Estive ontem numa casa de aldeia, propriedade de uns amigos, perto de Vila Real. Enquanto bebia um excelente vinho do Porto com muita idade, fui passeando os olhos pelas estantes. Naquela casa viveu uma figura local já há muito desaparecida, que eu conhecia apenas de vista, das ruas e dos cafés, nas suas visitas à cidade. Nunca falei com essa pessoa, nem nunca me passou pela cabeça saber dos interesses desse homem. Ontem, em breves minutos, finalmente, "conheci-o".
Olhar uma biblioteca "lida" qualifica bem o seu possuidor. (As bibliotecas "a metro" também "qualificam", valha a verdade). Estava por ali quase todo o Eça, algum Camilo essencial, coisas dispersas de Torga. Mas também Manuel Mendes, um Redol pouco comum e certos dicionários que a mim me "faltam". Havia coisas muito interessantes sobre a República, uma bela edição do Dom Quixote (tenho uma idêntica, mas em estado físico deplorável), enciclopédias básicas e outras sofisticadas, bem como certa ficção estrangeira que era muito popular dos anos 50 a 70. Eram largas centenas de livros, repito, lidos, escolhidos por alguém que tinha evidente critério e saber.
O que aprendi naqueles minutos é que tinha vivido, naquela aldeia e naquela casa, um homem bastante culto, atento ao mundo, que seguramente aproveitava as suas saídas para adquirir o que ia considerando essencial para se alimentar intelectualmente. Imagino mesmo que possa ter sido bem feliz assim.
Julgo conhecer algum desse Portugal, sei de gente parecida, normalmente pessoas com algumas posses e não menos interesses culturais, que compensavam o isolamento desses seus locais de vida, por que haviam optado por alguma herança ou nostalgia telúrica, com a manutenção de uma janela de abertura ao mundo por via dos livros. Viviam em aldeias ou vilórias ou cidades pequenas de província, tinham com certeza tertúlias de café ou amigos com quem "batiam a bola", muitas vezes sobre política, outras sobre as coisas do mundo. Às vezes, até escrevinhavam pelos jornais da província, alguns arriscavam mesmo a sua literatura, alguma versalhada.
As coisas mudaram muito, entretanto. A internet e a televisão empreguiçaram o olhar de muitos, a quem o uso dos livros (e até da imprensa escrita) já diz hoje muito pouco. Não sacralizo o papel, embora eu não o dispense, mas percebo que hoje se pode ter acesso a muito boa (e má) informação praticamente sem recurso a ele. O mundo cultural é incomparavelmente melhor nos dias que correm, as nossas fontes de conhecimento são agora imensas, podemos usufruir de um mar de novidades, a que a facilidade de uso de línguas estrangeiras ajuda a aceder instantaneamente. No passado é que era bom? Nem pensar! Só os néscios melancólicos e sem imaginação podem ver as coisas assim.
Porém, para mim, é sempre muito agradável poder revisitar esse mundo e esse tempo que já lá vai, um Portugal de samarra e botas pesadas, de leituras e conversas à lareira, à volta de um livro ou de um jornal, com um copo e um salpicão caseiro a ajudar a dar felicidade aos dias e às noites em família. Outro Portugal, mas igualmente excelente. Que sorte que eu tive de poder viver ambos!