domingo, junho 15, 2014

Notícias do calor

Já falta pouco. Acabado o futebol do Brasil, ou ainda com ele à mistura, as nossas televisões vão começar a brindar-nos, por algumas semanas, com os fogos. Os telejornais abrirão com as "Sónias Cristinas", de "corneto" em punho, tendo como imagem de fundo o "espetáculo dantesco" (os lugares comuns são o prato forte dessas reportagens em direto) dos incêndios. "Populares" angustiados, afogueados e de mangueiras em punho serão filmados, por câmaras trémulas, a relatar, de forma compreensivelmente atabalhoada, o que viram e o que sofreram. Bombeiros exaustos irão espalhar suspeitas sobre a "mão criminosa" por detrás dos "reacendimentos" e falarão dos "rescaldos" em que estão envolvidos. Autarcas reclamarão da "falta de meios" e falarão dos "custos humanos e materiais" provocados pelo "flagelo" na sua zona. Ministros graves, num traje intermédio entre o oficial e o estival, acolitados por umas figuras da Proteção civil de bonés bizarros, prometerão "ajudas" e darão números sobre a "área já ardida este ano", prometendo um "rigoroso inquérito" sobre os casos mais estranhos. As autoridades policiais, já em pose de gabinete, anunciarão a "detenção de alguns presumíveis incendiários" e a investigação de "negócios estranhos" relacionados com a "atividade da indústria madeireira". E alguns "soldados da paz", por impreparação, má orientação ou azar, desaparecerão, com governantes no funeral. Ah! E a imprensa especulará sobre as "negociatas" ligadas a contratos de aluguer de aviões de combate aos fogos.

É assim todos os anos. Chegadas as chuvas de Outono, regressado o futebol da paróquia às televisões, ninguém mais falará dos matos secos que a incúria de todos deixa criar até junto às casas, dos corredores corta-fogos que devem ser reforçados, da escassa limpeza que continuará a ser feita nas zonas adjacentes aos caminhos nas serras, enfim, da planificação e execução de medidas preventivas, a montante do início da época mais quente, com envolvimento das autarquias, que deveria ser feita e ninguém faz. Disso só se falará de novo, no Verão de 2015, uma vez mais, quando já for demasiado tarde. Isto é, antes deste ciclo recomeçar.

Teremos de ser assim para sempre?

sábado, junho 14, 2014

Futebol e paixão

Na noite de Santo António, optei por ir jantar com amigos, passear nessa jornada única no ano, pelas ruas de Alfama. Assim, não assisti, em direto, à abertura do campeonato do mundo de futebol. Verdade seja que só na manhã desse mesmo dia me havia dado conta de que o campeonato se iniciava nessa noite. Sabedores disso, alguns amigos brasileiros comentaram negativamente esta minha atitude, como se ela colocasse em causa a minha amizade pelo Brasil. Era o que mais faltava!

Gosto muito de futebol, como julgo que por aqui tem sido revelado, nesse campo tenho uma "paixão irónica" pelo meu clube e, naturalmente, sinto um grande gosto quando a nossa seleção vence. Mas, em geral, não fico "doente" quando ela perde, mesmo que injustamente. Estou longe de ser um fanático. Por exemplo, olhando para a minha agenda, já reparei que vou perder a transmissão direta de dois dos próximos jogos da nossa seleção, porque tenho outros compromissos simultâneos. Mas isso não me angustia minimamente: verei mais tarde a repetição dos jogos. E chega-me!

Entendo e respeito o sentimento de adesão patriótica que um campeonato internacional pode suscitar. No caso do Brasil, dessa "pátria em chuteiras", como escrevia Nelson Rodrigues, o futebol tem, de há muito, uma relação muito íntima com o sentimento profundo dos seus nacionais, que sofrem com a sorte do "time" nacional, como se o destino e o prestígio do país dependessem de um golo ou da prestação de um "craque". É bonito de ver e é uma expressão magnífica dessa forma de estar única que é a "brasilidade".

No nosso caso, de Eusébio a Ronaldo, passando por Figo, temos vindo a criar um entusiasmo crescente face à seleção, à medida que esta passou a obter mais vitórias do que desenlaces menos felizes, o que não era a regra do passado. Por cá, nestes tempos de défice, a nossa seleção é, para muitos, o superávite possível do orgulho nacional. E não devemos desprezar o efeito de estímulo à autoestima que as vitórias desportivas podem representar para o país: hoje é a seleção de futebol, como no passado foi o óquei em patins, como foram os tempos áureos de Joaquim Agostinho nos "tours" ou de Carlos Lopes e Rosa Mota no atletismo.

Dentro de mim, contudo, as coisas estão, desde sempre, muito claras: o desporto tem a sua graça, pode ser pontualmente emotivo, mas serve apenas para me divertir, nunca para me angustiar. As coisas que tenho por importantes na minha vida não passam por "futebóis".

sexta-feira, junho 13, 2014

Marchistas

O interminável desfile das marchas populares de Lisboa, coisa que nunca consegui ter a menor paciência para ver e ouvir, é, no entanto, o único grande espetáculo, simultaneamente público e gratuito, da capital, com uma constante e assinalável adesão popular. Não sei como as coisas se passam nos dias de hoje, mas tempos houve em que o despique entre os bairros era ferocíssimo. 

Um dia, nos últimos anos da ditadura, a conflitualidade chegou a um ponto tal que a Câmara Municipal, pela mão do vereador Leopoldo Nunes, decidiu suspender por algum tempo o tradicional desfile das marchas e o concurso entre os bairros. O mais curioso foi a justificação dada: o despique estaria a fomentar atividades "subversivas" no seio dos grupos. A paranóia do regime via comunismo por todas as esquinas. Recordo-me como, à época, alguns de nós nos divertíamos a comentar que a PIDE se dedicava a um novo e original combate ao "marchismo"...

quinta-feira, junho 12, 2014

Norte-Sul

No dia de hoje, o Centro Norte-Sul, uma instituição do Conselho da Europa, sediada em Lisboa vai para um quarto de século, atribui o Prémio Norte-Sul a duas personalidades eminentes: o filantropo chefe da comunidade ismaelita, príncipe Aga Kahn, com uma obra notável à escala mundial em matéria de ajuda ao desenvolvimento, e a advogada libanesa Suzanne Jabbour, detentora de um impressionante currículo como ativista dos Direitos Humanos e, em especial, da luta contra a Tortura.

A partir de fevereiro de 2013, e pelo período de um ano, tive o gosto de chefiar o Centro Norte-Sul, onde uma pequena mas muito entusiasta equipa, agora dirigida pelo diplomata Frederico Ludovice, desenvolve um dedicado trabalho. É pena que a atividade do Centro Norte-Sul não seja mais conhecida do público. É forçoso constatar que os temas do desenvolvimento, da promoção da cidadania democrática e da educação global são matérias que não mobilizam muito, nos dias de hoje, o interesse mediático. Nem mesmo o facto dos direitos das mulheres e da participação dos jovens na vida cívica, nomeadamente nos países do Magrebe, estarem no eixo das preocupações do Centro Norte-Sul tem conseguido mobilizar mais as atenções para esta instituição.

O dia da entrega do Prémio Norte-Sul é uma data importante para o Centro. Por isso, hoje, àqueles que lá trabalham, deixo um forte e amigo abraço de solidariedade e de estímulo.   

DN

A vaga de demissões que afetou o "Diário de Noticias", e que ameaça outras empresas do grupo, é uma notícia triste. Embora esperada. Custa ver o jornal entrar numa fase da sua vida cuja resultante final não sabemos qual será. Custa ver muita gente a perder o emprego, alguma que sei de grande qualidade. Custa pressentir que o DN pode nunca mais voltar a ser o que já foi, se bem que, nos últimos tempos, tivesse enveredado por um modelo que, para um leitor leigo mas atento, "não era carne nem peixe", misturando textos de grande qualidade com notícias simplificadas e pouco trabalhadas, numa espécie de "digest" de "takes" de agência.

Sou leitor do tempo do DN da "Moagem" (sabem lá as novas gerações o que isto significa...). Ainda li editoriais épicos de Augusto de Castro (embaixador em Paris, bem antes de mim), passei pela "evolução na continuidade" com Fernando Fragoso, aturei sem entusiasmo (e li muito menos) o seu oficiosismo radical no PREC, bem como a fase morna do controlo socialista. Só me voltei a reconciliar com o DN quando Mário Mesquita começou a pôr ordem, rigor e independência ("Deus não dorme!") no jornal. A partir de então, o DN, sem nunca ter passado a ser um jornal excecional, era para mim uma espécie de "Diário da República" informal: estava lá tudo, funcionava como um registo do essencial que se passava.

Em homenagem ao jornal, de que espero poder continuar a ser leitor, deixo aqui a clássica citação do Eça, em "A Cidade e as Serras", quando Jacinto, cansado de procurar na sua imensa biblioteca do 202, em Paris, algo para levar para a cama, para ler, fez uma derradeira opção: "Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um velho "Diário de Notícias" e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer". 

Os brasileiros e a nossa seleção

"Portugal vai ter de aprender alguma coisa mais. Vai ter de perceber, de uma vez por todas, que a sua relação com o Brasil tem uma assimetria inescapável e eterna. Para nós, o Brasil "é" português, é uma "criação" nossa e, por isso, crises à parte, ser pró-brasileiro em Portugal é a opção mais natural e óbvia, salvo na mediocridade xenófoba e minoritária de alguns "pixadores" anónimos da nossa imagem. Ora o Brasil é muito mais do que o que Portugal deixou pelo Brasil, é uma sociedade onde africanos, alemães, japoneses, árabes, italianos e tantos outros se projetaram e ajudaram a construir um fantástico país, no qual livremente cultivam, sem qualquer pressão uniformizadora, as suas memórias e tradições. Por essa razão, porque não têm galos de Barcelos ou caravelas quinhentistas na sala, nada os obriga a reverenciar uma "terrinha" de onde não vieram os seus antepassados, de onde talvez só apreciem o bolinho de bacalhau ou o pastel de Belém, lugar de Lisboa que aliás não sabem muito bem onde fica - no que estão no seu pleníssimo direito. Por isso, quando a grande maioria de nós, portugueses, se junta a amigos brasileiros para apoiar, sem hesitação, o "escrete canarinho", durante as "copas" por esse mundo fora, não devemos esperar uma retribuição idêntica. Temos de acordar para a realidade de que, em Blumenau é a seleção alemã a escolhida ou que, na Móoca paulistana, a squadra azzurra terá sempre preferência, pelo que a sorte do "time" português lhes será provavelmente indiferente, em especial depois da saída de Felipão. Quem, em Portugal, não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil".

Escrevi isto na introdução ao meu livro "Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa" (ed. Thesaurus, Brasília, 2008). Porque continuo a pensar o mesmo, aqui deixo esta reflexão. Para que não haja surpresas nem ilusões, nestes dias da presença dos futebolistas portugueses no Brasil.

quarta-feira, junho 11, 2014

João Pequito

Foi o meu primeiro diretor-geral. Chamava-se João Pequito. Dirigia os "Negócios económicos" do MNE, setor que tratava da diplomacia económica (o que prova que, afinal, isso existiu sempre nas Necessidades...). Era um figura imponente, de voz forte, que atroava os corredores, às vezes com sonoras gargalhadas. Não era um homem consensual. Tinha presidido à "comissão de saneamento" do MNE e, embora não sendo acusado de "barbaridades", pagava algum preço de imagem por ter aceite tal função. Sabia-se que era uma pessoa bastante rica, que "não precisava" da carreira. Isso ou o seu pendor democrático - a doutrina predominante nos claustros nunca foi unânime na matéria - tinha-o levado a pedir uma licença por meia dúzia de anos, só regressando após o 25 de abril. Tinha fama de conquistador, bom garfo e amante dos prazeres da vida, de carros desportivos, antiguidades e viagens exóticas. Era inteligente, culto e informado, quiçá um tanto diletante e tudo isso somado irritava muita gente na "casa".

Quando passei a trabalhar sob as suas ordens, em 1976, eu era um jovem "adido de embaixada", recém-ingressado na carreira. Pequito atribuiu-me, desde muito cedo, algumas responsabilidades e eu terei correspondido. Pessoalmente nunca me deu grande confiança, mas senti sempre que confiava em mim. Até na gastronomia: um dia, à hora de almoço, o telefone tocou na minha secretária e, do lado de lá, ouvi-o perguntar: "Dizem-me que você conhece muitos restaurantes. Onde é que se come bem para os lados de Campolide?". Fui entretanto colocado na Noruega. Pequito foi para a Bélgica, como embaixador, e daí para o México. Em Oslo, em inícios de 1982, recebi uma sua carta, muito simpática, a convidar-me a ser seu "número dois" na Cidade do México. Acabei por ir para Luanda. Só voltámos a falar muito mais tarde, em 2000, e apenas pelo telefone. Morreu três anos depois. Tinha-se afastado da carreira, desde 1984, por vontade própria.

Ontem, na Feira do livro, entrei por curiosidade no pavilhão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Deparei com uma biografia de João Pequito, editada pela Misericórdia. Porquê? Porque, na hora da morte, deixou em herança à instituição uma muito considerável fortuna, sendo até agora o seu maior benemérito, no século XXI. O livro, assinado por Ana Gomes (não, não é a mesma em quem estão a pensar!), ajudou-me a lembrar, ainda com maior simpatia, aquele que foi o meu primeiro diretor-geral.

terça-feira, junho 10, 2014

Desmaios (2)

O debate que se instalou, nas últimas horas, sobre a questão da publicitação das imagens do desmaio do chefe de Estado não é de todo ocioso. É importante que, a propósito deste "cas de figure", como dizem os franceses, se discuta abertamente o tema da privacidade, até para deixar de fora desta aquilo que realmente deve ser aberto ao acesso do público, identificando o que deve permanecer no domínio do reservado.

Não sou um especialista na matéria, razão pela qual tenho apenas a opinião de um simples leigo, que vale assim tanto como qualquer outra. Essa opinião, ditada apenas pelo meu bom senso (que admito que pode ser mau), diz-me que, tendo as imagens sido colhidas numa cerimónia pública, à vista de toda a gente, não deve haver o menor impedimento à livre circulação do filme do que aconteceu. Já não digo o mesmo sobre o "direito" de acesso dos jornalistas ao curso dos cuidados médicos que foram prestados ao professor Cavaco Silva por detrás da tribuna: era o que mais faltava! E fez muito bem a segurança ao tê-los impedido de se aproximarem. De qualquer forma, é importante que se diga que o episódio, que não é nada degradante nem humilhante para a pessoa do chefe de Estado e é em tudo natural na vida de qualquer cidadão, foi uma ocorrência que só não foi banal porque o seu titular é quem é e teve lugar num momento de grande visibilidade. Entendo que ninguém tem o direito de procurar esconder os factos que se passaram à vista de todos, numa situação em que a simpatia das pessoas de boa fé esteve, quero crer, com o professor Cavaco Silva. Pelo menos, esse foi o meu caso. 

Desmaios

Cavaco Silva desmaiou durante as cerimónias do 10 de junho, que hoje estão a ter lugar na Guarda. Um presidente é um cidadão como qualquer outro, tem as fragilidades de uma pessoa comum e este tipo de situações deve ser tido como natural. Porém, para a imprensa e para a curiosidade pública, não deixa de ser um "fait divers" que abala a rotina de uma cerimónia. Mas que não é inédito, como um dia testemunhei de perto.

Em 28 de outubro de 1995, eu tomava posse no governo presidido por António Guterres. Por um mero acaso, fazia-o juntamente com os ministros e, como era de regra, com o secretário de Estado da presidência do Conselho de ministros, dias antes dos restantes colegas secretários de Estado. Era uma circunstância excecional, que tinha a ver com a urgência da minha deslocação ao Luxemburgo, para acompanhar Jaime Gama, onde tínhamos para resolver um berbicacho, numa complicada e inadiável negociação europeia sobre pescas que estava em curso.

O ambiente naquele espaço do palácio da Ajuda era abafante. A mudança de ciclo político trouxera à posse do novo governo uma imensa multidão, que se acotovelava e prolongava mesmo pela escadaria de acesso. Tratava-se do fim do "cavaquismo", desse período de uma década em que Cavaco Silva, depois de chefiar um governo minoritário de curta duração, obtivera duas maiorias absolutas, num Portugal favorecido pelo forte fluxo dos ventos financeiros comunitários, que se faziam sentir na paisagem do país e no bolso dos portugueses.

Viviam-se os últimos dias do segundo mandato de Mário Soares como presidente da República. Durante quase dez anos, entre Soares e Cavaco, havia-se travado uma guerra política surda, que se agravara nos últimos tempos. A saída de cena do primeiro-ministro e a vitória dos socialistas nas eleições legislativas do início de outubro devem ter constituído o culminar desejável de mandato para o presidente cessante. Também na presidência se iria assistir a um novo ciclo. Jorge Sampaio era o candidato anunciado às eleições que teriam lugar em janeiro do ano seguinte. Cavaco Silva, primeiro-ministro cessante, seria o seu adversário.

Voltemos à posse. Cavaco Silva estava ao lado de Barbosa de Melo, presidente da Assembleia da República, e de Mário Soares, naquela que seria a consagração de António Guterres, seu sucessor à frente do executivo. Estava pálido e tenso, o que, no meu caso, levei à conta do peso pessoal de uma cerimónia que punha termo a um longo mandato. Segundo as sondagens, as hipóteses de ser eleito para a presidência, contra Jorge Sampaio, não eram muito fortes, pelo que o pressão emocional daquele momento deveria ser muito grande.

Foi então que, de repente, as nossas atenções foram chamadas para um reboliço à volta de Cavaco Silva. Sentira-se mal, desmaiara, foi retirado para trás da cena. A sala ficou em suspenso. Por um instante, temeu-se algo de grave, mas felizmente logo ficou claro que fora uma indisposição passageira, provocada por uma noite mal dormida, na morte de um familiar. Lembro-me de, naqueles escassos minutos, ter trocado olhares perplexos com Jorge Sampaio, que estava num grupo de pessoas à nossa frente. Creio que, sem o dizermos, nos interrogávamos sobre se aquela súbita "humanização" de Cavaco não poderia vir a ter efeitos nas eleições presidenciais, que se realizariam poucas semanas depois. 

Não teve. Sampaio viria a ganhar as eleições à primeira volta. Cavaco Silva saiu de cena, para só regressar uma década mais tarde, para o substituir. O tempo político de Cavaco Silva acabará em 2015. Quase duas décadas medeiam entre os desmaios que protagonizou em cerimónias públicas.

Padre Alberto

"Já vi que você nunca fará parte do meu rebanho", disse-me uma noite o padre Alberto Neto Simões Dias, com uma das gargalhadas sadias com que enchia os jantares a que, de quando em quando, estava presente, na casa de familiares seus e meus, onde eu vivi por cerca de cinco anos, a partir dos últimos meses de 1968. O meu irrecuperável esquerdismo divertia o padre Alberto, a quem me recordo de ter ouvido falar, pela primeira vez e com entusiasmo, de António Guterres. Era também muito próximo de Marcelo Rebelo de Sousa e, creio, de Adelino Amaro da Costa. Movia-se num mundo lisboeta de que eu estava e pretendia manter-me distante, de estudantes católicos, que ele conquistava e organizava com o seu entusiasmo e o seu verbo. Oriundo do Souto da Casa, perto do Fundão, o padre Alberto estudou e viveu desde cedo em Lisboa, onde se foi aproximando do catolicismo "progressista", como à época se dizia, onde preponderava um seu grande amigo, o padre José Felicidade Alves. Garantiu um lugar muito interessante junto da comunidade universitária e em diversos círculos de Lisboa. A famosa vigília na capela do Rato, na noite de 31 de dezembro de 1972, passou-se nesse seu espaço.

O padre Alberto foi uma figura que sempre tive por muito simpática. Cordial, excelente contador de histórias, falava-nos com graça das inúmeras iniciativas em que se envolvia. Os jantares com ele eram sempre momentos divertidos e, naqueles "anos do fim" do marcelismo, também muito instrutivos quanto à inquietação que então atravessava os meios católicos. Notava-se que pressentia que o mundo estava a mudar, que ele tentava ajudar a essa mudança, mas sem laivos radicais, apenas com a energia da palavra e uma forte vontade congregadora. Apesar das nossas diferenças, mantínhamos uma espécie de cumplicidade cívica subliminar, reforçada pelo nosso sportinguismo, que eu, porém, nunca quis aprofundar. Um dia, convidou-me para uma sua iniciativa, creio que um debate, no qual me disse que estariam pessoas de várias tendências, alguns não crentes, como seria o meu caso. Fiquei de pensar no assunto e, no final, desisti de ir. O meu sectarismo da época não era compatível com esse tipo de exercícios, que achava uma mera perda de tempo. Tenho ideia de que ficou sentido com essa minha recusa.

Perdemo-nos por completo de vista, a partir de meados de 1973. Ouvia falar dele, a espaços, à família. Mais de uma década depois, em 1987, ocorreu a sua morte trágica, em condições infelizmente nunca esclarecidas. Lembrei-me dele agora, ao ler a bela evocação que o seu conterrâneo, Fernando Paulouro das Neves, aqui lhe fez.

segunda-feira, junho 09, 2014

Britânicos

Está a ser interessante seguir o aparente braço-de-ferro entre o PM britânico e outros dirigentes conservadores europeus, na sua recusa de aceitar o nome de Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão Europeia. A experiência mostra que os britânicos são especialistas em "trade off" e que não é de excluir que, no termo desta barganha, a intransigência de Londres possa vir a ter como resultado vir a ganhar, noutro "tabuleiro", um qualquer "prémio de consolação" que satifaça alguma das suas várias reivindicações diluidoras da densidade da construção europeia. Mas também pode dar-se o caso de Londres estar a "fazer o frete" a outros Estados que também não querem Juncker, mas não o podem dizer, a fim de tentarem ainda a hipótese de um outro nome. Na Europa, tudo é possível.

Aproveito para relembrar um episódio que é bem definidor da forma britânica de negociar.

Foi durante a discussão de um dos dois tratados europeus (Amesterdão e Nice), em que fui "chief negotiator" português. No início de cada negociação, o nosso objetivo era tentar manter os ingleses "on board", isto é, procurar descobrir fórmulas que acomodassem os seus interesses e preocupações. Sabíamos que isso era sempre muito difícil, mas um tratado seria tanto mais forte quanto não comportasse quaisquer "exceções" nacionais, que quase sempre abriam caminho a outros casos similares. Assim, num determinado e importante dossiê, lembro-me de que, ao longo das semanas, fomos progressivamente prescindindo do "wording" inicial, mais ambicioso, para desespero de certos Estados, com vista a tentar caminhar para um consenso que nos pudesse vir a aproximar dos britânicos. Os seus negociadores iam alimentando essa esperança, dando sinais de que, se aceitássemos uma linguagem mais diluída, isso talvez fosse possível. Nós íamos transigindo, cada vez mais, até que se chegou a um limite máximo possível dessa diluição. E, nesse momento, mesmo perante uma fórmula já muito "soft", os britânicos informaram que lhes era impossível aceitarem, anunciando o seu tradicional "opt out", isto é, à sua desvinculação dessa política. Porém, com essa tática, havia conseguido diluir o compromisso que os restantes já tinham aceite. E, naturalmente, já era inviável o regresso à "square one", à fórmula inicial mais ambiciosa, a qual, se acaso os negociadores britânicos não tivessem estado presentes, teria sido aceite por todos. Com este expediente dilatório, Londres garantia o que, de facto e desde o primeiro momento, pretendia: ficar fora do acordo e que o tratado, de que pontualmente se desvinculava, não se afastava exageradamente daquilo que era o seu interesse. Ficava também claro que, desde o início, o Reino Unido nunca verdadeiramente tinha encarado a possibilidade de se juntar a qualquer compromisso. E nós tinhamos caído na "esparrela"...

ps - como se terá notado pelos termos ingleses utilizados no texto, os britânicos já entram a ganhar, pela língua, nas negociações europeias.

domingo, junho 08, 2014

Conversas

Decididamente, o país mudou. Durante estes últimos três anos, a conversa entre amigos passava-se entre a "heróica" minoria que defendia a chamada maioria (as eleições provaram que a maioria "já vai" em 28%) e os que não gostavam de Passos Coelho, Paulo Portas "y sus muchachos" - sendo que, dentre estes últimos, tenho amigos e familiares que oscilam entre os que acham que "isto só lá vai à bomba" e alguns, os mais complacentes, que estão apenas "descontentes". Parte destes, não querendo votar socialista ou na atomização anti-governo, passaram-se para a cómoda abstenção.

Desde há duas semanas que o país discussante se alterou. Agora, parece que as pessoas alinham todas as suas opiniões em favor de Seguro ou de Costa. De súbito - terá sido efeito da possibilidade de voto aberta pelas "primárias"? - não há bicho careta, por mais "reaça" ou "comuna" que seja, que não se ache no direito de "amandar bocas" sobre a crise interna do PS, tomando "partido" ou, mais modestamente, alinhando palpites sobre o saldo que resultará do debate. Os mesmos que, há semanas, enchiam a boca com o "programa cautelar" ou a "saída limpa", já só falam, com uma desenvoltura "xuxa", sobre a importância de haver "congresso+diretas" ou as "primárias". E têm opinião!

Quase que comove ver o país tão preocupado com a escolha para o Rato. Receio apenas que isto possa acabar num relativo "esquecimento" de Passos Coelho. Seria uma injustiça se isso acontecesse.

O autor

Ontem à tarde. Estava sentado a uma pequena mesa, recuado, entre duas barracas, na feira do livro. À frente tinha um pequeno banco. Desocupado. Sobre a mesa havia três livros e uma esferográfica. Era o autor. Estava distante da zona comum onde os seus pares, entre amigos e editores, vão disfarçando, às vezes por horas, a escassez de admiradores. Ele não, estava completamente sozinho. Discretamente, procurei ler o nome e o título do livro. Não me diziam rigorosamente nada. O livro era vendido na barraca em frente, de uma editora menos conhecida. O sucesso de vendas não era coisa evidente. Andei por ali uns minutos, por curiosidade. Ninguém se aproximou da mesa. Subi e desci a feira. Quando por lá voltei a passar, tudo estava igual. O autor, estóico, continuava sentado, com os mesmos três exemplares e a caneta sem préstimo, com um esgar de resignação. Confesso que cheguei a ter a tentação de comprar um livro, mesmo que o tema me não interessasse. Mas não. O homem não precisava de compaixão, precisava de leitores. E eu nunca seria um deles.

sábado, junho 07, 2014

Conveniências

O meu pai costumava contar que, no tempo da sua juventude em Viana do Castelo, havia um cavalheiro que ficou conhecido por não ter reagido quando um dia a sua mulher foi agredida em público por um homem. A justificação dada, confrontado com a indignação dos amigos da família que o inquiriam sobre a razão pela qual assumira tal passividade, colou-se-lhe à pele para sempre: "não me convinha!"
 
Lembrei-me da expressão ao ter visto já apoiantes das duas possíveis candidaturas à liderança dos socialistas (outras pode vir a haver, já pensaram?), em artigos, declarações e blogues, a recomendar aos respetivos líderes que se abstenham de discutir, desvalorizando-as ab initio ou considerando-as inoportunas, algumas propostas apresentadas pelo seu adversário. A razão não é dita, mas trata-se de mera conveniência política.
 
Termino lembrando que o homem de Viana do Castelo não ficou muito bem no retrato da memória local.

sexta-feira, junho 06, 2014

Normandia

Foi em Deauville, na Normandia, depois de um jantar, em 2010. Falava com o "maire" da cidade, a quem havia manifestado a minha admiração pelo facto de, em muitos locais da região, ter encontrado, lado a lado, bandeiras francesas e alemãs, em cemitérios que celebravam as vítimas da guerra em que ambos os países se haviam defrontado de forma trágica, entre 1939 e 1945. 

Meses antes, durante vários dias de férias, havia percorrido toda (mas mesmo "toda") a "costa do desembarque", passando pelas célebres praias que os americanos tinham crismado com nomes bem sonantes. Visitara as casamatas alemãs, museus militares e restos das lanchas aliadas utilizadas no "dia D", 6 de junho de 1944. Desde criança que eu era um "viciado" no tema. O meu pai falava-me com entusiasmo desse dia histórico em que os aliados desembarcaram na Normandia, dando um impulso decisivo à derrocada da agressão nazi na Europa. Tornei-me desde então um leitor compulsivo de livros sobre a Segunda Guerra mundial, um assunto sempre muito presente nas conversas e nas prateleiras de livros lá de casa. Viver em França deu-me oportunidade de percorrer, de mapa na mão e de forma organizada, todos esses locais que tanto haviam mobilizado a minha imaginação.

Ao "maire" de Deauville perguntei se aos mais velhos, àqueles a quem a guerra tinha afetado diretamente as suas vidas, não chocava essa convivência com a bandeira do antigo inimigo. Explicou-me que, de facto, para algumas pessoas dessa geração que vivera a guerra "a quente", não terá sido fácil aceitar a normalidade da relação pós-conflito, com um país que lhes infligira tanto sofrimento. Mas esse era o "preço" da nova Europa, da nova amizade franco-alemã à volta da qual se construíra a paz e a unidade económica e política das Comunidades. 

O "maire" acrescentou, contudo, algo por que eu não esperava. Disse-me que muitos habitantes da Normandia, no período imediatamente após a guerra, mantinham sentimentos ambivalentes face aos ingleses e aos americanos - que eu pensava, com naturalidade, serem vistos como os libertadores que, de facto, foram. "Convém não esquecer que, para a população civil que habitava a Normandia, a força aérea inglesa e americana era vista responsável por meses de bombardeamentos de posições militares alemãs distribuídas por toda a região, cuja precisão estava muito longe de ser total, frequentemente destruindo casas de civis, provocando vítimas francesas, em muitas noites de terror". Nunca tinha pensado nisso: o "friendly fire" também mata.

Passam hoje 70 anos sobre essa data memorável. As praias da Normandia foram cenário de comemorações sobre a paz reconquistada na sequência do "dia D". Mas a guerra não desapareceu por completo da Europa, primeiro nos Balcãs, agora na Ucrânia. A paz é o bem mais inseguro da História.

Culturgest

É hoje, sexta-feira, às 18h30. Mais uma conferência do ciclo de conferância "Portugal – Propostas para o Futuro", no Pequeno Auditório da Culturgest, com entrada gratuita. O tema não podia ser mais atual: "Que fazer com os Fundos Estruturais no período de 2014/2020?".

No painel estarão vozes qualificadas como Elisa Ferreira, João Ferrão e José Mariano Gago. A moderação estará a cargo de José Manuel Félix Ribeiro. Trata-se de mais uma iniciativa de um grupo de que faço parte, com Fernando Bello, José Manuel Félix Ribeiro, João Ferreira do Amaral, João Salgueiro, João Costa Pinto e Miguel Lobo Antunes, este último diretor da Culturgest.

quinta-feira, junho 05, 2014

Os amigos e as cerejas

Com a idade, sinto que os amigos são como as cerejas: vão uns atrás dos outros. Desde esta manhã, debatia-me com a ideia de que, à data de hoje, já passou um ano desde que António Pinto da França nos deixou. Há minutos, na caloraça da feira do livro, para onde me "desenfiei" entre duas reuniões e uma tosta a fingir de almoço, dei de frente com Onésimo Teotónio de Almeida, um "browniano" que atravessou o Atlântico para vir à capital do império. E veio à baila um amigo comum que também já se foi, o José Guilherme Stichini Vilela. Por imperativos meus, a conversa teve de ser breve. Mas esta dupla e triste evocação estragou-me, de certo modo, a tarde deste soberbo dia de insuperável sol lisboeta. Ao mesmo tempo, estou grato ao Onésimo por me ter trazido à memória a imagem desse outro amigo. Relembrá-lo, traz alguma melancolia mas também um sentimento de um certo conforto, a certeza que não o esquecemos e que a sua evocação nos deixa marcas. Volto ao princípio: com os anos, a vida torna-se numa espécie de album de recordações. De imagens que já foram a cores e que agora são, inapelavelmente, a preto e btanco.

A cidade proibida

Lembro, como se fosse hoje, as imagens televisivas. Ceausescu está na varanda do edifício da presidência, em Bucareste. À sua frente, espalha-se uma grande e organizada manifestação de apoio, a tentar contrariar os ventos com que as "democracias populares" estavam, por essa época, a ser definitivamente varridas das História europeia. Engorrado para o inverno, o ditador romeno saúda, com um sorriso plástico, a multidão oficiosa que o aplaude, quando, de repente, se começam a ouvir longínquas vozes de protesto, vindas de outros manifestantes algures na praça. Nota-se que Ceausescu fica atónito por aquela contestação inédita, que "não pode" estar a acontecer, num regime como era o seu. A câmara não nos mostra essas pessoas, não faço ideia se se saberá o que lhes aconteceu. Mas, para sempre, passei a ligar a atitude daquela gente, um punhado de pessoas num ambiente altamente hostil, sujeitos à repressão mais selvática, à verdadeira definição da coragem cívica.
 
Veio-me isto à memória ontem, quando revi a imagem patética daquele cidadão chinês, de saco plástico na mão, que, há 25 anos, na praça de Tiananmen, se colocou em frente dos tanques militares, protestando contra o esmagar da tentativa de liberdade, prestes a iniciar-se. Seria interessante saber o que terá dito aos militares, os mesmos que, curiosamente, travaram o tanque para o não atropelar, minutos antes de reprimirem barbaramente milhares de pessoas. Nunca se soube quem foi esse herói, se ainda é vivo, depois de afastado por amigos, se acaso escapou à razia feita mesmo às portas da "cidade proibida". E que continuou a sê-lo.     

quarta-feira, junho 04, 2014

"Granta"

A "Granta" é uma revista/livro que descobri há muitos anos, creio que quando vivi em Londres. Apelativa pelo grafismo elegante, embora sóbrio, incorpora quase sempre um interessante e pretendido "new writing", muitas vezes com autores muito pouco conhecidos, ao lado de nomes consagrados, misturando a ficção com outros registos. Comprei, ocasionalmente, algumas das edições temáticas, às vezes em alfarrabistas, que vou lendo a espaços - porque a "Granta" é uma publicação que se lê sem pressas. É uma revista para se ir lendo.
 
Há meses, vi que a "Granta" ia publicar uma edição em português (a "Granta" tem outras edições, além da original inglesa, sendo que a francesa, talvez não por acaso, nunca existiu), sob a batuta culta e de bom gosto de Carlos Vaz Marques, figura que só conheço dos "media", mas que verifico ser sempre garantia de qualidade em tudo aquilo em "que se mete". A "Granta" portuguesa é igualmente excelente. E acho magnífico que, num tempo de crise, haja coragem para avançar com este tipo de iniciativas. Leiam o seu nº 3 "Casa". Eu já comecei a ler. 

Pikkety

Portugal tem coisas curiosas.

Anda para aí toda a gente a falar do livro de Thomas Piketty, "O Capital no século XXI", que já foi considerado um dos livros económicos da década, por uma figura tão ilustre como Paul Krugman. Trata-se de uma obra de economia que, ao que vejo, recupera certas categorias inspiradas no famoso livro de Karl Marx, "O Capital". Quando o livro saiu em França, no final de 2013, não teve um sucesso estrondoso, o que só aconteceu depois de ter circulado em versão inglesa. Hoje, não se fala noutra coisa. A versão portuguesa ainda demorará uns meses.

O debate em torno das teses do livro já começou. Hoje, recebi um mail com uma boa dezena, não apenas de recensões críticas, mas também de artigos, a favor ou contra. Entre nós, a sensação que tenho é que se iniciou uma polémica em torno do livro... na maioria por gente que o não leu e que apenas tem (já) opiniões "sobre" ele, feita à luz do que escreveu quem, de facto, o leu. Não querendo "perder o pé" ao que está na moda, a muito do nosso "impressionismo" doméstico basta a opinião dos outros. E, por isso, já hoje vi comentários sobre a análise feita à obra por Vitor Gaspar (que, claro, a leu cuidadosamente), por parte de quem só quer aproveitar a onda para mandar bitaites, as mais das vezes cavalgando até a maré política.

País curioso, este.

... e logo se vai ver!

Ver aqui .