segunda-feira, março 28, 2016

Para grandes males...


Pelas historietas que por aqui conto sobre Vila Real, pode retirar-se a impressão errónea de que a vida na cidade de então era divertidíssima, que se passavam por ali tempos interessantes, nesses anos 50 e 60 do século passado, em que vivi por lá, a que se somavam as estadas em férias, já nos anos 70.

Nada disso! Sejamos muito francos: Vila Real era uma seca! Lembro-me hoje de alguns episódios curiosos, mas esses eram "os" escassos momentos em que por ali se abanava o quotidiano. Ao recordá-los, magnifico naturalmente a graça que tiveram, na velha lógica de apenas retermos o que nos foi agradável, às vezes "edulcorando" o passado e os figurantes desses dias. Para a juventude de então - em especial, se comparada com os dias de hoje - a vida na cidade era de uma imensa monotonia.

A consciência disso vinha-nos, de forma muito mais clara, quando volvíamos à cidade em férias, depois da nossa vida se ter transplantado para locais bem mais interessantes e movimentados - como o eram Lisboa, Porto ou mesmo Coimbra. Já habituados a outro ritmo de vida, à diversidade da oferta cultural ou à multiplicidade dos espaços de convivência e lazer, o contraste com a imensa pasmaceira da "Bila" (é assim que os vilarrealenses se referem à sua cidade) era algo angustiante, passados que fossem um ou dois dias, logo que esgotadas as saudades familiares e as conversa com os amigos por lá deixados.

Recordo-me bem de que, nesses tempos, a ânsia pela informação escrita "lá de baixo" (leia-se, de Lisboa) passava a ser imensa. Os semanários (de início, "A Vida Mundial", depois o "Expresso" ou "O Jornal") ou os diários mais apelativos ("Diário de Lisboa" ou "A Capital") convertiam-se em âncoras fundamentais para acompanhar a vida do país ou as coisas do estrangeiro, nesses tempos sem internet, com uma televisão sem opções de diversidade. Os diários vespertinos de Lisboa chegavam invariavelmente à hora de almoço do dia seguinte àquele em que saíam, enquanto que os semanários, se tudo corresse bem, apareciam ao fim da tarde do próprio dia. Tudo vinha, em geral, de comboio - nesse tempo em que a linha do Corgo ainda funcionava. Depois, mais tarde, passaram a vir de "ambulância", umas carrinhas vermelhas dos CTT, que aportavam no alto da avenida.

Da estação, os "rolos" de jornais (que vinham embrulhados em edições de dias anteriores - o que dá razão à frase clássica do jornalismo segundo a qual "no dia seguinte à sua publicação, os jornais só servem para embrulhar peixe") eram transportados até às tabacarias, em motocicletas providas de uma caixa posterior. No período mais relevante para o que aqui importa, quem se encarregava disso era o Fernando Cardoso (o "Choco"), que providenciava a entrega na tabacaria do Bragança, ponto essencial que nos abastecia desse "alimento informativo", essa recarga de baterias "de mundo"...

À volta dessas horas em que se previa a chegada dos periódicos (e o atraso dos comboios parecia ser a regra), alguns de nós pairávamos, quais aves de rapina, nas cercanias do Bragança, passarinhando entre a Gomes e o Santoalha. Éramos acompanhados de uma outra "fauna", a desportiva, estes à cata de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo" e, para alguns impenitentes "andrades", de "O Norte Desportivo", de publicação mais variável. E, muitas vezes, quando a motorizada do "Choco" (um homem encantador, diga-se, que conseguiu em grande parte da sua vida manter a tripla atividade de tasqueiro com petiscos, vendedor de jornais e funcionário do Sport Clube de Vila Real) se anunciava na avenida, já nós estávamos junto ao balcão da tabacaria do Bragança (que funcionava por baixo do cabeleireiro da esposa), de moedas na mão, porque os exemplares que chegavam à cidade eram muito escassos e seria uma verdadeira "tragédia" perder um "Lisboa" e, muito mais, um "Expresso".

A história que aqui lhes trago passa-se num fim de tarde de uma sexta-feira de inverno, com a cidade sob uma chuvada impiedosa. Aí pelas seis da tarde, como era de regra, desci ao Bragança para levantar "O Jornal". O proprietário da tabacaria (figura cuja simpatia não era a principal qualidade distintiva) disse-me que havia um problema na estação de caminho-de-ferro. Aparentemente, "falhara a luz" (coisa vulgar, à época) nessa zona da cidade e, como a estação ia fechar daí a pouco, já não havia hipótese de se esperar "pela luz" para "separar os rolos" dos jornais. "E então?”, inquiri. Indiferente à angústia que me atravessava, o Bragança lançou-me, frio: "Então, só amanhã de manhã!"

Isto representava um "drama" duplo: não apenas não ia ter o semanário nessa noite como, pior ainda!, o jornal ia ser vendido logo de manhã - a minha hora sagrada de sono, em férias. Arriscava-me mesmo, no limite, a não conseguir adquirir nenhum exemplar!

Para grandes males, grandes remédios! Inconformado, zarpei de carro para a estação. Ao chegar à Cardoa, à vista da ponte metálica que dá acesso ao outro lado da cidade - "Gaia", para alguns, como hoje se diz - pude notar o bréu que ia por toda a área, entrecortado pelas luzes de escassos carros, com a escuridão agravada pela chuva que não parava de cair.

À medida que me aproximava da estação, vi à porta um vulto, embrulhado num capote longo, prestes a colocar-se sobre uma motoreta. Era o "Choco", que, seguramente, já desistira de levantar os jornais! Parei ao lado dele, abri o vidro e chamei-o com um berro, por sobre o trotear mecânico da Zundapp: "Senhor Fernando!" O homem estacou. Saí do carro e, num segundo, expliquei o meu "plano": se se abrissem as portas da estação eu, de fora, com os faróis do meu carro nos "máximos", conseguia iluminar suficiemente o balcão das mercadorias, permitindo a separação dos "rolos" dos jornais. A minha generosidade esgotava-se, claro, no produto informativo: estava-me "nas tintas" para a restantes mercadorias...

O "Choco" deve-me ter achado um pouco maluco, mas lá acedeu, dizendo uma frase que nunca mais esqueci: "Se o menino me pede, vamos tentar", avançando para negociar a operação com o "fator de primeira" que estava de plantão às encomendas. (O "menino" era o qualificativo pelo qual ele me tratava desde a infância. Se isto hoje configura tráfico de influências ou não, podemos discutir com o “anjo” Paulo Morais). Enfim, dessa forma, graças aos "máximos" do meu Fiat 128, lá se conseguiu "levantar os rolos".

Conduzindo à frente do "Choco", regressei ao Bragança, que já estava prestes a fechar a loja e a recolher a casa. Alertei-o da iminência da chegada dos "rolos". De facto, instantes depois, a escorrer chuva por todos os lados, lá entrou o Fernando "Choco" na tabacaria, informando um Bragança que não me pareceu nada impressionado: "É aqui graças ao menino que hoje temos os jornais!" O "menino", o matulão que eu era com vinte e tal anos, recolheu o seu preciso "O Jornal" e, de imediato, foi devorá-lo, com um fino à ilharga, do outro lado da rua, na "Pompeia" do Neves, até à hora de jantar.

Vila Real podia ser uma seca! Mas sem "O Jornal", tudo se tornava ainda muito pior!

(A fotografia que tirei há pouco da porta da estação não é de antologia. Mas a luz continuava a ser escassa por ali...)                                  

domingo, março 27, 2016

Alain Decaux (1925-2016)


Há mais de seis anos, publiquei isto neste blogue:

O académico Alain Decaux é uma personalidade que gerações de franceses aprenderam a conhecer pela televisão e pela rádio, onde, durante décadas, divulgou a História, com graça e profundidade. Outros reconhecem-no pelas dezenas de livros que publicou sobre essa temática.

Como um dos quinze membros do júri do "Prix des Ambassadeurs", que anualmente atribui o galardão a um escritor francês, autor de um trabalho no domínio histórico-político, tenho o privilégio mensal de ouvir dele os comentários, sempre de grande sabedoria e conhecimento, com que acompanha os relatórios que apresentamos sobre as obras em análise.

Há dias, quando fiz a apresentação crítica ao júri da obra do antigo primeiro-ministro Edouard Balladur, "Le pouvoir ne se partage pas - conversations avec François Mitterrand", todos pudemos beneficiar, com interessantes histórias e comentários a propósito, da excepcional erudição de Alain Decaux, que foi antigo ministro do governo de Michel Rocard e conviveu com François Mitterrand.

É um raro enriquecimento poder usufruir desta interacção com quem andou por mundos que, para nós, fazem já parte da História.

Acabo de saber da morte de Alain Decaux. Era uma personalidade muito agradável, serena, que nos ajudava, com bonomia e indiscutível autoridade, a superar as nossas diferenças e pontos de vista, muitas vezes bem opostos, num júri que debatia obras sobre realidades contemporâneas, nem sempre de leitura unívoca. Devo-lhe a muita paciência que demonstrou em face de certas intervenções mais assertivas que fiz nesses debates. Tenho imensa pena pelo seu desaparecimento.

Um espião falhado

Numa conversa telefónica com um jornalista do "Diário de Notícias", a propósito dos contactos entre diplomatas e espiões, relatei um episódio divertido, de que já quase me havia esquecido, passado em Angola, aí por 1985, quando estava colocado na nossa embaixada em Luanda.

Cuba tinha então uma posição muito importante em Angola, dada a presença de largos milhares de militares que ajudavam o poder em Luanda na guerra civil que o país atravessava. A eles se somavam muitos outros "cooperantes internacionalistas", que prestavam serviço em áreas civis, como a saúde, o ensino e vários outros setores técnicos.

Ao que me recordo, nem o embaixador português nem o seu "número dois" mantinham contactos regulares com a embaixada cubana em Luanda. A esse nível, eventuais encontros teriam um inescapável perfil político, inadequado para as circunstâncias que então se viviam. Assim, essa tarefa estava a cargo de funcionários de nível inferior, como era o caso do meu colega Júlio Vasconcelos e de mim próprio. Cada um de nós tinha um interlocutor cubano, embora não por nossa iniciativa, sempre por aproximações feitas por eles. 

O teor das conversas havidas (como em geral acontecia nos contactos com contrapartes estrangeiros, em especial de países fora das nossas alianças tradicionais) era reportado ao embaixador e, como era de regra, se acaso delas viesse a redundar alguma coisa de interessante, seria depois feita uma comunicação para Lisboa. Tratava-se de uma tarefa de rotina, com a acrescida graça, entre mim e o Júlio Vasconcelos, pelo facto de procurarmos cruzar os discursos dos nossos interlocutores, tentando encontrar-lhes dissonâncias.

O "meu" cubano era relativamente jovem. Negro, muito bem preparado, havia estudado na União Soviética e falava um português magnífico. Nesse tempo, Luanda não tinha espaços "neutrais", como um bar, um café ou outro local onde, discretamente, se pudesse ter uma conversa. No meu caso, o diplomata cubano (que me parecia não ser um "espião" profissional, mas um simples funcionário de carreira) vinha ao meu gabinete, na embaixada, sempre que queria conversar. Nunca me passou pela cabeça ir à embaixada de Cuba. 

As conversas tinham um "menu" pouco variado. Ele procurava obter a minha leitura sobre a situação político-militar, sobre o estado das nossas relações com Angola, sobre incidentes ou operações militares que houvessem sido divulgados e, aqui ou ali, sobre a evolução da situação política internacional. Naqueles tempos algo pesados de Luanda, aquele era um exercício interessante, em que o cuidado por parte dele era muito maior do que da minha parte, comigo sempre a dar-me ao luxo de uma abordagem mais aberta e mais ousada. Porém, embora a minha memória seja bastante boa, não retenho dessas conversas um único episódio ou revelação que tenha por significativo. Exceto um pequeno incidente.

Um dia, tive uma ideia que não correu muito bem. Recebi-o, comigo sentado à secretária, ele numa cadeira em frente. Como o meu gabinete não tinha sofás, essa era a logística natural. A má ideia foi eu ter decidido colocar sobre a mesa, em frente a nós, uma caixa (ou um envelope, já nem sei) de cartão, dentro do qual estava um pequeno gravador, que acionei uns segundos antes da chegada do diplomata cubano. Era uma maneira, pensava eu, de poder ser depois mais preciso no relato que faria da conversa.

Esta decorreu com toda a normalidade, por largos minutos (talvez demasiados...), até um certo ponto. De repente, de dentro do invólucro, ouviu-se aquilo que soou como um breve apito, seguido de um saltar da patilha de gravação. A situação não oferecia o menor equívoco e o meu interlocutor deve ter logo percebido de que estava a ser gravado.

No que me toca, imagino que devo ter ficado bem aflito! Recordo-me de ter aumentado a voz, na ingénua tentativa de cobrir o ruído. Mas era tarde, nada feito! Nenhum de nós se referiu ao assunto, embora a naturalidade com que a nossa troca de impressões estava a decorrer se tivesse alterado, pela mútua consciência de que algo de estranho se tinha passado. Ele teve a elegância de não abordar o incidente, eu fiquei "encavacado" e devo, por instantes, ter perdido toda a naturalidade.

Minutos depois, o cubano despediu-se, tendo-o eu acompanhado à porta. Devo dizer que eu não estava nada orgulhoso do "espetáculo" que, involuntariamente, a minha falta de cuidado "técnico" havia criado. Nunca mais esse cubano me voltou a contactar e só lamento que ele possa ter ficado com má impressão dos "espiões" portugueses...

sábado, março 26, 2016

"Evasões"


Em anexo do "Diário de Notícias" de ontem, sexta-feira, foi distribuída a revista "Evasões", que insere um guia sobre a "terra fria" transmontana que vale a pena guardar.

Neste número da revista, publico mais uma avaliação gastronómica sobre um restaurante, desta vez lisboeta, que também poderá ser consultada aqui.

sexta-feira, março 25, 2016

A Oeste nada de novo?


À exceção de algumas vozes mais inquietas, às vezes tidas como Cassandras, a questão da onda terrorista que assola a Europa parece coisa estrangeira aos olhos da maioria dos nossos concidadãos. Deteto mesmo, passada a solidariedade de regra para com as vítimas, algum saloio contentamento mercantilista, pelo facto de continuarmos a consagrar-nos como beneficiário turístico da confusão instalada a Leste deste “luso-paraíso”.

O PM português, que de outras andanças governativas conhece bem este tema, disse algo que alguns fingiram não ter percebido: que por cada ataque terrorista que tem lugar, muitos outros são evitados. É que, não fora o trabalho policial e de investigação realizado, a situação seria hoje muitíssimo mais grave, face à complexa e insidiosa natureza do radicalismo islâmico

A nossa segurança como país não pode basear-se na ideia de que a perifericidade geográfica nos protege ou de que o rácio religioso interno nos conforta. A segurança está sempre longe de ser um dado adquirido: uma bomba num aeroporto ou numa escola é passível de ocorrer entre nós, face a esta guerra de fins que não olha a meios. De um dia para o outro, a leitura de interesses dos radicais pode vir a enviezar-se em nosso detrimento – e então passará a ser demasiado tarde prevenir. E o risco de isto acontecer é tanto maior quanto as nossas fragilidades securitárias forem mais evidentes.

Neste esforço de proteção, desempenham hoje um papel fundamental os serviços de informação. Por isso, e atento o caráter transfronteiriço dos grupos que nos trazem ameaças, uma cooperação eficaz entre eles é essencial. 

Ora é sabido que Portugal, neste domínio, já tem revelado grandes fragilidades, como o demonstra o facto de terem conseguido ascender a lugares de topo dessas estruturas verdadeiros “cowboys”, cujas aventuras afetaram a credibilidade dos serviços, retraindo a abertura à partilha informativa por parte dos congéneres mais relevantes.

Espero que o senhor presidente da República, que transmite sinais de se não querer furtar a dar às grandes questões de Estado uma atenção com público destaque, possa também induzir em todos os agentes políticos um forte sentido de responsabilidade neste âmbito específico. 

Em particular, importa garantir que os nossos serviços de informação venham cada vez mais a estar preservados das lutas de poder, nomeadamento no quadro da patusca conflitualidade entre as sensibilidades dos ritos organizados, os quais, por um insondável mistério, cuja lógica sempre me escapou, parece terem obtido, desde há muito, um direito natural de tutela e influência neste setor.

quinta-feira, março 24, 2016

Desonestos ou burros: escolham!

Ontem, publiquei um post em que ironizava, como tanta gente tem feito, pelo facto de Pedro Passos Coelho se passear por aí em pose de "primeiro-ministro". E, para tal, brinquei com o facto de Salazar ter, por algum tempo, julgado ocupar ainda o cargo de chefe de governo. 

O que sucedeu depois? Um bando de patetas - desonestos ou burros, eles que escolham! - desatou, em periódicos, blogues, facebook ou twitter, a afirmar que eu tinha "comparado" Passos Coelho a Salazar. Daí a terem "deduzido" que eu chamara "fascista" a Passos Coelho foi um curto passo. 

Quando o sectarismo se liga à iliteracia, com uns pozinhos de má fé, a combinação fica irresistível.

Costumes


Ontem, numa conversa, um convicto vilarrealense adotivo, nascido lá para o centro do país, dizia-me temer que a abertura do túnel do Marão, ao facilitar os acessos, venha a afetar a magnífica segurança de que a cidade hoje dispõe.

Com efeito, a criminalidade, em matéria de roubos ou de furtos, que por aqui às vezes se verifica, é quase sempre produto de "know-how" importado. Para reforçar a sua ideia, o meu interlocutor referiu que, atualmente, a polícia local sabe bem o que fazer, quando ocorrem pequenos delitos: "A polícia vai logo à procura dos cinco ou seis do costume". 

Não consegui deixar de me lembrar da celebérrima frase do capitão Renault, na cena derradeira do  "Casablanca", no "princípio de uma bela amizade" com Rick: "prendam os suspeitos do costume!"

Carlos Cruz, o terrorismo e "A Bola"


O antigo apresentador de televisão Carlos Cruz apresentou ontem em Lisboa umas memórias. Pelo que me foi dado ver, a questão da candidatura portuguesa ao campeonato de futebol Euro 2004 está a converter-se num dos temas polémicos suscitados pela obra. Também eu tenho uma pequena história relacionada com Carlos Cruz (pessoa que não conheço), com o Euro 2004 e, curiosamente, com o terrorismo, de que agora, e por más razões, tanto se fala.

Numa manhã, creio que em 1999, andava Portugal em campanha pela Europa, para garantir que a realização do Euro 2004 pudesse vir a ser atribuída ao nosso país, deparei com uma declaração da figura de proa da nossa candidatura, Carlos Cruz, que procurava valorizar Portugal face a outro concorrente, a Espanha. O apresentador feito promotor, com uma sensibilidade diplomática abaixo de zero, comentava que a Espanha não era um adversário com um mínimo de credibilidade, porquanto era um país "com terrorismo", o que desqualificava como cenário de provas desportivas internacionais.

A Espanha vivia então assolada regularmente por atos de terrorismo, face aos quais a prudência e a solidariedade de um vizinho como Portugal era o mínimo que deveria ser-lhe concedido. Surgir alguém ligado a uma candidatura oficial portuguesa com um discurso como o de Carlos Cruz era um "faux pas" imenso.

Era uma quinta-feira, recordo, porque tinha lugar um Conselho de Ministros. Antes dessa reunião, dei a conhecer a António Guterres e Jaime Gama o teor das infelizes declarações de Cruz. Elas já haviam provocado, em Madrid, uma reação irada do secretário de Estado espanhol para o Desporto, que fora ao ponto de anunciar que o governo espanhol estudava o envio de um protesto ao executivo de Lisboa, de repúdio pela inconveniência dos propósitos de Cruz. Acrescia que, semanas depois, iria ter lugar uma Cimeira Luso-Espanhola e este incidente, a ser explorado, converter-se-ia necessariamente no "issue" do encontro. Guterres e Gama entenderam, num segundo,  o potencial disruptor do tema e encarregaram-me de tentar "congelar", de imediato, o assunto. Este trabalho de "trouble shooter" situava-se precisamente na charneira entre o diplomata e o político que era o meu papel no governo.

Telefonei ao embaixador espanhol em Lisboa, Raúl Morodo, e pedi-lhe que tentasse evitar a "nota verbal" que o excitado governante espanhol anunciara. Morodo é um "gentleman", um bom amigo de Portugal e de muitos portugueses, entre os quais eu tinha o gosto de me incluir. Percebeu, com rapidez, o potencial de acidez que estava prestes a ser criado e prometeu-me intervir, ajudando ao "dammage controle".

No dia seguinte, numa chamada para o meu chefe de gabinete, pediu que me fosse transmitido que o assunto estava definitivamente sanado. Avisei Guterres e Gama e nunca mais me preocupei com o tema.

Passaram largos meses. Um dia, estava eu na República Checa, numa visita de trabalho, recebi a indicação, através do assessor de imprensa do MNE, Horácio Cesar, de que estava instalada na nossa comunicação social uma imensa polémica em que o meu nome era envolvido.

O secretário de Estado dos Desportos espanhol, que estava em Lisboa a convite do seu homólogo português, perguntado sobre se ainda subsistia em Espanha algum ressentimento pelas declarações de Carlos Cruz, proferidas meses antes, referiu que, para Madrid, o assunto estava, há muito, encerrado porque, entretanto, "o secretário de Estado dos Assuntos europeus de Portugal já havia apresentado, em devido tempo, as desculpas formais portuguesas ao governo espanhol, através do respetivo embaixador em Lisboa". 

O que ele foi dizer! Carlos Cruz veio logo a terreiro afirmar que não admitia ser "desacreditado" pelo governo, ameaçando demitir-se da organização da candidatura. José Sócrates, ministro da tutela, e Miranda Calha, secretário de Estados dos Desportos, fizeram de imediato declarações desdramatizantes mas, como é natural, remeteram o assunto para eu esclarecer. Portugal pedira ou não "desculpas" a Espanha? O governante espanhol mentia ou tinha razão?

Recordo ter dito, creio que à "Lusa", que a minha anterior intervenção não configurava um qualquer "pedido de desculpas" a Espanha. Tinha-se tratado apenas de um esclarecimento, junto do embaixador espanhol em Lisboa, de que o governo português não se revia nas palavras ditas por Carlos Cruz. E reiterei essa posição.

Não retive muito pormenores do que se passou depois. Creio que Cruz não "se ficou", prestou mais declarações, mas ficou na candidatura. Eu, entretanto, regressei a Lisboa, nessa noite. Na manhã do dia seguinte, a caminho do meu gabinete, dei uma vista de olhos à pilha dos jornais, para verificar como é que o assunto fora abordado. Não traziam nada de especial, pelo que deduzi que a questão acabava ali. 

Tocou, entretanto, o meu telemóvel. Era um amigo: "Já viste os jornais? A tua polémica com o Carlos Cruz dá-te duas capas!". Essa agora! Eu tinha a imprensa ali ao meu lado, não trazia nada! Erro meu: "A Bola" e o "Record" ofereciam a primeira página à polémica. O meu amigo, homem atento ao desporto, não deixou de acrescentar: "Deve ser a primeira e a última vez na vida que fazes manchete nos jornais desportivos".

Ele tinha razão. Lembrei-me disso ontem, ao ver a cara de Carlos Cruz, agora noutras atribulações bem mais complexas. O que trará hoje "A Bola" sobre o assunto?

quarta-feira, março 23, 2016

A entrevista de Passos Coelho ao "L'Aurore"

Algures em 1969, António de Oliveira Salazar, o ditador derrubado pela doença e entretanto substituído por Marcelo Caetano, mantinha-se a viver na residência oficial de S. Bento. Por um lapso inexplicável, atenta a redoma censória e de vigilância do regime, um jornalista do diário francês "L'Aurore" teve acesso ao debilitado antigo chefe do governo e recolheu uma entrevista que ficou célebre no mundo (por cá, foi proibida). Nela, Salazar revelava estar convencido de que ainda exercia funções governativas, ficando-se a saber que alguns ministros se prestavam ao piedoso teatro de "ir a despacho", para alimentarem a ilusão do antigo ditador.

Nas últimas semanas, a avaliar pela coreografia do dr. Passos Coelho, com a bandeirinha na lapela dos tempos do "governo de Portugal" e a fazer inaugurações em autarquias de amigos, fica-se com a sensação de que terá sido afetado pela síndroma do seu longínquo antecessor. Algum antigo ministro ainda irá "a despacho", para lhe atenuar o desgosto da perda do poder para a "geringonça" - que devia durar apenas uns dias, mas que, afinal, é mais resistente do que parecia ser? 

Teria graça ver o antigo primeiro-ministro entrevistado pelo "L'Aurore", para percebermos se, tendo ele saído definitivamente de S. Bento, S. Bento já saiu dele. 

O tempo é implacável. O "L'Aurore" já não existe, desde há já bastantes anos. Da mesma forma que o primeiro-ministro Passos Coelho já não existe, desde há já cada vez mais meses. Ele saberá?

(Reparei agora que o site informático de um periódico diz que "comparei" Passos Coelho a Salazar, como se a analogia irónica que fiz quisesse significar que estava a equiparar um político democrático a um ditador. A capacidade saudável de entender o humor continua, infelizmente, muito distante deste país.)

terça-feira, março 22, 2016

Aquele olhar

O carro ia lentamente, as mulheres árabes atrasavam o passo, na travessia das ruas, sem nos fixar, como se quisessem testar a nossa ousadia, ao entrar por aquele bairro esmagadoramente muçulmano, em Roubaix, no norte de França, no caminho para a Associação Católica dos Portugueses, nessa manhã de há pouco mais de cinco anos.

Naquela que é uma das zonas francesas mais deprimidas, o desemprego é brutal, com uma elevadíssima taxa de desocupação dos jovens - os "gardiens des murs", como, com trágica ironia, se dizia na Argélia, antes dos "évènements" - e uma economia sem perspetivas. Dali sai gente para o Estado islâmico, por ali a insegurança fez subir em flecha os votos do Front National, nos anos seguintes.

Foi então que o vi sair subitamente da parede onde estava encostado, atravessando do passeio para a rua. Era jovem, vinte e poucos anos, argelino de traços, francês de nascença, por certo. Parou à frente do meu carro, que ia devagar, e estacou. Interpelou-me em silêncio. Atravessou-me com um olhar que não me pareceu de ódio, mais de desprezo ou talvez sobranceria. Ou de um imenso cansaço, de nada ter para fazer. Fixei-o de frente, sem mostrar receio, mas também sem o desafiar, procurando, essencialmente, não lhe dar a sensação de que, também eu, me interrogava sobre se devia andar por ali. Quando ele se assegurou de que, por sua exclusiva causa, eu suspendia por completo a marcha, retomou a travessia, indiferente, talvez em direção a uma nova parede onde se encostar.

Tenho andado por muitos anos por alguns mundos, testei bem o que é a diferença, habituei-me profissionalmente a viver e a conviver com ela. Mas, confesso, raramente deparei com um olhar que me fizesse sentir mais estrangeiro, no seio da minha Europa, do que o daquele jovem árabe, muçulmano, naquele periferia triste de Roubaix.

Lembrei-me dele hoje, ao ouvir as notícias de Bruxelas. Que não fica longe.

Livros & conversa

Há ocasiões em que somos convidados para jantares agradáveis, com conversa boa, ambiente solto e descontraído, com histórias e pessoas interessantes. Não são muito frequentes essas ocasiões, às vezes cumuladas com excelente comida.

Imaginemos agora que, no termo de um desses momentos simpáticos, cada um dos presentes nos oferecia um livro? Já pensaram o prazer que poderíamos retirar de um jantar desses?

Pois é verdade! Aconteceu-me na noite de ontem. Um grupo de mais de uma dezena de editores convidou-me para um jantar, sem agenda, apenas para um "bom papo", como dizem os brasileiros, sobre tudo e sobre nada, com muitas gargalhadas e evocações pelo meio. E, no final, cada um deles ofereceu-me um produto da lavra da sua editora. Para quem gosta de livros e de conversa, pode haver coisa melhor?

segunda-feira, março 21, 2016

Notícias do granizo

Hoje de manhã, bem cedo, ouvi no rádio do carro: "Espera-se trovoada e granizo, com temperatura de 10°". Lá fora, brilhava o sol. Olhei o termómetro do automóvel: 13,5°. Dei comigo a pensar: "Estes meteorologistas são uns nabos..."

Durante anos, não acreditei muito nas previsões climáticas. A desculpa do "anti-ciclone dos Açores" pareceu-me sempre um alibi serôdio para que pudessem dizer uma coisa e vir a acontecer outra. Ou, então, para que "desse para tudo": "céu geralmente limpo ou pouco nublado, às vezes muito nublado, com possível ocorrência de aguaceiros, com ventos moderados a fortes". Assim, também eu!

(Faziam-me lembrar aquele tipo de diplomatas que, perante uma eleição, informam assim as capitais: "todas as previsões apontam para uma vitória clara das forças conservadoras, eventualmente reeditando mesmo a anterior maioria. Porém, atendendo às movimentações que têm vindo a processar-se nas últimas semanas, com uma forte agitação de setores sociais relevantes nesta sociedade, não devemos excluir uma reviravolta política à boca das urnas, quem sabe mesmo se com uma inesperada vitória maioritária da esquerda". Um dia, ao tempo em que estava no governo, o MNE recebeu uma "previsão" destas, de um espertalhote em posto. Respondi-lhe, assinando pessoalmente (é raro um membro do governo assinar uma comunicação deste género), com um singelo: "Muito se agradece a clarividente previsão política de Vexa". Amuou, disseram-me.)

Hoje à tarde, tive de refugiar-me debaixo de um viaduto, em face da violência da tempestade de granizo. Olhei para a temperatura: 10°! O serviço que agora pomposamente se chama "do Mar e da Atmosfera" (que mal tinha "Serviço Meteorológico"?) tinha acertado em pleno. "Chapeau!"

Cuba e os "yankees"


Há algumas horas, ao ver Obama descer do Airforce 1, reparei na cara conhecida que o recebia na pista (de óculos, sorridente, atrás de Obama, na foto). Era o ministro dos Negócios Estrangeiros de Cuba, Bruno Rodriguez.

Bruno foi meu colega em Nova Iorque, quando fui embaixador junto da ONU. Estabelecemos então uma ótima relação, idêntica à que sei que tinha com o meu antecessor, António Monteiro, e provavelmente, com colegas que me sucederam - porque sei que esteve muito tempo nas Nações Unidas. 

Devo dizer que, em todos os países onde servi - da Noruega a Angola, do Reino Unido ao Brasil e a França, bem como em instâncias internacionais - criei sempre com os diplomatas cubanos um bom entendimento. Portugal era olhado por eles, e com razão, como um "honest broker", um país que, sem prescindir dos princípios que lhe competia defender na ordem internacional, tentava sempre encontrar pontos comuns e atenuar desnecessárias tensões. A diplomacia cubana era muito militante, mas o toque tropical e latino tornava-a bem mais agradável do que a do antigo centro e Leste europeus. O caráter detestável do seu regime, em matéria de Direitos do Homem e democracia, acabava por ser atenuado pela simpatia e cordialidade de muito dos seus diplomatas. A diplomacia é também isto.

Poucos meses depois de chegar a Nova Iorque, e ter sido eleito para a vice-presidência do Conselho Económico e Social (ECOSOC), fui aproximado pelo meu colega do Reino Unido, que ia deter dentro em breve a presidência do Conselho de Segurança, pedindo a minha ajuda para se organizar uma ação conjunta entre esse órgão e o ECOSOC. Seria uma jornada de um dia, já não recordo sob que temática, que se me afigurava relativamente neutral e até interessante. Perguntei-lhe se a China estava de acordo, porque o peso do G77 (grupo de países do Sul, onde a voz de Pequim era influente) era essencial. Garantiu-me que sim, que todos os cinco membros permanentes não criariam dificuldades. Achei "fruta a mais", mas falei com o colega camaronês que presidia ao ECOSOC e obtive luz verde para avançar.

As primeiras sondagens tornaram-me otimista. Procurei o colega iraniano, que tinha considerável poder de mobilização para um potencial bloqueio no G77, que, sem mostrar grande entusiasmo, disse que, por ele, não objetaria. Mas advertiu-me: "Não faças nada sem falar com o Bruno!" E lá fui à procura do simpático cubano. Na semana anterior, tivera-o a jantar em casa com a mulher. Achei que estava "no papo". Pois isso!

Bruno Rodriguez foi encantador, como sempre, começando por me dizer, com aquela memória de elefante que se cria no mundo multilateral: "Sabes que essa ideia já não é nova?" Eu não sabia. "Mas tens alguma coisa contra a iniciativa?", perguntei-lhe. Expliquei que a temática me parecia inóqua, que os restantes membros permanentes não pareciam ir criar dificuldades, que alguns "key players" do Sul que já tinha contactado também não objetariam. Porém, a influência de Cuba no G77 era grande, pelo que precisava do seu apoio.

Bruno olhou para mim, para a minha "naïveté", e disse-me: "Tens de perceber que não é o tema a tratar que interessa, porque o que importa é quem o propõe. Se essa iniciativa vem dos britânicos é porque interessa "a los yankees" e, Francisco, se a ideia interessa a Washington não nos interessa a nós. E posso assegurar-te uma coisa: os americanos fariam o mesmo, se fôssemos nós a ter a iniciativa. Só que nós nunca o faríamos, porque consideramos importante que o ECOSOC fique imune às iniciativas do Conselho de Segurança, em especial se vindas de certos países. Por isso, tenho muita pena, mas não podes contar com o meu apoio". E a ideia foi "por água abaixo". Quando expliquei, com pena, ao meu colega inglês que não pudera ser-lhe útil, fiquei com a sensação de que não estava à espera de outra coisa...

Ontem, lá estava Bruno na pista, a receber o "yankee". Terá mudado entretanto alguma coisa na ONU?

domingo, março 20, 2016

Obama em Cuba

Confesso que ver Obama chegar a Cuba fez-me ganhar o dia.

Obama far-me-ia ganhar o ano se tivesse a coragem de cumprir a sua promessa - de há quase uma década! - de encerrar a prisão de Guantánamo (que fica em território cubano, para quem se possa ter esquecido), onde jazem ainda largas dezenas de prisioneiros, sem qualquer acusação, fruto de uma legislação dita "de exceção", prolongada para além de tudo quanto é admissível num país que se afirma líder do "mundo livre"

sábado, março 19, 2016

O beija-mão papal

Não tem qualquer sentido a crítica feita ao presidente Rebelo de Sousa (tenho de me habituar a escrever assim...) por este ter sido visto a beijar o anel do papa, na sua visita de cortesia ao chefe da igreja católica.

A neutralidade religiosa da República não é minimamente afetada pelo facto do titular da chefia do Estado ter uma reverência, em consonância com a sua posição pessoal de católico (idêntica, aliás, à da esmagadora maioria do povo português), na presença do chefe dessa igreja. 

Ou será que o chefe do Estado, quando um dia estiver numa cerimónia religiosa em Portugal, não pode benzer-se, porque com isso pode ofender os portugueses que o não são? 

A mim, que sou ateu, isso nada me afeta.

Espiões e diplomatas

Teriam imensa graça, não fora a confusão que a publicação pode causar em leitores menos avisados e mais dados às teorias do "complot", os artigos que, na passada semana e hoje, o "Expresso" traz sobre o conhecido "arquivo Mitrokhin". Nele se reeditam notas de espiões soviéticos, ao tempo da Guerra Fria, sobre contactos com figuras portuguesas, nomeadamente diplomatas. Não falo por outras profissões, nem quero absolver ninguém (particularmente quem nunca foi acusado de nada), mas só quem não conhece os meandros da vida internacional pode ficar (aparentemente) surpreendido pela circunstância de ter havido contactos e conversas entre diplomatas e funcionários (também acreditados como diplomatas) dos serviços secretos de países "de Leste" (soviéticos e não só), a cujas notas, curiosamente, é dada uma estranha credibilidade, na tentativa ávida de encontrar algum escândalo. Como se vê pelo que foi publicado, e na esmagadora maioria dos casos, "a montanha pariu um rato"... Porém, infelizmente, na velha lógica medíocre de que "não há fumo sem fogo", alguma insídia se instalará sempre, o que é triste. Desde logo, para a dignidade do "Expresso".

Ora estas coisas são, em geral, bem simples. Também eu, ao longo dos anos, em especial nos primeiros tempos da minha carreira, fui aproximado por "diplomatas" deste jaez, oriundos de países de Leste. Nunca rejeitei esses contactos, até lhes achava graça, tendo, como regra essencial, reportá-los, com toda a naturalidade, aos embaixadores com quem trabalhava. As "conversas" eram sempre as mesmas: a nossa avaliação sobre a situação política do país onde estávamos colocados, tentativa de obter a nossa leitura pessoal sobre a vida internacional, comentários sobre as embaixadas e funcionários das missões dos grandes países ocidentais no país, a nossa visão sobre algumas figuras políticas locais, etc.

Recordo-me bem, um dia, em Oslo, na Noruega, ter conhecido, num evento social, um funcionário da embaixada da URSS, aí por 1981 ou 1982. Trocámos cartões e, uns dias depois, telefonou-me para me convidar para almoçar. O local, se bem me lembro, era sinistro: um mau restaurante chinês (!), perto do estádio de Bislet. A nossa mesa era ao fundo, numa zona escura da sala. A conversa foi normal, para aquele estilo de contactos. A certo ponto, o meu anfitrião, numa tentativa de criação de cumplicidade, perguntou-me: "O que é que diria o seu embaixador se nos encontrasse a almoçar aqui?". A resposta tê-lo-á desiludido: "Teria curiosidade em que eu o apresentasse, porque lhe disse que vinha almoçar consigo...".

Tempos mais tarde, convidei esse diplomata soviético e a mulher para jantar em minha casa. Havia outros convidados, mas não lhe disse. O casal russo foi o primeiro a chegar e, como grande parte da sala em que estávamos era visível da rua, vi-o discretamente tentar fechar um pouco mais uma das cortinas... Mas a maior surpresa - para ele e não só - estava ainda para vir. Minutos depois, foram chegando os dois casais que faltavam. Foi um "espetáculo" digno de se ver, à medida que se cumprimentavam. Todos eles já se conheciam: eram os "espiões" dos Estados Unidos e da França! Nenhum deles se assumia como tal, pelo que, formalmente, não podiam "queixar-se" do inusitado daquele encontro. Eu tinha boa relação com todos, mas tê-los juntado num jantar era uma evidente (embora subliminar...) provocação. O decurso do jantar foi um tanto "estranho", devo confessar, mas eu diverti-me imenso!

Desde esse dia, o russo desapareceu-me de cena. O francês agradeceu, no dia seguinte, com um cartão neutro. O americano, com quem eu tinha a melhor relação, telefonou-me - num tom entre o divertido e o perplexo - a agradecer a ocasião: "Very nice party! And what a group of guests!" Limitei-me a responder: "I knew you would like it!". E acabámos às gargalhadas...    

"Olhar o Mundo"



Durante este fim de semana, todos os canais da RTP emitem mais uma edição do programa de política internacional "Olhar o Mundo".

Nesta edição, falo com António Mateus sobre a crise política brasileira, a estratégia russa no Médio Oriente, a política externa chinesa, o surgimento dos ficheiros de jihadistas, a chegada do terrorismo à Costa do Marfim, as dificuldades de Angela Merkel depois das recentes eleições estaduais, a instabilidade que atravessa a Turquia e o acordo entre Ancara e Bruxelas, as incógnitas no poder angolano, a crise superada na CPLP, a "saga" governativa em Espanha, as tensões em Moçambique e, naturalmente, o estado da arte nas presidenciais americanas.

Pode ver o programa aqui.

sexta-feira, março 18, 2016

"Portugal no Mundo - Um debate inadiável"


No jornal "Público" de hoje surge um artigo coletivo, sob o título "Portugal no Mundo - um debate inadiável".

Subscrevem-no o antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, o presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal, João Costa Pinto, os economistas e professores universitários João Ferreira do Amatal e José Manuel Félix Ribeiro, o jurista e diretor da Culturgest, Miguel Lobo Antunes, e eu próprio.

Trata-se do resultado de uma reflexão alimentada por um grupo que, desde há vários anos, promove análises sobre os problemas do país, o mesmo que publicou, há meses, um texto sobre a reforma da Administração Pública e tem levado a cabo a organização de várias jornadas de debate.

Neste caso, é um texto sobre o nosso futuro como país face ao mundo e, muito em particular, face à Europa. O artigo reflete sobre opções que foram feitas, sobre as condicionantes existentes, apelando a um debate, aberto e sem tabus, sobre alguns dos caminhos possíveis para o nosso destino coletivo, adiantando algumas pistas e procurando suscitar a novas ideias.

Pelo facto de não ser ainda possível fazer um link para o jornal, coloquei por ora o texto num outro suporte onde pode ser consultado.

Fundação Mário Soares

Foi há 20 anos. Recordo-me muito bem do dia em que, acompanhado por José Mariano Gago, atravessei pela primeira vez as portas da recém-criada Fundação Mário Soares. Estávamos nos primeiros dias de uma instituição que, ao longo destas duas décadas, prestou um serviço muito importante ao país, em especial no trabalho da memória cívica. Passei por lá muitas vezes, para colóquios, para exposições, para lançamento de livros. Ou, muito simplesmente, para falar com um amigo que se chama Mário Soares.

Ontem, estivemos por lá muitos, amigos e admiradores do antigo presidente, mas também cultores da obra da Fundação, a saudar estes 20 anos da sua atividade. Mário Soares não pôde estar connosco, mas todos sentimos que o seu espírito andava por ali. Foi muito graças ao seu entusiasmo e constante empenhamento que foi possível manter e desenvolver uma estrutura que também vive muito do voluntarismo militante de alguns. Acho que todos os que ontem por ali estivemos tínhamos a consciência da importância de contribuir para que esta obra continue a assegurar, em pleno, a sua continuidade.

Dentre os vários amigos que trabalham e dão alento à Fundação, permito-me deixar uma palavra muito especial à Osita Eleutério, pelo seu entusiasmo, pela sua dedicação e, acima de tudo, pela sua insuperável lealdade.

Já perceberam?


A implosão da Síria e a instabilidade crescente em países da região provocou um imenso fluxo de refugiados em direção à Europa, que veio a somar-se ao tropismo migratório de natureza económica que o caos líbio acentuara. Os Estados da UE que se situam mais próximos desse espaço geográfico foram, pela ordem natural das coisas, os primeiros alvos dessas deslocações populacionais. 

Enquanto esses fluxos se mantiveram em níveis razoáveis, esses Estados foram lidando com essa realidade de uma forma que era comportável nos quadros normativos a que se sentiam obrigados, nomeadamente à luz dos compromissos externos que os vinculavam..Quando a dimensão desses movimentos migratórios aumentou, e na ausência de uma resposta coletiva europeia coerente, alguns desses países revelaram-se incapazes de preservar uma atitude de partilha das responsabilidades coletivas, remetendo-se a lógicas nacionais, às vezes marcadas pela prevalência, no seu tecido político, de forças xenófobas. 

A atitude coletiva europeia passou, a partir de certo momento, a ser desordenada, quase casuística, alternando tempos de afirmada generosidade com outros de retração protecionista. Para um observador comum, a posição da UE acabou por ser lida como uma mera navegação à vista, uma tentativa de ganhar tempo e aceitação nas suas opiniões públicas, esperando, quiçá ingenuamente, que uma atenuação dos conflitos travasse os factos. E, como é da lógica europeia, a UE foi tentando perceber “quanto poderia custar” estabilizar essa mesma serenidade.

É neste contexto que surge aquilo que se pode identificar como a “solução turca”. Por razões geográficas óbvias, a Turquia havia sido o “porto” inicial de acolhimento de grande parte desses refugiados, em especial os do conflito sírio. E, desse “porto”, muitos passaram a sair para o centro da Europa.

Porque se revelam difíceis as soluções no território da UE, esta tenta agora “comprar” que a Turquia “fixe” no seu território grande parte dos refugiados. Com cheques, com promessas de vistos e com uma descarada aceleração do processo de negociação de adesão da Turquia à UE (de que até os turcos deveriam desconfiar). Bruxelas sorri imenso para Ancara, que já percebeu que a tem como refém. Mas isso seria o menos.

Porém, com a sua proposta de fazer regressar à Turquia (forçadamente, está-se a ver) muitos dos refugiados que já estavam em solo europeu, a UE coloca-se flagrantemente à margem das leis internacionais que subscreveu e de que, no plano multilateral, sempre se afirmou como um garante. E isto é um imenso escândalo. Será que os europeus já se deram conta do que está a passar?

Rui Santos

O presidente do município de Vila Real, Rui Santos, foi o nome escolhido por António Costa para liderar os autarcas socialistas.

Rui Santos foi o primeiro socialista a conseguir ganhar a Câmara Municipal de Vila Real, tendo vindo a desenvolver, desde a sua posse, um trabalho de grande qualidade.

Como vilarrealense e como amigo de Rui Santos, deixo-lhe aqui um forte abraço de felicitações.

quinta-feira, março 17, 2016

Económico

Deixa de publicar-se amanhã, em papel, o "Diário Económico". Mantém-se por ora o site informático.

Custa-me ver sair de cena aquele que foi um grande jornal económico português, onde se formaram excelentes jornalistas e que constituiu um espaço muito relevante de debate e expressão de ideias.

Desde sempre, tive muitas "palavras" publicadas no "Económico", de várias entrevistas a muitas notícias, passando por dezenas de artigos que por ali subscrevi. Quase sempre, o meu "tom" contrastou com a linha editorial do jornal, mas isso não impediu que sempre tivesse podido contar com uma total abertura por parte da publicação, dos diretores com quem trabalhei, para poder exprimir-me com toda a liberdade.

Deixo, no dia de hoje, uma saudação muito sincera a todos quantos ali trabalhavam e que agora perdem o seu emprego.

Em particular, quero enviar um abraço solidário à minha amiga Gisa Martinho, responsável pela minha entrada como colunista, em 2013. Não posso também deixar de recordar o Ricardo da Costa Nunes, que uma doença grave afastou nos últimos meses do jornal, cuja simpatia e atenção não esqueço.

Nunca fui jornalista. Mas sinto sempre alguma tristeza quando vejo encerrar um jornal, particularmente numa época em que não abundam novos títulos.

Os taxis, o Uber e a facilidade


Como já se previa, na "guerra" taxis-Uber, parece que acabou por ganhar a facilidade, desconfio que apadrinhada por uma das forças políticas que apoiam o governo. 

Apanhado sem estratégia, entre a popularidade crescente da oferta de serviços do Uber e os protestos enraivecidos dos taxistas, incapazes de oferecerem um serviço comparável, o executivo terá optado pela facilidade, com vista a comprar (por quanto tempo?) alguma paz social no setor. "Deitar dinheiro" sobre os problemas é sempre a solução mais cómoda. 

Assim, parece que vão ser entregues umas dezenas de milhões de euros aos taxistas, para miríficas medidas de modernização. Já estou a imaginar o que vai ser a "reconversão" e a "reeducação" de alguns figurões que às vezes me têm saído em rifa aqui por Lisboa. Em certos casos, como dizia a mãe de Kotter, nas saudosas crónicas de José Cutileiro nos "Bilhetes de Colares", "nem cem anos farão daquilo gente"...

Agora, só falta mesmo que nos critérios de distribuição do dinheiro intervenha uma inenarrável entidade a quem a comunicação social dá regularmente voz e que muito se dedica a ajudar a defender em justiça os taxistas apanhados em vigarices e maroscas, em lugar de contribuir para os afastar e isolar, pelo mau nome que dão a uma classe onde, como é óbvio, continua a haver imensas pessoas honestas e profissionalmente dignas. 

Eu, que sou regular utente dos taxis - até hoje, devo confessar para surpresa de muitos, nunca utilizei o Uber -, ouço diariamente queixas de taxistas sobre a tal entidade, sobre a sua alegada proteção à "mafia" dos famigerados taxistas do aeroporto, com o custo na imagem que tudo isso projeta sobre a generalidade da classe profissional, cujas debilidades de qualidade de oferta a concorrência do Uber trouxe agora mais à evidência.

Tenho pena de que o governo assim atue. Haverá, com toda a certeza, finalidades muito mais úteis para o dinheiro público do que financiar negócios privados incapazes de resistir à concorrência. Ou, em alternativa, o executivo também podia optar por deixar esse dinheiro no bolso dos contribuintes.

ps - depois deste post, já sei que me aguardam, como aconteceu no passado, ameaças e insultos. É a vida...

A bala de prata


No meio do seu segundo mandato como presidente do Brasil, Lula da Silva recusou dar alento à hipótese, por muitos sugerida, de tentar uma mudança constitucional que lhe permitisse um terceiro tempo na chefia do Estado. Recordo-me de ter então dito que não queria proceder como Fernando Henrique Cardoso, que havia aceite uma reforma da constituição para fazer um segundo mandato.

O gesto de respeito pela letra da lei, por parte de Lula, foi apreciado em todo o mundo, por romper com o vício latino-americano de privilegiar as escolhas de continuidade político-pessoal em detrimento do estrito cumprimento dos normativos constitucionais.

A decisão de Lula de integrar o governo de Dilma Rousseff, com o único objetivo de escapar à instância judicial em que está a ser investigado, colocando-se sob o “foro privilegiado” do Supremo Tribunal Federal, não vai passar a ser uma linha prestigiante no currículo de um homem que, no passado, havia ganho a admiração de muitos milhões de pessoas, pela profunda transformação que protagonizou no Brasil.

É verdade que o modo como setores do Ministério Público brasileiro estavam a destratar o antigo presidente estava longe de ser aceitável, como foi flagrante na forma desrespeitosa como foi levado a prestar declarações, bem como em comentários, politicamente enviesados, feitos sobre o processo.

Porém, ao decidir entrar para o governo do país, instrumentalizando-o abertamente por um interesse pessoal, Lula terá ido longe demais. Terá assim disparado a sua última bala, aquilo a que alguns chamam a “bala de prata”. Que também passa a pertencer a Dilma Rousseff, cujo futuro fica agora, mais do que nunca, ligado ao destino de Lula. Pressente-se em tudo isto um grande desespero. E o desespero, na vida como na política, nunca é bom conselheiro.

quarta-feira, março 16, 2016

Lula e a Geografia


Uma noite de 2011, em Paris, depois de um jantar na embaixada brasileira, fiquei à conversa num canto com Lula da Silva, que tinha ido a França receber um doutoramento "honoris causa". O embaixador tinha convidado um grupo pequeno de amigos de Lula, dos quais eu fazia parte. Com gosto, não me custa dizer.

Lula estava muito bem disposto, durante o jantar disse algumas coisas simpáticas sobre a presidência de Dilma Rousseff, então ainda no seu primeiro mamdato, mas senti que o "bichinho" da política ativa não lhe desaparecera por completo. Embora as pessoas à sua volta apenas pertencessem ao Instituto Lula, devo dizer, com sinceridade, que fiquei com a impressão, até por conversas com algumas delas, que o regresso ao poder fazia evidente parte da agenda coletiva, ainda que apenas implícita, daquele grupo. Não sendo plausível que a reeleição de Dilma estivesse em causa, a aposta nas presidenciais de 2018 era assim o cenário mais provável. (Lula iria ainda passar por graves problemas de saúde, mas, nos últimos tempos, parecia "back into business").

Falámos a sós, por alguns minutos. Contei-lhe então uma conversa que havia tido um dia num almoço na poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), com uma das mais importantes figuras da finança privada do país. Aproximava-se o fim do termo do segundo mandato de Lula. A economia ia muito bem, o Brasil parecia imparável e, por alguns tempos, a ideia de poder haver ambiente político para mudar a Constituição e abrir a porta a um terceiro mandato do presidente começara a correr. O meu vizinho de mesa, sem me pedir confidência, disse-me:

- Se se fosse feita aqui na FIESP uma votação secreta para Lula poder ter um terceiro mandato, posso assegurar-lhe que essa ideia era aprovada por larga maioria. 

Lula, com uma gargalhada, reagiu:

- Não sei se eles votaram antes do Fernando Henrique ter mudado a Constituição, para ter direito a um segundo mandato... Mas eu nunca quis um terceiro mandato. Queria cumprir a Constituição tal como a recebi.

Pode ser que tenha sido assim, também pode ser que Lula tivesse avaliado que, no Congresso, as coisas não estariam suficientemente maduras para tal. De todo o modo, não o fez e isso foi positivo para a estabilidade institucional do país. Devo dizer que, à época, fiquei com alguma admiração por Lula não ter estimulado os que pretendiam fazer a revisão institucional. E disse-lho:

- Sabe, Presidente, o senhor devia ter um prémio de Geografia.

- Da Geografia, embaixador?

- Sim, Presidente, porque o senhor conseguiu "tirar" o Brasil da América Latina. Na América Latina, as vantagens da continuidade política costumam ser mais importantes do que a letra das constituições. Mas o senhor, não, preferiu respeitar a constituição existente e, pode crer, isso foi muito apreciado em muitos países.

Lula ficou visivelmente satisfeito com o que ouviu. Lá nos despedimos nessa noite, com um imenso abraço, tratando-me por "querido embaixador", como era do seu jeito. Não voltei a falar com ele desde então.

Ontem, Lula, ao tentar integrar o governo Dilma para se furtar à justiça, ajudou a que o país "regressasse" à região. E isso não é uma boa notícia. Tenho muita pena, confesso.

terça-feira, março 15, 2016

Fortes nos mares

Acabam de ser revelados, pelas autoridades do Oman, pormenores sobre os restos de uma nau de Vasco da Gama. É uma bela notícia que, por um momento, deveria estimular o nosso orgulho naquela aventura ímpar que foram as viagens de Quinhentos.

Recupero aqui um texto que publiquei em dezembro de 2012, escrito aquando de uma viagem ao Oman.

Ele aqui fica.

- Os portugueses chegaram aqui e construíram este forte, depois de terem circundado toda a África. Não é fantástico!

A expressão, de um responsável governamental do Oman, frente à fortaleza de Al-Jalali, o antigo forte de S. João, em Mascate, foi dita perante umas dezenas de pessoas, que logo me olharam, como se acaso os meus antepassados, de lá de Trás-os-Montes ou do Minho, pudessem reivindicar parte dessa glória. E eu, por tabela, como herdeiro natural das viagens que outros fizeram por nós.

- Pois na minha terra, no Benin, também construíram uma bela fortaleza, em Ouidah, disse uma voz, atrás de mim. Sorri silencioso, a lembrar-me do gesto estúpido do funcionário português que, em 1961, na iminência da sua expulsão de S. João Batista de Ajudá, deitou fogo a tudo, inclusivamente ao carro oficial, cuja carcaça hoje faz parte do museu no local.

A tanzaniana logo comentou: "Também construíram bastantes meu país", para logo o iraniano lançar: "há belos vestígios de Portugal na nossa costa", lembrando Ormuz.

Olhei em volta. O meu amigo do Qatar, que me fala sempre de ter nascido junto a um forte português, estava longe, ninguém do Bahrein andava por ali para lembrar o que também ficou por lá, a minha colega queniana não veio na viagem para lembrar Mombaça. Também não havia nenhum marroquino para citar a imponente Mazagão ou Safi, nem ninguém da Malásia para recordar Malaca, ou do Gana para recordar São Jorge da Mina. E, muito menos, algum indiano para citar o belo forte de Diu e o muito que aí ficou. Dos "Palop" não estava ninguém no grupo para inventariar a arquitetura militar portuguesa remanescente (do Cachéu a Luanda, da ilha de Moçambique ao forte de São Sebastião, em S. Tomé). 

Naquele instante, tive pena de não ter, à minha volta, mais vozes internacionais para ajudar ao coro de glória histórica. Até que uma brasileira, casada com um europeu, adiantou: "E então no Brasil!? Conhecem as fortalezas portuguesas no Brasil? São fabulosas!". Mas nem ela se podia gabar de, como eu, de ter visitado a grande maioria delas - a começar por essa maravilha de dificílimo acesso que é o forte Principe da Beira, bem junto à fronteira com a Bolívia.

Isto passou-se ontem, numa viagem da UNESCO ao Golfo, a que me associei, no gozo das minhas últimas férias como embaixador.

O tempo das fortalezas militares já lá vai. Mas Portugal deixou, por aí, um prestigiante mar desses monumentos, marcos de um tempo histórico em que dava algumas cartas. E alguns tiros, porque o poder também se faz disso. E hoje, graças a essa herança, se há ainda coisa em que, pelo mundo, somos fortes é em fortes...

Portugal na Grande Guerra


Hoje à tarde, participarei na RTP num debate sobre Portugal na Grande Guerra, abordando a dimensão diplomática da nossa intervenção.

Lula no Governo?


A possibilidade de Lula da Silva passar a integrar o governo brasileiro, que nas últimas horas tem vindo a ser especulada, não poderá deixar de ser considerado um momento triste para a democracia brasileira. 

A acontecer, a colocação do antigo presidente num lugar do executivo brasileiro, apenas para o proteger de uma eventual prisão, dessa forma garantindo que o seu caso judicial apenas possa ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, constituiria um artifício muito pouco prestigiante, que, além do mais, denotaria fraqueza e insegurança. Que autoridade teria o "ministro Lula da Silva", enquanto a Justiça lhe rondasse a porta?

É verdade que o discurso do Ministério Público brasileiro surge, nos últimos dias, claramente politizado e enviezado politicamente contra Lula. Além disso, o modo desnecessariamente agressivo como o ex-presidente foi intimado a prestar declarações constituiu um manifesto exagero, aliás reconhecido como tal por figuras da oposição. Nota-se uma evidente quebra de serenidade na ação judicial, que, de forma algo gratuita, acaba por retirar alguma autoridade ao processo que conduz. Deslumbrada pela "rua" anti-PT, alguma Justiça brasileira poderá estar a cometer alguns desnecessários lapsos de percurso. Só por equívoco se pode pensar que as instituições podem furtar-se a seguir a sua fria liturgia, com plena preservação de direitos dos acusados, apenas para acompanhar o sentimento do momento da "rua". Isso tem um nome e esse nome não é democracia.

Mas nada disso, repito, poderá justificar a "fuga" de Lula para o governo. A dignidade do Estado impõe que este tipo de expedientes não deva ocorrer. Um político que não deve nem teme tem de ter a frieza para enfrentar todas as adversidades, com coragem, de forma limpa e transparente. Mesmo que a sua prisão possa estar ao virar da esquina. 

Mas é hoje muito óbvio que o cenário político brasileiro começa a adensar-se, como talvez nunca o tenha estado no passado, em torno de Dilma Rousseff, do PT e do próprio Lula - seja ele ministro ou não. Começa a ser evidente que está instalado um desespero nas hostes do governo, para cuja crise final já só falta o abandono por parte do PMDB, o maior partido brasileiro, que tudo indica estar apostado em vir a ser o beneficiário imediato desta "débacle" do PT. Michel Temer e a sua heteróclita formação parecem apenas medir a temperatura para promover a estocada final. O "day after", contudo, não é muito evidente.

O Brasil é uma grande democracia, com instituições que, no passado, já atravessaram testes importantes. A liberdade continua a ser a palavra de ordem da sociedade brasileira contemporânea. Como amigo do Brasil, só posso desejar que a estabilidade político-institucional seja rapidamente reencontrada. E que ressurjam, por "terras de Vera Cruz", a confiança e o otimismo, as duas grandes caraterísticas do povo brasileiro, que hoje parecem alheias ao seu quotidiano.

segunda-feira, março 14, 2016

Na morte do Senhor Contente


Ia escrever que conhecia mal Nicolau Breyner. Mas parei. Nicolau Breyner faz parte daquelas pessoas que todos conhecemos, praticamente, desde sempre. E que, por isso, nos vai fazer falta.

A primeira memória que dele tenho, como ator ao vivo, foi numa revista que vi no Sá da Bandeira, no Porto, creio que em 1967 ou 1968. Depois, com os anos, para além de outras presenças no Parque Mayer e noutros locais, a televisão tornou-o "one of us". Logo após o 25 de abril, vim a cruzar-me com ele nas "guerras" do período pós-Revolução, cujo entusiasmo partilhou por algum tempo, para depois se aproximar de áreas mais conservadoras. Sempre prevalecia nele o sorriso, a alegria, a graça espontânea. E, também, a delicadeza, a inteligência, a cultura, que, por vezes, não eram suficientemente relevadas, na frequente "ligeireza" de alguns papéis que lhe era dado representar. Recordo-me de como, em outras ocasiões, deu mostras de estar muito para além disso, por exemplo na personagem de natureza muito diferente que lhe coube fazer na telenovela "Vila Faia", em peças de teatro e no cinema. Nicolau Breyner era um excelente ator. Mas era também um criador cultural de grande mérito.

Descobrimos um dia que éramos vizinhos. Às vezes falávamos, por uns minutos, no meio da rua, com ele a passear o cão. Era público que tinha passado por problemas de saúde, mas não o sabia doente. 

Nicolau Breyner deu-nos muitas horas de alegria. Devemos-lhe agora um momento de tristeza.

O estado do Estado

O que vou dizer apoia-se na minha experiência. Aceito que outros possam ter uma perceção diferente. E poder estar equivocado.

Do que vi e ouvi ao longo de muitos anos, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional são os dois departamentos do Estado que, aquando da mudança de governos, apresentam aos novos titulares dossiês, sobre o "estado da arte" em todas as áreas da respetiva competência, com maior neutralidade e equilíbrio. No caso de muitos dos restantes ministérios, a excessiva partidarização ou a condução ideológica dos temas leva a que as novas tutelas olhem o que lhe é passado, nas transições, com menor confiança. Posso estar a ser injusto, mas é o que me chega.

Quando, há uns tempos, comentei isto com alguém ligado ao anterior governo, acrescentei o Ministério das Finanças a essa curta lista de departamentos. Era essa então a minha ideia. A reação dessa pessoa foi imediata:

- As Finanças?! Está completamente enganado! O Ministério das Finanças, tal como você e eu o conhecemos no passado, já desapareceu. Aquilo que nós víamos como um pilar do Estado, com sólidos e conhecedores departamentos, com diretores-gerais prestigiados e estáveis no tempo, acabou há muito. Agora, aquilo é enxameado ciclicamente por uma "rapaziada" trazida pelos ciclos políticos e, para o que realmente importa, no tocante a pareceres, vive de "outsourcing", pagando balúrdios a empresas e escritórios de advogados. 

Há pouco, ao ler os números astronómicos que foram pagos pelo Estado nas assessorias para os "brilhantes" contratos de "swaps", pareceu-me que a opinião daquele meu amigo ficou confortada.

domingo, março 13, 2016

Encontros imediatos

Combinei passar por lá para beber um copo, ao fim da tarde. Era a casa de um amigo, diretor da delegação de um banco português em Londres, onde eu estava colocado como diplomata. Ele tinha por lá três pessoas, vindas de Lisboa, de passagem, que queria apresentar-me. Foi há mais de vinte anos.

O meu amigo veio buscar-me à porta e, entrado na sala, de entre as três caras que por lá se encontravam, houve uma que me foi logo familiar. O nome dele dizia-me qualquer coisa e, sem a menor sombra de dúvida, conhecia-o pessoalmente. Ele também me reconheceu, de imediato, sabia quem eu era.

- Ah! Já se conheciam?!, constatou o meu amigo.

Ambos anuímos, sem a menor margem para dúvidas. Mas, perguntados de onde vinha esse conhecimento, começámos a hesitar. Eu alvitrei que talvez tivesse sido do serviço militar, mas não, ele não andara por lá. Tentámos o Porto, depois a faculdade, os países estrangeiros onde eu vivera, as tertúlias dos cafés, a política... Nada! Ele sugeriu alguns nomes de pessoas em casa de quem nos poderíamos ter encontrado, que nos podiam ter sido comuns numa qualquer ocasião. Mas nada coincidia.

A situação era algo constrangente. A ocasião, essa, ficou "raptada" por esse mistério. Os restantes presentes olhavam-nos, com um ar divertido. Nós fazíamos figura de parvos, ainda a lançar hipóteses para a conversa. Até ao final do encontro, não chegámos a nenhuma conclusão. 

Ao longo dos anos, a dúvida perseguiu-me: onde é que eu teria conhecido aquele tipo? Voltei a encontrá-lo mais tarde já em Portugal, já por diversas vezes, em situações várias. Até já nos tratamos por tu... 

Ontem, nem sei bem porquê, o nome dele veio à baila numa conversa. E, de repente, "fez-se-me luz". Lembrei-me que o havia conhecido num almoço, aí por 1976, num restaurante, com um amigo comum, montijense como ele. A memória tem destas coisas! 

sábado, março 12, 2016

Seguro e Rushdie

António José Seguro regressou ao espaço público, do qual se tinha afastado por vontade própria, depois de ter perdido as eleições internas no PS contra António Costa. Fê-lo na sua qualidade de académico, apresentando um livro que escreveu sobre o parlamento português. Muitos amigos estiveram por lá, a dar-lhe um abraço.

Infelizmente, razões imperiosas de última hora impediram-me de estar presente nessa sessão de lançamento da obra, que decorreu na sua e minha universidade - a Universidade Autónoma de Lisboa -, onde ambos lecionamos, no mesmo departamento de Relações Internacionais.

António José Seguro é um homem de bem e um amigo pessoal. Enquanto foi secretário-geral do PS, tive imenso gosto em com ele colaborar, em especial no aprofundamento de algumas questões europeias, no quadro da iniciativa "Novo Rumo", de cujo "núcleo duro" faziam também parte Caldeira Cabral, Maria João Rodrigues, Sampaio da Nóvoa e Lídia Sequeira.

Antes, eu estivera com ele num dos governos de António Guterres e acompanhara de perto a sua atividade no Parlamento Europeu. É uma figura seriíssima de cidadão e, por muitos erros que possa ter cometido enquanto líder socialista, ninguém o pode acusar de não ter sempre atuado de um modo empenhado, tentando fazer aquilo que considerou ser o melhor para o seu e nosso país.

Ao escrever isto, lembrei-me de como o conheci.

Um dia, em Londres, aí por 1991, recebi um telefonema de António José Seguro. Eu era "ministro conselheiro" na embaixada, isto é, o substituto legal do embaixador. Só conhecia então Seguro de nome, como líder da Juventude Socialista. Nunca antes tínhamos falado.

Disse-me que estava a organizar a vinda a Portugal de Salmon Rushdie, o escritor que, ao publicar o livro "Versos Satânicos", provocara a ira do fundamentalismo religioso iraniano, que sobre ele decretara uma "fatwa", uma decisão que estimulava os muçulmanos shiitas a ajudarem à sua liquidação. Vivia sob ameaças constantes de morte, sob proteção policial, viajando às vezes sob nome falso.

Seguro disse-me que a JS, creio, decidira convidar Rushdie a vir ao Porto, a uma iniciativa sobre liberdade de informação e criação, já não sei em que âmbito. O assunto estaria totalmente sob controlo em Portugal, em termos de segurança, com a PSP devidamente envolvida, cujo comandante, se necessário, poderia ser contactado sobre o assunto. Em Londres, no entanto, no balcão da TAP, as pessoas que ajudavam Rushdie tinham encontrado inesperadas dificuldades, pelo que o assunto estava num impasse. O que António José Seguro pretendia era que a embaixada arranjasse um interlocutor, na delegação da TAP, que pudesse fazer o tratamento personalizado da questão, a qual não era, visivelmente, "business as usual".

Assim fiz. Expliquei ao diretor da TAP em Londres o problema e pedi-lhe que alguém recebesse uma determinada pessoa de que Seguro me deu o nome. É assim que este tipo de questões, com maior delicadeza, sempre se tratam. Não meti nenhuma "cunha", nem pedi que fizessem nada de especial. Nem eu sabia, nem queria saber, se o que eventualmente os amigos de Rushdie pretendiam era possível ou não. A TAP que ajuizasse, depois da conversa. E esqueci o assunto. Pelos jornais, dias depois, vi que Rushdie tinha ido ao tal encontro no Porto.

Eis senão quanto, sou informado que tinha sido ordenado, contra mim, a pedido do gabinete do primeiro-ministro português, um inquérito por alegada "pressão" minha junto da TAP, num caso que tinha afetado a "segurança nacional". O tom era sério, o MNE, na sua subserviência empanicada face a S. Bento, passara de imediato a bola para o meu embaixador. O qual, claro, deu "dois berros" por escrito que acabaram por anular o assunto, depois de eu relatar aquela que era uma verdade bem simples e verificável. Ah! "For the record": o primeiro-ministro de então chamava-se Cavaco Silva.

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...