num português de lei, com uma riqueza vocabular que só muito episodicamente atravessou o jornalismo português. Da "Seara Nova" ao "Expresso", passando por outras colunas onde nunca cuidou em ser excessivamente assíduo, deixou páginas únicas. O seu "Rumor Civil", o livro que recolhe algumas dessas peças, fica-nos como um retrato raro de um certo período político, que ele dissecou com o certeiro bisturi da ironia. 

Nuno Brederode Santos, diz-me quem sabe, era uma mente jurídica brilhante, inventiva, desconcertante, de uma qualidade rara. Neste domínio, não foi, com toda a certeza, tão longe como, com facilidade, poderia ter ambicionado. Mas o Nuno fez escolhas, escolheu a vida. E a vida, essa vida, acabou agora. Cedo demais, mas cheia, rica, única, recheada de amigos. Deixo um beijo sentido para a Maria do Céu, mulher-coragem, que lhe alegrou a existência, numa cumplicidade brilhante que o completou, de uma forma dificilmente substituível. E outro beijo aqui fica para a Maria Emília, o fraterno e eterno sorriso bom que sofre, em pouco tempo, outra perda sem remissão.

Foi-se o Nuno. Nasceu no dia da batalha das Ardenas, deixa-nos num dia glorioso da solidariedade e da esperança. Quem o conheceu sabe que, com a sua partida, é uma certa geração que, definitivamente, sai agora de cena.

(Artigo hoje no "Público")

sábado, abril 29, 2017

"Diplomacia de Defesa"

Há mais de um ano, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidafe Nova de Lisboa, fui arguente da tese de mestrado de Maria do Rosário Penedos, dedicada ao tema da Diplomacia de Defesa.

Foi uma prova brilhante, finda a qual sugeri a publicação da tese, por se tratar de uma abordagem muito criativa a um tema em que Portugal tem tido grande destaque na ordem externa.

No dia 27, tive o gosto de apresentar a obra, editada pela Chiado Editora, que também prefaciei.

sexta-feira, abril 28, 2017

Brincar com o fogo


Em 1986, no auge da luta eleitoral que opôs Mário Soares e Freitas do Amaral, o país ouviu Álvaro Cunhal recomendar aos militantes comunistas que votassem Soares no segundo turno. Para os que tivessem maior relutância em fazê-lo, conhecida a aversão tida a Soares por muita gente desse setor, o líder do PCP recomendava que “tapassem com a mão” a sua fotografia, quando colocassem a cruz no boletim de voto.

Freitas do Amaral não era um fascista, não era de extrema-direita, embora não houvesse nenhum saudoso do “ancien régime” em Portugal que não se tivesse acolhido à sombra do candidato dos “loden” e dos palhinhas, o que assustava muita gente, a começar pelo autor deste texto. Mas foi assim que o “povo de esquerda” (bela expressão de António Barreto, pedida de empréstimo a Mitterrand) conseguiu colocar Soares em Belém, por uma década.

Le Pen está muito próxima de Trump, esse sim, portador de uma agenda claramente de extrema-direita – designação que, se acaso fosse europeu, há muito a imprensa já lhe teria colado à pele. E, no entanto, sendo ela indiscutivelmente muito mais perigosa do que Freitas do Amaral era em 1986, há, pelos vistos, quem não veja as coisas dessa forma, equivalendo-a a candidatos indiscutivelmente mais inócuos. E isto ocorre na mesma França que, em 2002, se mobilizou maciçamente por Jacques Chirac contra o pai Le Pen, cuja agenda programática não era substancialmente muito diferente.

Por isso, ouvir um homem com um passado de  esquerda, como Jean-Luc Mélenchon, na sua intervenção no final da primeira volta, afirmar que não ia dar, uma indicação imediata de voto ao expressivo número dos que nele confiaram, optando entre os dois candidatos apurados para o escrutínio final, um dos quais de extrema-direita, foi, a grande distância, o que mais me impressionou naquela noite.

O “defeito” é, com certeza, meu: ainda vivia num mundo que se havia habituado à regra “republicana” de que, contra um candidato de extrema-direita, o voto era “cego” em quem quer que se lhe opusesse. E isso, afinal, acabou. Até nalguma esquerda.

É claro que, em 2012, já se assistira ao famoso “ni-ni” – nem Front National, nem socialistas – lançado por Sarkozy, antes da segunda volta das eleições legislativas. Curiosamente, Fillon não o seguiu, nem nessa altura nem nestas eleições, em que logo afirmou que era necessário votar em Macron. Porém, Sarkozy e a “nomenklatura” do “Les Républicains” o máximo que conseguiram ir foi apelar a um voto “contra Marine Le Pen”. A direita francesa parece ter iniciado uma deriva sem retorno para as profundezas radicais. Mas a esquerda populista, talvez numa inconsciente procura do “quanto pior melhor”, não lhe fica atrás. Estão a brincar com o fogo. E podemo-nos queimar todos.

quinta-feira, abril 27, 2017

Os dias de Orbán


Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.

Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.

Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.

A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".

Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.

quarta-feira, abril 26, 2017

Poesia Alegre


Intervenção feita no dia 25 de abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, a convite de Manuel Alegre e de António Costa, na passagem de meio século sobre a publicação do livro de poesia "O Canto e as Armas".

Caro António Costa
Caro Manuel Alegre

E agora, apetecia-me dizer: "Amigos, companheiros e camaradas". Porque era assim que aquela, que esta voz nos surgia pela noite dentro. Mas já lá vamos.

Há dias, na iminência desta ocasião, perguntei a mim mesmo quando terei ouvido falar, pela primeira vez, em Manuel Alegre. Foi num aparelho de rádio lá de casa, em Vila Real, que o meu pai, uma noite, numa espécie de iniciação, assegurando-se que as portadas das janelas estavam bem fechadas, partilhou comigo, pela primeira vez, a escuta da Rádio Voz da Liberdade. Imagino que, nessa noite da minha adolescência, eu deva ter crescido um pouco com essa partilha de cumplicidade, por parte de alguém com quem, anos antes, tinha ido ver Humberto Delgado, na sua passagem pela capital transmontana.

A voz que ouvíamos nessas noites, mas que então não sabíamos ter o nome de Manuel Alegre, tinha uma envolvência convocatória de uma natureza que eu nunca experimentara até então. Para o meu pai, mais do que a proclamação anti-colonial, sobre a qual tinha sentimentos divididos, como ao tempo acontecia com muita gente que se sentia próxima da oposição democrática, era na denúncia aberta do ditador, das patifarias do regime e na revelação daquilo que a imprensa nos escondia que residia toda a virtualidade daquela mensagem.

Com o tempo, já não sei bem como e quando, coloquei o nome de Manuel Alegre naquela voz que nos chegava da "rue Auber, nº 13, Alger, Argélia" - endereço que, no fim da emissão, nos era recomendado que usássemos para eventual correspondência. Nunca ousei escrever para lá, mas, há uns anos, fui a Argel e passei pela porta. Como curiosidade, a rua já não se chama Auber, chama-se Mohamed Chabani. Sem saudades mas com alguma nostalgia, lembrei-me então dessas noites em que colávamos o ouvido ao "Telefunken", embalados pelo "Vozes ao alto" de Lopes Graça.

Passou algum tempo até uma outra noite, também em Vila Real, em que um amigo, então sacerdote católico, me leu pela primeira vez alguns poemas de Manuel Alegre, a tal voz que vinha da Argélia. Esse amigo chamava-se António Cabral e era, ele próprio, poeta.

Fomos muitos, a partir de então, os que conheceram, partilharam e cantaram a poesia de Manuel Alegre - da "Praça da Canção" a "O Canto e as Armas". Para nós, para a minha geração, aquela poesia era muito mais do que literatura. Era a expressão escrita da revolta, era a trova que alimentava a luta anti-fascista, era a vocalização rimada que educou muito dos que vieram a fazer o 25 de abril.

Foi nessa poesia empolgante e empolgada, adjetivada de vigor revolucionário, saudavelmente subversiva face ao estado de coisas que se vivia no país, que então assentávamos, com ou sem música, a nossa esperança na chegada do dia em que por aí viria essa coisa, dificil de obter mas afinal muito agradável de viver, que é a liberdade.

Há 43 anos, o país viu chegar Manuel Alegre, olhou pela primeira vez a sua cara. Lembro-me de o ver com Fernando Piteira Santos a anunciar a criação dos Centros Populares 25 de abril. Uma estrutura efémera, como efémeras foram muitas das iniciativas que brotaram do entusiasmo da Revolução. Para trás tinha ficado Argel e o complexo microcosmos de tentativa de coordenação da luta contra o Estado Novo, aí criado nos anos 60.

Depois, Manuel Alegre, com a naturalidade dos lutadores, enveredou pela política, pelo PS. Foi algumas vezes polémico, divisivo, nunca acomodado, com voz própria. Teve as suas vitórias e as suas derrotas - confortáveis vitórias e honrosas derrotas - porque é essa a essência do regime democrático e é esse o destino de quem se propõe servi-lo. Passaram todos estes anos. Manuel Alegre é hoje, no país cuja liberdade a sua poesia ajudou a construir, um dos rostos mais simbólicos da nossa democracia. Neste primeiro 25 de abril que passamos sem Mário Soares, Manuel Alegre permanece, para todos nós, como um expoente da Revolução e da liberdade que ela nos trouxe.

Mas hoje estamos aqui também - ou essencialmente - para falar e ouvir poesia. E, em matéria de poesia, deixem-me que lhes diga, este é um país feliz. Foi uma excelente ideia, meu caro António Costa, ter um poeta na Cultura. É um "luxo" que só prestigia Portugal.

O livro que hoje aqui evocamos - "O Canto e as Armas", ao lado da "Praça da Canção" - foi uma bela ferramenta literária para a Revolução de abril. Mas eu imagino que Manuel Alegre, nos dias de hoje, olhe para esses dois livros com um sentimento ambivalente. Por um lado, claro que não os renega, não apenas por serem as suas primeiras obras, mas também pelo facto de terem sido aquelas que o fixaram no nosso imaginário. Mas, do mesmo modo, posso crer que, em algum momento, tenha sentido a tentação de "ver-se livre" deles. Porquê? Porque, com toda a certeza, tem o justo sentimento de que muito daquilo que, a partir de então, publicou é, no plano puramente literário, bem superior a essa histórica produção "de juventude".

A vida, contudo, pode ser algo injusta: não conheço quem saiba de cor algum dos seus belos poemas mais recentes. E, no entanto, muitos de nós - a começar por mim - somos capazes de declamar (mal ou bem, logo se verá) os mais antigos dos seus poemas, porventura menos valiosos como literatura, mas seguramente bem mais importantes para a nossa memória afetiva.

Ainda há dias, ao reler com atenção "O Canto e as Armas", me comovi com alguma dessa trova. É que, ao lê-la, eu estava a recordar-me, também um pouco, desses "bons amargos tempos", como uma amiga minha os qualificou ainda esta manhã, em que eu tinha todo o futuro à minha espera. O futuro, esse futuro, aqui está, agora, no Portugal democrático em que vivemos, conquistado pelas armas, há 43 anos, habitado pela palavra dos poetas que souberam fazer rimar abril com liberdade.

Muito obrigado, Manuel Alegre.

25 de abril sempre!

Viva Portugal

terça-feira, abril 25, 2017

Liberdade...

... mas sem exageros. Ainda não foi hoje, mesmo sendo 25 de abril, que este blogue se viu livre de um post! 

segunda-feira, abril 24, 2017

"Portugal Amordaçado"

O "Expresso" decidiu republicar, em pequenos volumes, a versão portuguesa do "Portugal Amordaçado", o "testemunho" (era assim que vinha escrito na edição francesa) escrito por Mário Soares enquanto esteve no exílio, originariamente publicado em França pela Calmann-Lévi, em inícios de 1972. É uma bela homenagem ao pai da nossa democracia, neste primeiro 25 de abril que passaremos sem ele.

O livro é uma leitura pessoal da luta contra a ditadura, com uma história muito detalhada dos grandes momentos desse confronto. Soares, que está nessa luta desde muito jovem, percorre com grande equilíbrio histórico todo esse tempo. A escrita é muito agradável e no tratamento dos factos nota-se a pena de um historiador de formação académica (Soares colaborou com algumas entradas no "Dicionário da História de Portugal", de Joel Serrão). Pela primeira vez com alguma objetividade e rigor, era feita uma "desmontagem" do regime salazarista, subscrita por um dos principais protagonistas da oposição. Antes, havia muito poucos trabalhos de conjunto sobre o oposição ao Estado Novo. Apenas o PCP e o MRPP tinham ensaiado as suas próprias "histórias", em leituras naturalmente algo sectárias.

Comprei o livro no dia 1° de maio de 1972, na sua versão francesa ("Le Portugal Baillonné - Témoignage"), como tenho assinalado no volume que possuo. Tenho quase a certeza de ter feito a aquisição na Livraria Barata, na Avenida de Roma, então uma loja muito pequena, muito diferente da que hoje por lá existe. Mas também poderia ter sido na Moraes, ao Chiado, ou na Opinião, na Rua da Trindade - nesta última livraria eu costumava passar ao final da tarde, depois de sair do meu emprego na Caixa Geral de Depósitos. Essas eram as três livrarias onde, que me recorde, mantinha contactos para a obtenção de livros que se sabia que a polícia podia vir a "recolher".

Mário Soares escreveu o livro em diversos tempos do seu exílio (1969/1974) tendo-o terminado, ao que parece, em Itália, numa casa junto a um lago, emprestada por Mário Ruivo. Um dia comentei isto, que é conhecido, com Maria Barroso e notei, na sua cara, um ar de desagrado. "O Mário, nos fins de semana, durante esse período, ia a Roma, a casa do Mário Ruivo. Mas nunca gostei muito daquilo: parece que o Ruivo fazia por lá umas festas, tinha por lá umas amigas..." Mário Soares riu-se muito quando, mais tarde, lhe contei a observação da mulher...

domingo, abril 23, 2017

Declaração de voto

Não pretendo ser original. Em França, vou "votar" contra Marine Le Pen. 

Dos quatro candidatos em real liça (Hamon está, há muito, fora de jogo), Le Pen é, de longe, a mais perigosa. Pelo que representa, pelo que arrasta consigo, pelo seu populismo demagógico, feito de ódio disfarçado, de intolerância e de potencial violência, quando não de ameaça autoritária contra o sistema democrático e, com alguma probabilidade, contra o futuro da nossa comunidade em França. Acresce a disrupção prometida no terreno europeu, que, a ser levada à prática, seria imediatamente catastrófica para nós.

François Fillon é o triste coveiro de uma direita democrática, que se está a afastar do caminho da decência mínima, mimetizando oportunisticamente a agenda da extrema-direita. É uma tragédia para o sistema político francês ver o partido construtor da V República, herdeiro de De Gaulle, titulado por alguém que fugiu à palavra dada e está cercado de acusações desqualificantes de improbidade. Esta direita francesa deixou de ser "republicana", no belo sentido que a palavra por lá tem.

Se eu tivesse hoje a mesma inconsciência que, em 1976, me fez votar Otelo, estaria a fazer figas por Jean-Luc Mélenchon. Nos quatro anos que vivi em França, acompanhei cuidadosamente o seu percurso declaratório. É muito divertido ouvi-lo, é um tribuno "grave", com aquela "indignação" saída "das ruas", que cai sempre bem e absolve as consciências. Pode ter graça "fazer de conta" que aquilo que se proporia fazer se chegasse ao Eliseu iria "mudar o mundo". Mas destruir a Europa. Não vai, felizmente. Os Varoufakis já mostraram que têm os pés bem assentes... no ar! Por cá, o Bloco gosta dele. Está tudo dito! 

Resta Macron? Fillon seria um presidente ferido de morte política, mas a sua eleição não colocaria problemas insuperáveis à continuidade, sem maiores sobressaltos, da gestão da Europa - e essa é a minha última "fronteira". E Le Pen e Mélenchon, por vias diferentes, sê-lo-iam. Provou-o como primeiro-ministro de Sarkozy e há razões para crer que a sua apressada conversão ao credo liberal é mais um estratagema voluntarista de modernidade, a dar-se ares de "reformador". A França "adora" o Estado, à esquerda ou à direita, e a direita é, por lá, desde há décadas, a mais descarada concubina da máquina pública. Com Fillon, os temas de "costumes" teriam uma provável regressão, mas os direitos dos nossos cidadãos ficariam salvaguardados. E isso faz parte da minha "agenda" nesta eleição.

Macron é, no sufrágio de hoje, a novidade. Aquele estilo "kennediano" (com uma "Jacqueline" atípica, concedo...), muito ao jeito de Julien Trudeau no Canadá, do espanhol Alberto Rivera do Ciudadanos, "boyish look" com fácies compensatório, acarreta um receituário de "mainstream" - nem esquerda nem direita, o que, como aprendemos com o filósofo (também francês) Alain, "cheira" sempre a direita. Há por ali muito do "appeal" do "jovem" Giscard d'Estaing dos anos 70, uma mistura do centrismo clássico de Jean Lecanuet com o liberalismo de François Léotard, ambos votados ao histórico fracasso do centro francês (talvez pela mediocridade endémica da democracia cristã local). Macron diz que alguns gostam de ouvir e, como lembrava Pedro Adão e Silva, é hoje candidato do otimismo, um sentimento raro mas mobilizador. E isso pode ser decisivo. Um ponto a seu favor: defende o projeto europeu. É claro que já ouço a voz de alguns amigos: "Mas que projeto?" E eu pergunto-lhes: "O vosso é o de Mélenchon?" "Nej tak", como se respondía à bomba de neutrões.

Sou um possibilista. Não tenho um Jospin em quem possa "votar", um Rocard que me possa mobilizar. O meu "voto" é contra Le Pen, pela ordem que, creio, deixei claro. É um voto no "menor dos males"? É, assumidamente. 

sábado, abril 22, 2017

Pão e circo

É preciso dizer as coisas bem alto, as vezes que forem necessárias: são as televisões, todas elas, os principais culpados - repito, culpados - pelo ambiente de violência acéfala que hoje atravessa o futebol português.

Horas e horas a encharcar-nos com comentários clubistas, com declarações extremadas, com o alimentar de polémicas sobre lances, não revelando o menor sentido de responsabilidade na hierarquização das notícias - tudo isto mostra um mundo televisivo onde o jornalismo é hoje comandado da sala de contabilidade.

O mais irónico é que essas mesmas televisões, que acicatam os confrontos pela criação de um ambiente explosivo ao menor rastilho, são depois os aproveitadores, oportunistas e compulsivos, dos efeitos da violência, das agressões, das proclamações inflamadas, dos desejos de vingança.

O crime compensa?

sexta-feira, abril 21, 2017

Em perspetiva


O mundo entretem-se, por estes dias, a listar as reversões com que Trump confirma a natureza errática da sua política externa, agora entregue, ao que tudo indica, aos militares e àqueles que fabricam aquilo com que estes exercem a sua atividade. Há, porém uma “promessa” que Trump parece determinado a cumprir, em absoluto: pôr de lado qualquer consideração pelas instituições multilaterais, como a ONU, e assumir em pleno que a força é o fator da sua legitimidade, como decorre da arrogância jingoísta com que brinca com o fogo da segurança de todos nós.

Assim, em contagem decrescente para a próxima bomba do império de Mar-a-Lago, dedicamo-nos também a olhar o açambarcamento do poder por Erdogan, que desenha na Turquia, dia após dia, uma evidente “democratura” (ditadura travestida de ditadura), à qual ninguém parece saber como reagir.

Finalmente, as eleições francesa de domingo, mesmo que não conduzam Le Pen ao Eliseu, trazem-nos a trágica perspetiva da extrema-direita poder vir a condicionar fortemente  o futuro de um país sem o qual - diga-se isto com grande clareza - a Europa comunitária deixará de existir como a conhecemos, a curto prazo.

Distraído com estes cenários, o mundo parece estar a esquecer, contudo, a gravidade daquilo que se passa no Brasil.

Ora os últimos dias, nesse lado do Atlântico, trouxeram por ali ao de cima - como nomes, números e datas - aquilo que era um verdadeiro "segredo de Polichinelo": que, desde há décadas, a vida partidária e muitas das grandes figuras do Estado brasileiro eram financiadas ilegalmente pelas grandes empresas. A denúncia titulada pelos principais responsáveis da Odebrecht, a maior construtura do país, abrange quase toda a classe política - de presidentes da República a autarcas, passando por ministros, governadores e deputados. Estamos perante um escândalo de consequências por ora inimagináveis para o futuro do sistema político do país. A menos que o processo venha a ser travado através daquilo que no Brasil se designa sugestivamente por um "acordão", não fica muito claro como é que vai ser possível desatar este nó cego. Alguns pensam mesmo que, perante o descrédito acrescido que estas novas revelações trazem para a classe política, o ambiente começa a estar propício para a emergência de alguém, surgido de fora do sistema, que possa visar a eleição presidencial de 2018, tal como aconteceu no caso de Trump. Como amigo do Brasil (e da sua democracia) preocupa-me que algumas pessoas sensatas que por lá conheço se sintam cada vez mais tentadas a colocar também nos trilhos do futuro poder político algumas figuras militares, tidas como parte da solução. As tragédias podem ter várias roupagens, mas as tragédias fardadas costumam ser mais dolorosas.

quinta-feira, abril 20, 2017

Avenida da Liberdade


O terrorismo já votou. O "quanto pior melhor", que é típico das agendas radicais, já deixou a sua marca de sangue nos Campos Elísios. É preciso resistir à chantagem da cobardia agressora. Se acaso eu estivesse hoje em Paris - e estarei lá para a semana - iria passear naquela que, no dia de hoje, tem de ser a nossa Avenida da Liberdade comum.

Viver fora


Hoje, aqui em Bogotá, lembrei-me de que tenho dois amigos, ambos diplomatas, um português e outro brasileiro, que assentaram arraiais de vida aqui pela Colômbia. Sempre que por aqui venho, tenho os dias tão ocupados que nunca tive tempo para lhes dar um abraço.

Foi a propósito disto que dei comigo a pensar se acaso teria sido capaz, se a ocasião se tivesse proporcionado, de ter ficado a residir numa das várias cidades estrangeiras onde vivi. 

É claro que reconheço que tudo dependeria muito do enquadramento, em especial de ordem material, em que essa estabilização da vida se fizesse. Mas, por melhores que fossem essas condições, confesso não me estou a ver a passar o resto da minha vida numa cidade estrangeira, onde eu também forçosamente me sentiria sempre como tal. É que uma coisa é ser-se diplomata, com esse estatuto e a precariedade cómoda da estada, outra coisa é ser-se um cidadão estrangeiro comum, mesmo que ex-diplomata, a viver para sempre numa sociedade estrangeira.

O que é que eu faria hoje por Oslo, onde teria de ter uma fortuna para aí conseguir viver? Que conhecimentos por lá teria entretanto cultivado? E a falta de sol? Não estou a ver-me por ali.

Os meus amigos angolanos desculpar-me-ão se eu não elaborar sobre as razões por que não me apeteceria nunca viver na Luanda dos nossos dias, talvez as mesmas que levam a que a grande maioria deles viva hoje ... em Portugal. 

Londres é uma cidade ótima para se viver (bem)? Isso é uma evidência e sempre vi a capital britânica como o local estrangeiro onde me sentiria melhor (com ou sem Brexit). Porém, tenho a sensação de que, mesmo que tivesse uma casa em Hampstead (como o meu amigo Hélder de Macedo), ia sentir-me sempre algo isolado. E talvez infeliz.

Depois viria Nova Iorque, talvez a cidade do mundo onde me senti menos estrangeiro, porque ela própria é feita de gentes de várias origens, sob uma lógica comportamental muito simples. Mas acaso gostaria de viver por lá? Talvez em Downtown Manhattan ou no Upper West Side. Mas dar-me-ia bem, naquela babel individualista, sem a vida profissional intensa que por lá tive? Não me parece.

Viena? Nunca por nunca me senti confortável numa cidade onde não falo a língua, fechada sobre si mesma e, agora cada vez mais, sobre o mundo. 

Com uma casa agradável no Lago Sul, é muito fácil viver-se em Brasília (onde, com orgulho, sou um dos poucos estrangeiros com o título de cidadão honorário). Mas teria de me ter saído a lotaria (coisa complicada para quem nunca comprou um bilhete, nunca jogou no Totoloto ou no Euromilhões e não aposta na bolsa) para poder ter uma vida boa na capital brasileira, tão boa que permitisse viajar... para Portugal, como fazem regularmente os meus (muitos) amigos brasilienses. 

Resta Paris e, nesse caso, não tenho a menor dúvida: gosto de passar por lá, almoçar ou jantar com amigos, comprar livros, ver exposições ou espetáculos, "mais c'est tout!" Viver em Paris, para sempre, foi uma ideia que nunca se me colocou.

Não, não viveria nunca, em definitivo, no estrangeiro. Gosto da terra onde nasci, a única da qual posso dizer "cobras e lagartos", coisa que faz parte desta nossa maneira cruel de olharmos para nós próprios, sem termos o sentimento culposo de estar a trair a hospitalidade com que somos acolhidos. Portugal é a "questão que eu tenho comigo mesmo", como disse o O'Neill, mas é onde, sem a menor dúvida, me sinto bem. Ou, para ser mais preciso, onde me sinto melhor.

quarta-feira, abril 19, 2017

Parsons


Um dia de 1989, numa visita ao Brasil, fomos com o José Stichini Vilela a Tiradentes, no Estado de Minas Gerais. Ficámos instalados no Solar da Ponte, da Anna Maria e do John Parsons, seus amigos, um delicioso hotel "de charme" que, à época, era praticamente o único endereço recomendável da região.

A Anna Maria e o John não eram uns proprietários quaisquer. Eram pessoas muito interessantes, intelectualmente ricas, com um "savoir faire" que dava ao local um requinte que se manteve ao longo dos anos e das diversas vezes que por lá passámos. 

Nos anos 70, ambos tinham decidido trocar Londres por Tiradentes, pequena cidade por que se apaixonaram e onde criaram o Solar da Ponte. Não viviam no Solar, habitavam na parte alta da cidade, numa bela casa onde jantámos por mais de uma vez, em conversas infindas, nas quais revíamos os nossos amigos comuns - e tantos eram, desde a Sofia e do António Pinto da França aos expoentes culturais de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo e Guiomar de Grammond, passando pela Tânia e pelo Eros Grau, juiz do Supremo Tribunal, vizinhos do Solar. E alguns outros, porque pertencíamos à "raça" de gostar de fazer amigos.

O John, engenheiro e industrial inglês, tinha-se dedicado à preservação de Tiradentes, "went native" pela localidade, para a qual olhava com um carinho muito próprio. Lembro-me de belas noites quentes em que nos foi mostrar peças da paisagem urbana, que descrevia com carinho, naquele seu insuperável sotaque.

A Anna Maria, uma mulher brilhante e inteligente, era historiadora, viamo-la sempre cheia de projetos, estava ligada à Universidade de Ouro Preto, mas não só. Era uma mulher com a força da natureza e uma alma de entusiasmo, que combinava bem com a serenidade imaginativa do John.

Quem se hospedou no Solar nunca mais terá esquecido daquele sereno chá das cinco (crianças com menos de oito anos não eram ali admitidas, sorry!), servido na ampla sala de cima, um hábito seguramente trazido pela influência britânica do John. 

O John morreu, há pouco mais de um ano. A Ana Maria, que sabíamos doente, acaba de desaparecer, dizem-me agora. 

Espero que o Solar da Ponte permaneça ali por Tiradentes, memória desse casal luminoso, a lembrar o restaurante local, o "Tragaluz", onde, na última ocasião em que estivémos juntos, convidámos a Anna e o John para jantar.

Ócio forçado

Quase dez horas num avião são, para mim, um desafio bem revelador. Desde logo, configura uma desilusão comigo mesmo: não leio as várias revistas que comprei no aeroporto, fiquei muito aquém no consumo da pilha de jornais que trouxe, o livro que tinha para acabar continua quase como o comecei, uma notas para um texto que contava fazer ficaram para a próxima. Depois, foi a tragédia das vitualhas: comecei por abrir um saboroso parêntesis num projeto de redução de exageros culinários que (embora sem grande convicção) trazia esquiçado, porque o menu era magnífico, havia uns alcoóis imperdíveis e só se vive uma vez (e desconfio que esta é a última). Seguiram-se os filmes: sem paciência para coisas deprimentes, idem para comédias idiotas, dei comigo a saltitar entre coisas de forte ação, tiros e carros espatifados, desde que sem sangue - até porque, nesse domínio, já tinha lido o "Correio da Manhã" à saída de Lisboa. Enfim, concluo, se acaso fosse dado a frustrações, teria de sair deprimido por não ter "acertado uma" no meu esforçado planeamento. Como não sou, acabo por gozar comigo mesmo e com a minha recorrente ingenuidade. É que amanhã, quando regressar à Europa, sei que vou fazer exatamente o mesmo, tendo, claro, o mesmo resultado. Não aprendo, ou melhor, vou aprendendo a aceitar-me como sou.

terça-feira, abril 18, 2017

O passado é uma coisa muito séria

Nós, os portugueses, temos uma relação muito curiosa com o passado. País "com História a mais", vimo-la apropriada de forma despudorada pela ditadura, que a utilizou como pretenso fator da unidade nacional que pretendeu forjar em seu reforço, adubando o nosso orgulho nesses tempos da busca das Índias e dos Brasis, espalhando, na passada, "a fé e o império".
O Estado Novo, ao construir a sua narrativa sobre a "gesta" lusitana por mares e terras nunca dantes navegados ou pouco pisados, instilou-nos, parece que para sempre, a ideia mirífica de que o colonialismo português era "menos mau do que o dos outros", de que, ainda hoje, somos "menos racistas" do que as gentes dos restantes países, de que a miscigenação feita foi a prova provada da nossa tolerância, bondade e moderação enquanto povo. A teoria do "bom selvagem" foi, entre nós, substituída pelo mito do "bom civilizador".
No Portugal depois de abril, logo que exorcizadas politicamente as guerras coloniais através da independência das colónias, foi-se instalando subliminarmente, embora já em democracia, uma surpreendente leitura benévola do colonialismo lusitano. Há que perceber por que é que isso foi feito: tratou-se de uma espécie de compromisso para a reconciliação nacional, entre os que, agora já forçadamente por cá, tinham sofrido com o termo do período colonial e os anti-colonialistas, vitoriosos históricos. Essa leitura de compromisso, concessão destes últimos, conviveu sempre mal com exegeses mais rigorosas do normativo que Portugal impôs, ao longo dos anos, na sua dominação colonial, e que nos não deixam muito bem na fotografia (leia-se a obra de alguém como Charles Boxer para se ter uma ideia melhor disto). E, sejamos honestos, nos últimos anos temos assistido ao país (repito, democrático) a dar-se como que absolvido de todo esse passado, procurando esquecer os seus recortes sombrios, desde que a relação com os novos Estados saídos das zonas colonizadas se "normalizasse". Sem ironia: como se o MPLA e a Frelimo fossem os "legítimos representantes" dos escravos acarretados à molhada pelos negreiros para o Brasil.
Não sou um grande fã das "desculpas" históricas, dos arrependimentos no tempo presente por atos no passado, cometidos em contextos diferentes, à luz de valores da época. Mas há alguns limites para esse "relativismo". A escravatura, as desumanidades decorrentes de se não considerarem os negros como pessoas, da mesma maneira que mais tarde os crimes nazis, não podem nunca ser absolvidos através de uma contextualização benévola. Posso assim perceber o que Mário Soares disse sobre o tratamento dado aos judeus ou o discurso do Vel d'Hiv de Jacques Chirac, sobre o miserável colaboracionismo francês durante a ocupação nazi. E não posso senão saudar o que Emmanuel Macron, para surpresa de muitos, disse sobre o colonialismo francês na Argélia.
É nossa obrigação olhar para a frente, falar para as novas gerações, às quais é importante criar "alertas" éticos e humanistas, induzir noções concretas daquilo que fez avançar a História (como as descobertas), mas igualmente das tragédias que isso implicou (como a escravatura). A melhor defesa para tentar garantir Portugal como um espaço de tolerância, de aceitação da diferença, resistente aos cantos das sereiras populistas e radicais é falar do passado colonial abertamente: da genialidade do Infante ou da coragem de Gil Eanes no Bojador, mas também dos massacres de Wiriamu, da Baixa do Cassange ou de Batepá.
Fernanda Câncio, num excelente artigo no DN de ontem (que pode ser lido aqui), intitulado "Fomos sempre tão amigos dos pretinhos", põe o dedo no lugar da ferida onde ela dói mais. Fá-lo a propósito de uma deslocação do presidente da República a Gorée, no Senegal, um dos lugares mais emblemáticos da barbárie escravocrata. E do que ele por lá disse, que escandalizou muita gente, por alguma ligeireza na abordagem que então fez.
A jornalista tem toda a razão e ao presidente da minha República, cujo comportamento neste primeiro ano de mandato globalmente tenho vindo a saudar (com tanta ou mais autoridade quanto não votei nele), não consigo admitir que, ao enveredar por um tema com esta delicadeza, o tenha feito num registo impressionista que não está à altura do homem culto e sabedor que (felizmente) hoje temos em Belém. E que, como pessoa, é indiscutivelmente um homem sensível e humano.
Há uns anos, quando vivia em Paris, ouvi Nicolas Sarkozy fazer, em Dakar, um discurso vergonhoso sobre a realidade africana e o modo como a França (dele) a olhava. Lembro-me de ter então pensado que, se um qualquer dirigente do meu país ousasse um dia dizer aquelas coisas (Sarkozy pronunciaria, anos mais tarde, em Grenoble, infâmias de idêntico jaez, dessa vez a propósito dos estrangeiros e dos franceses "diferentes", na sua mimetização à extrema-direita), eu me sentiria profundamente envergonhado. Não foi nada disso que Marcelo Rebelo de Sousa disse, convenhamos. Muito longe. E, por essa razão, ao contrário de Fernanda Câncio, não fiquei envergonhado. Mas o chefe do Estado de um país talvez "com História a mais", tem de ser muito mais cuidadoso quando olha, no retrovisor, o nosso percurso coletivo. É que o passado é uma coisa muito séria.

segunda-feira, abril 17, 2017

Vacinas

Lá porque há uns anormais que decidem não mandar as crianças à escola, isso não significa que a sociedade, através do Estado, que representa os nossos interesses comuns, não criminalize os progenitores que o não permitem.

O caráter voluntário de certas vacinas, que se justificava num passado em que subsistiam dúvidas quanto à respetiva eficácia, deve ser questionado nos dias de hoje, quando há uma evidência esmagadora sobre a vantagem desse procedimento. Trata-se de defender a saúde pública e, em especial, o interesse das crianças, que são seres humanos com um corpo de direitos próprio, que não são "propriedade" dos pais e, em especial, não podem ser vítimas dos preconceitos destes. Isto tanto é válido para as vacinas como o é para a questão das transfusões de sangue, no caso das "testemunhas de Jeová".

Confesso que não tenho a menor tolerância para este "liberalismo" pateta no domínio da saúde, que põe manifestamente em risco a vida das crianças, como toda a ciência tende a concordar.

A face exterior da América

Comecemos pelo óbvio. Os americanos, nas suas escolhas eleitorais, mobilizam-se essencialmente pela agenda do seu quotidiano interno. Nestes...