Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.
Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.
Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.
Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.
Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.
A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:
- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?
Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:
- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.
Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.
A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".
Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.