Ao tempo do Estado Novo, tinha por hábito ler com atenção um determinado jornalista do "Diário de Notícias", que escrevia sobre política internacional. Era um homem estudioso, que caprichava em opinar sobre regimes políticos existentes em lugares recônditos do mundo, relativamente aos quais elaborava juízos definitivos, muito maniqueístas, colocando-os com grande simplicidade nas prateleiras dos "bons" ou dos "maus" da História.
Porque eu vivia num ambiente que era, em absoluto, simetricamente oposto ao daquele jornalista, quando ele "dizia mal" de algum líder ou regime, ele passava, de imediato, a cair-me no goto. E vice-versa. Era o tempo da Guerra Fria, e, no nosso caso, das guerras coloniais, o que autorizava a ditadura a zurzir tudo quanto soasse a favorecimento de regimes democráticos, com o "terceiro-mundismo" ou o apoio da União Soviética a serem o cúmulo da diabolização. Mesmo algumas atitudes dos Estados Unidos, quando acaso lhes dava para favorecer democracias, não escapavam ao crivo severo do escriba do jornal da avenida que ironicamente já se chamava da Liberdade. Ele era o "fiel" da minha balança ideológica, vista ao espelho. Era tudo tão fácil!
O mundo mudou. Já não há dois sistemas a polarizar as simpatias. O comunismo acabou, mas as democracias não fazem, nem de longe, o pleno do mundo. A tendência em geral prevalecente na opinião pública é, assim, mostrar simpatia pelos movimentos que possam pôr em causa os ditadores ou mesmo os líderes autoritários.
Foi assim no Egito. Todos "estivemos" na praça Tahrir, todos nos sentimos aliviados com a saída de Mubarak, todos saudámos as eleições livres. Depois, ao olharem-se os resultados, alguns de nós perguntaram-se se aquela imensa vitória islamista não poderia vir a ter consequências complicadas. Mas, c'os diabos!, era o voto, era a democracia, era a vontade do povo. Com o tempo, viu-se que essa vontade conduzia a uma radicalização islamizante com tons preocupantes, num afastamento da laicidade pública, a qual tinha, apesar de tudo, algumas vantagens para a vida coletiva de uma sociedade religiosamente tolerante. E, entre alguns de nós, a simpatia por um regime que estava a aproveitar a sua chegada democrática ao poder para criar uma hegemonia totalizante começou a esmorecer. Um dia, os militares reimpuseram o poder das armas. Entre nós, alguns suspiraram de alívio. A outros, começou a preocupar a nova ordem ditatorial, os generais que aí estão de novo. E, um destes dias, quando estes exercerem a violência e a repressão que lhes está na massa do sangue e na ponta das armas, alguns de nós (embora já não todos nós) "voltarão" à praça Tahrir. É a vida!
Porque é que me lembrei disto hoje? Porque, ao olhar para o simplismo com que o mundo ocidental está a reagir face à situação na Ucrânia, me dou conta de que ainda não se interiorizou que estas coisas já se não pintam a preto e branco e que a História, nos dias que correm, é uma coisa muito mais sofisticada. Na Ucrânia, na Síria, na Líbia e por aí adiante.