O seu nome não interessa para aqui. Era um grande (imenso) amigo da minha família, lá por Vila Real. Oposicionista declarado ao Estado Novo, assinara as famosas listas do MUD e, por virtude disso, teve problemas sérios na sua carreira de funcionário público. Era uma pessoa muito divertida, alegre, de cuja simpática companhia, em muitas noites lá em casa, ao tempo da minha juventude, me recordo sempre.
Salazar era o seu ódio de estimação. Detestava o ditador com todas as suas forças. A "situação" estragara-lhe a vida, perseguira-o e ele, claro, não perdoava. Na sua linguagem superlativa e colorida de oposicionista radical - não era comunista, era apenas "do reviralho" - apodava o "botas" de Santa Comba de tudo quanto eram nomes depreciativos.
Um dia de Verão de 1968, surgiu-nos visivelmente feliz: "Já sabem a novidade?! Dizem que o "botas" está com os pés para a cova! Caiu, ao que parece".
A tragédia pessoal do ditador, naquele instante, não permitia, humanamente, que comungássemos abertamente da sua satisfação, se bem que, quer eu quer o meu pai, sentíssemos que uma era de esperança podia abrir-se a partir dela.
Mas o nosso amigo, nessa noite, estava imparável. E continuou: "Mas, cá no fundo, estou triste!". Ao ouvir isto, invadiu-nos um sentimento de estranheza. Seria algum remorso pelo gozo que o acidente de Salazar lhe dava?, pensei eu. Qual quê! Não era nada disso! "É que o bandido vai morrer na cama! Devia ter levado com uma bomba, com um tiro, por todo o mal que fez a tanta gente, pelas prisões, pelas torturas, pela miséria a que condenou este país! Mas não, lá está ele no hospital, rodeado daquela canalha política, cheio de médicos à volta. E vai acabar por morrer na cama! É uma grande injustiça!" Rimo-nos muito deste extremismo, com muita verdade pelo meio, que exorcizava uma vida de revolta.
Salazar ainda demoraria mais de um ano a morrer, mas não tenho nota de como esse amigo reagiu, na circunstância. Apenas sei que a alegria com que, anos mais tarde, recebeu o 25 de abril iria ser rapidamente ultrapassada. Por questões no âmbito profissional, entrou em conflito com estruturas sindicais ou de trabalhadores e teve pesados dissabores. De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista, embora, creio, sem a menor atividade partidária. A esquerda transformar-se-ia na sua "bête noire" e o seu espírito azedou muito, com o avançar da idade. De muito divertido passou a sardónico, sarcástico e ácido: a sua intolerância mudara de sinal. Progressivamente, deixou de aparecer lá por casa, e, embora sem um mínimo de acrimónia no relacionamento pessoal, afastou-se bastante. Os meus pais sentiram e lamentaram isso.
Um dia, ao tempo em que eu estava num governo socialista, cruzei-o num restaurante: "Então agora andas metido com esses gajos!" Ele tinha suficiente confiança comigo, a quem conhecia desde criança, para me dizer isso naquele tom. Eu não tive coragem, pela diferença de idades e pelo respeito que lhe devia, para lhe responder o que me apetecia. Sem exceção, toda a minha família que ele conhecia desapareceu entretanto. Ele também mudou há muito de cidade. Nunca mais o vi e, confesso, tenho alguma pena. Afinal, em comum, tivémos alguns anos de forte amizade e muita estima. E isso não é pouco. A ser vivo, o que duvido, será já muito idoso.