Fui diplomata em Angola na primeira década pós-independência. Luanda era uma cidade sitiada, a guerra civil abrangia grande parte do território, mantinha-se uma forte presença cubana, civil e militar, a África do Sul apoiava militarmente a Unita, sedeada na Jamba, com apoio americano. A Guerra Fria estava a poucos anos do seu termo, mas Angola era então uma das suas trincheiras mais evidentes.
Todos os dias, na embaixada, olhávamos para o « Jornal de Angola », esperando a diatribe do dia contra Portugal. A Unita passeava-se por Lisboa, era apoiada por portugueses, tinha acesso à nossa comunicação social. Tornava-se impossível explicar às autoridades angolanas que, menos de uma década passada sobre o 25 de abril, não era sensato esperar que os governos de Lisboa pudessem limitar a expressão e a liberdade de movimentos dos opositores do regime de Luanda, muitos deles beneficiando do facto de terem nacionalidade portuguesa.
Há poucos países de expressão portuguesa de cujos cidadãos eu me tenha sentido mais próximo do que dos angolanos. Vivendo uma realidade diametralmente diversa, com um regime cujo funcionamento e práticas nada têm a ver connosco, nem por isso os angolanos deixam de ter algo que se nos assemelha – nas qualidades e nos defeitos. Um dia, Venâncio de Moura, que foi ministro das Relações Exteriores de Angola, dizia-me, a brincar, numa conversa, em que eu comentava precisamente naquele sentido : « Nós, angolanos, tal como vocês, somos latinos », assim justificando a forma expansiva daquele povo magnífico, cujo destino histórico tem incorporado um sofrimento recorrente.
Há dias, um incidente judicial, com contornos políticos, voltou a agravar as relações bilaterais. Se acaso eu encontrar, daqui a horas, um qualquer amigo angolano – e tenho vários e bons – e lhe disser, com a verdade iniludível dos factos, que o governo português nada pode fazer face à autonomia do Ministério Público, pelo que é totalmente injusta a imputação de responsabilidades políticas e o alarido que isso provocou em setores de Luanda, quase que apostaria que ele acabará por me dar razão. Os angolanos, lá no fundo, sabem bem que as coisas são assim, que ninguém terá ficado mais desagradado pela coincidência temporal das revelações de um processo do que a nossa ministra da Justiça, originária de Angola e oriunda do próprio Ministério Público português, e que viu o incidente cancelar a sua deslocação oficial a Luanda.
Há quem, em Portugal, esteja apostado em prejudicar as relações com Angola ? Claro que sim, mas aí a « reciprocidade » é total… Por isso, só resta ter sangue frio e esperar.