quinta-feira, junho 21, 2012

Cultura geral

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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.

O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.

Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).

A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!

Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:

- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.

- A França, talvez.

- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?

(Pausa longa)

- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!

- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?

- Talvez da Inglaterra... 

(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).

- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?

- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!

Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.

23 comentários:

Blondewithaphd disse...

Adorei o texto porque espelha ideias que partilho e se centra em questões que me irritam profundamente.
Aplaudo!

Helena Sacadura Cabral disse...

Deliciosa, Senhor Embaixador, essa do "whisky" e do "whiskey".
E para conhecedor Junto-lhe uma observação de hoje do The New York Times.
"I decided to check in with my favorite word authority, Jesse Sheidlower, editor at large of the Oxford English Dictionary, and this is what he said:

“As an aficionado of whisky and whiskey, I do have deep feelings on the usage, which is pretty much that the Times style should be changed. This isn’t a case where a small group of fanatics are insisting on some highly personal interpretation of an issue that is not adhered to by anyone outside their cult. It’s almost universally the case that the word is spelled ‘whisky’ in Scotland and Canada, and ‘whiskey’ elsewhere, and that, as you have seen, people really do care about this as an important distinction. I’d also observe that the O.E.D. points this out in its entry. So I would encourage you to adopt this distinction in the style book. I have no problem with using ‘whiskey’ as a the main generic form, if there’s no indication of location.’’
Sou ou não "cultíssima"?! :-))

Anónimo disse...

resta saber se é do euro, moeda, ou do euro de futebol...

bem haja

Anónimo disse...

Não me admira nada que, atualmente, seja um dirigente na função pública, membro do conselho de administração de um banco, empresa pública ou empresa com negócios com o Estado ou outra coisa do género.

O que me admiraria é que esteja a “trabalhar”… Vamos apostar?

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador,

Decididamente sou "fã" destas suas histórias. Esta é fantástica.

Já agora deixe-me perguntar-lhe uma coisa que me contaram e que não sei se será verdadeira.

Conta-se que nestes concurso para diplomatas havia uma prova que era eliminatória mesmo que todas as outras tivessem corrido bem e à qual chamavam a "prova do chá" . É verdade? E a ser verdade de que constava essa prova?

Se não puder/quiser responder compreendo perfeitamente

Anónimo disse...

É espantoso! Fez bem em referir este tipo de situações, até para os próximos putativos lerem e tomarem alguma consciência do que lhes será exigido, caso pretendam concorrer à Carreira. Se bem que, as exigências actuais não sejam, ao que parece, as mesmas de antes (como aliás refere). No útimo concurso de ingresso à Carreira Diplomática, registaram-se, ao que consta, algumas prestações algo semelhantes. A falta de conhecimentos gerais (sobre política, cultura, etc) é, assustadoramente, um mal cada vez mais vulgar nos nossos jovens licenciados. E, se facilitarmos, baixando o nível de exigência de ingresso, nesta, ou noutra Carreira, estaremos a contribuir para uma qualidade de profissionais inferior aquela que até agora as distinguiu. Profissionais que um dia ocuparão lugares de relevo e responsabilidade no aparelho do Estado e quem sabe acabarão por reflectir essa falta de conhecimentos através de decisões que poderão não ser as melhores para o País.
Rilvas

Anónimo disse...

Na mouche!

Isabel Seixas disse...

A ignorância é mesmo atrevida basicamente até e no contexto esse senhor nem se deu ao trabalho de meter atestado...
A história é o máximo.

Anónimo disse...

Pois é.. no meu tempo a educação tal como a cultura era dada em casa. Havia quem lesse autores malditos supostamente às escondidas. A instrução era dada na escola e nas universidades mas sempre com o apoio em casa. Não sonho como será hoje em dia mas... eu não sei.

patricio branco disse...

um teste de cultura geral, a pintura que ilustra a entrada. Está lá muito e muitos, desde as piramides do egipto a putin e chaplin. Algum português não descobri, não sei. camões até podia figurar. quanto ao artista, que desconheço,não sei se se misturou no grupo, desconfio que no canto superior direito no balcão poderá estar, não longe de dante.
um teste de cultura geral portanto.

Santiago Macias disse...

Concorri para a carreira em 1994. Não me apresentei às provas, mas não por causa de quaisquer cunhas...
Não chumbaria por esses motivos, o que não quer dizer que não chumbasse por outros, obviamente.

A única coisa que posso garantir é que o nível médio dos alunos universitários piorou substancialmente em 20 anos. No ano passado, durante a campanha de escavações arqueológicas em Mértola um ex-aluno disse-me "sabe, daqueles livros e filmes de que falou na aula não conhecemos nada". Que filmes eram? Obras de cineastas como Bergman, Renoir ou Ozu. Que escritores eram? Borges, Greene, Drummond de Andrade... Não consigo explicar o desespero que senti. Sobretudo porque em momento algum me disseram "não sabemos de que está a falar".

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Santiago Macias: eu fazia parte do júri nesse ano...

Isabel Seixas disse...

A imagem é fabulosa, faz-me lembrar :
As
sete virtudes fundamentais;

humildade, disciplina, caridade, castidade, paciência, generosidade e temperança

e os sete pecados mortais:
gula, luxúria, avareza, ira, soberba, preguiça e inveja.


Consigo ver em primeira linha Einstsein
"A mente que se abre a uma nova idéia jamais voltará ao seu tamanho original."

Estive 18 anos a lecionar no Ensino superior e acredito, além de ter constatado, que os jovens têm "a Sua" cultura geral que nós de facto não temos, nomeadamente cultura musical vasta e própria...

Tenho mesmo que ir trabalhar...
Mas o post é interessantissimo, ah os pecados capitais encontrei-os mais nos professores e na minha pretensiosa opinião, a meu ver, Alguns e a boa notícia só alguns,maus pedagogos...Basicamente porque se esquecem do basico...
Os jovens são jovens estão em construção...

Anónimo disse...

Oh Sr Embaixador,deixe lá!
A Sr.ª Merckel ainda há dias, descobriu que Berlim afinal situa-se na Rússia.
E a dita senhora é quem manda na Europa comunitária!
Além do mais, para o jovem Dr.de hoje, a cultura geral tem outro nome.Chama-se Google!
Agora a sério, a sua história é deliciosa e retrata bem a grande maioria dos candidatos que se apresentam a prestar provas nos concursos públicos em Portugal.
Por isso, recordo com satisfação o Sr. Professor Fausto Quadros, que no concurso do MNE de 1991(junho),de várias centenas de examinados levou menos de vinte à prova oral.Digno de nota, tanto mais que dos nomes sonantes que constavam da lista de candidatos não entrou nenhum.

Helena Sacadura Cabral disse...

Como eu concordo com o que afirma o seu comentador Santiago Macias...
Há tempos, numa aula, falava de Camus e perguntei a um aluno de mestrado, se sabia quem era.
Impante, respondeu-me que sim, claro, que era Camões em francês!
Fiquei varada. Mas ninguém se riu. Acha possível?!

Isabel Seixas disse...

Cara amiga Doutora Helena, como a compreendo, há tempos uma doutorada em ciências de Enfermagem só "sabia"!...?!? Maliciosamente a orientação sexual de Florence Nightingale como se isso fosse possivel saber-se...

Não sabia o fundamental que foi a primeira Enfermeira a criar uma historicamente a 1ª Escola de Enfermagem no Saint Thomas Hospital em Londres e a criar um plano de estudos, especifico, cientifico( baseado na evidência) e autónomo de conhecimento para formar enfermeiros... É a vida, ah a propósito lembrei-me porque Ela, a minha colega, sabe quem é Camus de certeza, porque ostenta com orgulho a memorização de todos os prémios Nobel... Além da curiosidade da sua obra filosófica e literária com o absurdo como bandeira.

A propósito O Albert Camus bem gostaria de estar cá agora a ver o Europeu... Se calhar a partilhar os festejos com o Sr. embaixador... Cada Um pelo Seu País, claro.

Anónimo disse...

Senhor Embaixador,

E porque nao ter bebido um "Bushmills" e dar o seu a seu dono?

Ainda nos wiskies nao me canso de remomendar o ultimo film de Ken Loach : "The Angels' Share". Tem muito que se lhe diga e que se lhe beba em materia de wisky!

Saudades de Londres

F. Crabtree

Anónimo disse...

Unindo-me à ilustre Tertúlia, Senhor Embaixador:
Já repararam nas semelhanças entre Os Lusíadas/Camões e Divina Comédia/Dante?

Um leigo/leitor anónimo

Mrnuel Augusto Araújo disse...

Meu caro Seixas da Costa
Com tão saborosas histórias, vou acrescentar duas (Santiago Macias, não é para te aumentar o desespero, nem com esperança que Camus deixe de ser a tradução de Camões para francês).
1 - Um dia, em Viseu, depois de bem bebidos de whisky e whiskey, num bar da zona histórica, deambulamos por aquelas ruas que ficavam espantosas com a luz de uma lua quase cheia.Uma frase é atirada: Assim se percebe a paixão de Teresa e Simão. Reacções frouxas. Olhámos para trás, um grupo de mais de quinze pessoas, várias doutoradas, várias com mestrados, todos licenciados, quase todos das área das humanidades. A perplexidade estampava-se nos rostos,atravessava a comitiva.
2 - Convidado, empurrado fui a uma sessão de uma sessão de uma Comunidade de Leitores. Quando lá cheguei descubro que o livro que se lia e discutia era As Cartas Portuguesas.Decidi fazer uma pequena provocação. Peguei num livro que me emprestaram e li cheio de convicção: "Meu amor, descobri que o que mais amo em ti é a própria paixão." como ninguém perguntou em que página se encontrava o excerto, encetou-se uma discussão, bem curiosa sobre a citação, com participação activa da orientadora, até que, quase passada meia-hora, alguém pergunta em que página estava aquele fragmento, provavelmente para o contextualizar. Tive que desfazer o equívoco, a Soror Mariana era eu. Enfim, coisas de cultura, isto sem confundir cultura com artes e letras, e aceitando que a cultura pode ser uma uma floresta de equívocos não inocentes usados para progressivamente a desacreditar enquanto soma dinâmica e activa das sabedorias da vida e dos conhecimentos do fazer,do saber fazer, da prática colectiva de grupos e indivíduos que produzem conhecimento e objectos,. em que muitos são arte.

Anónimo disse...

Para este concurso vai haver uma prova de cultura geral, é logo a primeira prova, dia 16 de Março.

Ana

Anónimo disse...

Boa tarde. Sou leitora habitual do seu blog, que muito me elucida, e aproveito desde já para o felicitar pela qualidade dos seus artigos!
Desta feita e sem querer abusar, procuro informação (modelo, conteúdos programáticos da prova de cultura geral) para as provas de acesso à carreira diplomática, que terá lugar no dia 16-03-2013.
Gostaria de lhe perguntar se conhece alguma prova deste tipo (uma vez que nos anos anteriores não houve) ou se sabe onde posso encontrar exemplos de provas anteriores (só de cultura geral, as outras tenho), pois não é facultado o acesso a nenhum modelo, somente para as outras provas. Desde já, grata pela atenção dispensada. Cordiais cumprimentos. Fernanda (fmlr1972@gmail.com)

Anónimo disse...

Começou bem o exame, a marcar bem o estilo para as seguintes 89 questões em 90 minutos.
"Um guelfo:
A) dava-se bem com um gibelino
B) era um anão mitológico
C) era inimigo do Papa
D) não era inimigo do Papa"

Anónimo disse...

Exmº. Sr. Embaixador,

Depois de ler o seu texto, e outros comentários, não pode deixar de reflectir e colocar aqui alguns considerandos.
Prestei prova no passado dia 16 Março e irei novamente no próximo dia 20 Abril em virtude da anulação decretada pelo Sr. Ministro. E fiquei positivamente admirada com tal decisão, pois sempre me disseram que não valia a pena concorrer em virtude das "cunhas" e conhecimentos ao que já estariam à priori escolhidos os "felizardos"...
Agora leio noutros blogges todo o tipo de desconsiderações acerca da prova, tais como, o teor "exótico" das perguntas. Apraz-me dizer que algumas foram "estranhas", mas no seu conjunto entendia-se que era diversificada a matéria aí constante. E pode ser que contra mim falo, mas tendo estudado a problemática da globalização, I e II Guerra Mundial, Ambiente, Demografia e outros temas, submeti-me à prova e não saí da sala nos primeiros 5 minutos com ar arrogante e irritado.
O problema de hoje, penso eu, com o devido respeito, é o de pensar que democracia e liberdade de expressão nos dá direito a insultar as pessoas e os métodos.
Peço desculpas pela extensão do texto. Obrigada pela sua atenção.
Vera Oliveira

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