Pelas historietas que por aqui conto sobre Vila Real, pode retirar-se a impressão errónea de que a vida na cidade de então era divertidíssima, que se passavam por ali tempos interessantes, nesses anos 50 e 60 do século passado, em que vivi por lá, a que se somavam as estadas em férias, já nos anos 70.
Nada disso! Sejamos muito francos: Vila Real era uma seca! Lembro-me hoje de alguns episódios curiosos, mas esses eram "os" escassos momentos em que por ali se abanava o quotidiano. Ao recordá-los, magnifico naturalmente a graça que tiveram, na velha lógica de apenas retermos o que nos foi agradável, às vezes "edulcorando" o passado e os figurantes desses dias. Para a juventude de então - em especial, se comparada com os dias de hoje - a vida na cidade era de uma imensa monotonia.
A consciência disso vinha-nos, de forma muito mais clara, quando volvíamos à cidade em férias, depois da nossa vida se ter transplantado para locais bem mais interessantes e movimentados - como o eram Lisboa, Porto ou mesmo Coimbra. Já habituados a outro ritmo de vida, à diversidade da oferta cultural ou à multiplicidade dos espaços de convivência e lazer, o contraste com a imensa pasmaceira da "Bila" (é assim que os vilarrealenses se referem à sua cidade) era algo angustiante, passados que fossem um ou dois dias, logo que esgotadas as saudades familiares e as conversa com os amigos por lá deixados.
Recordo-me bem de que, nesses tempos, a ânsia pela informação escrita "lá de baixo" (leia-se, de Lisboa) passava a ser imensa. Os semanários (de início, "A Vida Mundial", depois o "Expresso" ou "O Jornal") ou os diários mais apelativos ("Diário de Lisboa" ou "A Capital") convertiam-se em âncoras fundamentais para acompanhar a vida do país ou as coisas do estrangeiro, nesses tempos sem internet, com uma televisão sem opções de diversidade. Os diários vespertinos de Lisboa chegavam invariavelmente à hora de almoço do dia seguinte àquele em que saíam, enquanto que os semanários, se tudo corresse bem, apareciam ao fim da tarde do próprio dia. Tudo vinha, em geral, de comboio - nesse tempo em que a linha do Corgo ainda funcionava. Depois, mais tarde, passaram a vir de "ambulância", umas carrinhas vermelhas dos CTT, que aportavam no alto da avenida.
Da estação, os "rolos" de jornais (que vinham embrulhados em edições de dias anteriores - o que dá razão à frase clássica do jornalismo segundo a qual "no dia seguinte à sua publicação, os jornais só servem para embrulhar peixe") eram transportados até às tabacarias, em motocicletas providas de uma caixa posterior. No período mais relevante para o que aqui importa, quem se encarregava disso era o Fernando Cardoso (o "Choco"), que providenciava a entrega na tabacaria do Bragança, ponto essencial que nos abastecia desse "alimento informativo", essa recarga de baterias "de mundo"...
À volta dessas horas em que se previa a chegada dos periódicos (e o atraso dos comboios parecia ser a regra), alguns de nós pairávamos, quais aves de rapina, nas cercanias do Bragança, passarinhando entre a Gomes e o Santoalha. Éramos acompanhados de uma outra "fauna", a desportiva, estes à cata de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo" e, para alguns impenitentes "andrades", de "O Norte Desportivo", de publicação mais variável. E, muitas vezes, quando a motorizada do "Choco" (um homem encantador, diga-se, que conseguiu em grande parte da sua vida manter a tripla atividade de tasqueiro com petiscos, vendedor de jornais e funcionário do Sport Clube de Vila Real) se anunciava na avenida, já nós estávamos junto ao balcão da tabacaria do Bragança (que funcionava por baixo do cabeleireiro da esposa), de moedas na mão, porque os exemplares que chegavam à cidade eram muito escassos e seria uma verdadeira "tragédia" perder um "Lisboa" e, muito mais, um "Expresso".
A história que aqui lhes trago passa-se num fim de tarde de uma sexta-feira de inverno, com a cidade sob uma chuvada impiedosa. Aí pelas seis da tarde, como era de regra, desci ao Bragança para levantar "O Jornal". O proprietário da tabacaria (figura cuja simpatia não era a principal qualidade distintiva) disse-me que havia um problema na estação de caminho-de-ferro. Aparentemente, "falhara a luz" (coisa vulgar, à época) nessa zona da cidade e, como a estação ia fechar daí a pouco, já não havia hipótese de se esperar "pela luz" para "separar os rolos" dos jornais. "E então?”, inquiri. Indiferente à angústia que me atravessava, o Bragança lançou-me, frio: "Então, só amanhã de manhã!"
Isto representava um "drama" duplo: não apenas não ia ter o semanário nessa noite como, pior ainda!, o jornal ia ser vendido logo de manhã - a minha hora sagrada de sono, em férias. Arriscava-me mesmo, no limite, a não conseguir adquirir nenhum exemplar!
Para grandes males, grandes remédios! Inconformado, zarpei de carro para a estação. Ao chegar à Cardoa, à vista da ponte metálica que dá acesso ao outro lado da cidade - "Gaia", para alguns, como hoje se diz - pude notar o bréu que ia por toda a área, entrecortado pelas luzes de escassos carros, com a escuridão agravada pela chuva que não parava de cair.
À medida que me aproximava da estação, vi à porta um vulto, embrulhado num capote longo, prestes a colocar-se sobre uma motoreta. Era o "Choco", que, seguramente, já desistira de levantar os jornais! Parei ao lado dele, abri o vidro e chamei-o com um berro, por sobre o trotear mecânico da Zundapp: "Senhor Fernando!" O homem estacou. Saí do carro e, num segundo, expliquei o meu "plano": se se abrissem as portas da estação eu, de fora, com os faróis do meu carro nos "máximos", conseguia iluminar suficiemente o balcão das mercadorias, permitindo a separação dos "rolos" dos jornais. A minha generosidade esgotava-se, claro, no produto informativo: estava-me "nas tintas" para a restantes mercadorias...
O "Choco" deve-me ter achado um pouco maluco, mas lá acedeu, dizendo uma frase que nunca mais esqueci: "Se o menino me pede, vamos tentar", avançando para negociar a operação com o "fator de primeira" que estava de plantão às encomendas. (O "menino" era o qualificativo pelo qual ele me tratava desde a infância. Se isto hoje configura tráfico de influências ou não, podemos discutir com o “anjo” Paulo Morais). Enfim, dessa forma, graças aos "máximos" do meu Fiat 128, lá se conseguiu "levantar os rolos".
Conduzindo à frente do "Choco", regressei ao Bragança, que já estava prestes a fechar a loja e a recolher a casa. Alertei-o da iminência da chegada dos "rolos". De facto, instantes depois, a escorrer chuva por todos os lados, lá entrou o Fernando "Choco" na tabacaria, informando um Bragança que não me pareceu nada impressionado: "É aqui graças ao menino que hoje temos os jornais!" O "menino", o matulão que eu era com vinte e tal anos, recolheu o seu preciso "O Jornal" e, de imediato, foi devorá-lo, com um fino à ilharga, do outro lado da rua, na "Pompeia" do Neves, até à hora de jantar.
Vila Real podia ser uma seca! Mas sem "O Jornal", tudo se tornava ainda muito pior!
(A fotografia que tirei há pouco da porta da estação não é de antologia. Mas a luz continuava a ser escassa por ali...)