sexta-feira, maio 03, 2019

Estar ou não estar no Guiness

Nunca tive ambições de estar no Guiness. Mas vai sabendo bem! 

Se a “santa aliança” entre a esquerda da esquerda e os partidos da direita se concretizar de novo (num “remake” do PEC IV, de 2011), e António Costa decidir demitir-se, continuarei a manter no currículo ter feito parte do único governo minoritário que, em Portugal e em democracia, cumpriu um mandato completo - o primeiro governo chefiado por António Guterres, entre 1995 e 1999 (de que António Costa fazia parte, recordo).

Não me agrada nada ter o meu currículo nas mãos de partidos nos quais não voto!

quinta-feira, maio 02, 2019

Sensibilidades

Há dias, para criticar um político para quem os números eram tudo, escrevi, por aqui e algures, que ele era menos um governante e mais um contabilista. 

Pelos vistos não percebendo que, ao dizer isto, nada me movia contra os contabilistas mas que tinha tudo contra os políticos que atuavam como eles, quando a sua tarefa era bem outra, recebi queixas ofendidas de vários contabilistas, que não entendem que “cada macaco no seu galho”...

Há dois dias, numa entrevista televisiva sobre a Venezuela, saiu-me, a certo passo, que “Maduro é um genérico de Chávez”. Tinha acabado de dizer a frase e logo pensei: ainda me arrisco a que os fabricantes de genéricos se aborreçam. Há pouco, lá veio uma mensagem, ofendida: “o senhor dá dos genéricos uma má imagem, sem respeito profissional por quem os produz”. 

Está tudo doido?

Os semáforos fizeram-se para fotografias



A derrota póstuma de Fraga

A transição espanhola, a saída da ditadura para um modelo democrático, foi considerada, ao seu tempo, uma mostra de sabedoria. Juan Carlos legitimou nela o seu reinado, em especial depois da hábil gestão da tentativa de levantamento militar, em 1981. A nova constituição parecia ter já incorporado, com alguma arte, as diversidades autonómicas. O modo como o novo regime soube lidar com o terrorismo, extremista ou independentista, deu do país a imagem sólida, impressão que a integracão europeia e o sucesso económico confirmariam. A Espanha foi uma imagem de sucesso.

O desenho do espetro partidário parecia acompanhar a normalização. À esquerda, os socialistas do PSOE haviam, com realismo, abandonado as bandeiras mais radicais, convertendo-se à NATO e projetando no país uma agenda “business friendly”. À direita, gerindo a herança, mais ou menos ambígua, do seu passado franquista, Fraga Iribarne, o galego que fora ministro de Franco, criou um Partido Popular que, não se afastando de uma matriz bem conservadora, parecia cultivar uma modernidade que era muito mais do que um “aggiornamento” oportunista do lado vencedor das “duas Espanhas”.

O PSOE, fruto de erros próprios e de incapacidade de leitura da muito rápida dinâmica da sociedade, pareceu, a certa altura, prestes a cair no destino do PASOK grego ou dos socialistas franceses. O radicalismo geracional deu mostras, por algum tempo, de poder vir a condenar a esquerda a um destino extremado e, por essa via, a assegurar ao polo conservador uma sustentação prolongada no poder.

Afinal, nada disso se passou. Tendo como inescapável pano de fundo a aventura independentista catalã, a sociedade espanhola reagiu num sobressalto identitário de centralismo, que a lógica apontaria como devendo resultar num refúgio eleitoral na direita. Só que o Partido Popular, com um comportamento rígido, incapaz de comportar os sinais de mudança, enquistou-se numa postura que alienou, simultaneamente, alguns dos seus setores mais centristas e, no polo oposto, favoreceu a emergência de um núcleo de extrema-direita que, ao receituário dos saudosos da Espanha dos “señoritos”, soma hoje o fator novidade e a agenda populista e caricatural dos medos xenófobos. A direita partiu-se, nela o PP parece ter deixado de ser o seu polo de referência e Fraga perde, postumamente, a sua aposta histórica.

A Espanha, com um sistema político esfrangalhado, mostrou que é ainda nos socialistas que mais confia. Ao fundo, continua, contudo, a ver-se a sombra da Catalunha.

(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 1 de maio de 2019)

quarta-feira, maio 01, 2019

Os semáforos fizeram-se para fotografias


Odores

O advogado João Araújo foi condenado a pagar uma indemnização a uma jornalista do “Correio da Manhã” por, há uns tempos, ter dito, à frente de câmaras de televisão, que ela “cheirava mal”. O tribunal não terá sido sensível ao conceito da liberdade subjetiva do olfato de cada um.

Eu estava num grupo de pessoas quando vi a cena e recordo-me da surpresa coletiva ao me ouvirem exclamar: “Querias Houbigant?!” Toda a gente olhou para mim, com ar surpreendido. O que é que eu queria dizer com aquilo?

E lá tive que explicar. Um familiar meu tinha criado a fama de, ao abandonar certo lugar privado da sua habitação, deixar regularmente atrás de si odores residuais que, em geral, eram menos apreciados pela comunidade de utentes que lhe sucederiam no uso do local (espero que tenham apreciado o delicado “understatement” estilístico que, com esforço, acabei de elaborar). Criticado, ele reagia, invariavelmente, com a expressão: “Querias Houbigant?!”

Nunca tinha ouvido a palavra Houbigant e, durante muitos anos, a expressão moeu-me a cabeça. Um dia, fui ao Google e, depois de algum trabalho, lá descobri que Houbigant era o nome de um perfume - para mim, até hoje, completamente desconhecido, quiçá devendo ter sido popular noutras gerações.

Da próxima vez que encontrar João Araújo, não deixarei de lhe dizer: “Querias Houbigant?!”. E também comentarei que a sanha do “Correio da Manhã” contra ele me “cheira” muito que tem a ver com o nome de José Sócrates.

terça-feira, abril 30, 2019

O Brasil por cá


A minha interlocução com brasileiros, a propósito da situação política no seu país, tem vindo, nos últimos tempos, a passar muito por motoristas de táxis e, em particular, de Uber. Raramente sou eu a puxar a conversa, porque, as mais das vezes, eles próprios se encarregam, quando perguntados há quanto tempo por cá estão e de onde são originários no Brasil, de deixar claro o que pensam sobre como as coisas vão por lá. 

Em regra, são anti-Lula, mesmo que não necessariamente pró-Bolsonaro. Falam imenso da corrupção e da insegurança. Pela minha parte, nunca comento, mesmo quando estimulado a isso. Digo que o país é deles e explico que também não me agradaria ouvir estrangeiros a comentar criticamente o que por cá se passa. E ouço-os, desde logo a constatar que “os portugueses gostam mais do Lula do que os brasileiros”.

Hoje, tive uma surpresa: um motorista confessou-me que era militante do PC do B, um partido “irmão” do PT. Uma raridade! Falou-me, claramente emocionado, da recente entrevista de Lula à Folha de S. Paulo e ao El País. Elogiou Manuela d’Ávila, que foi a candidata a vice-presidente com Fernando Haddad, e confessou-me que gostaria de “regressar em breve a um Brasil sem Bolsonaro”. Não comentei, claro, mas acho que bem pode esperar sentado... no Uber!

segunda-feira, abril 29, 2019

Conversa


Ela, nos sessenta e muitos, tinha uma cabeleira dourada standard e um ar bastante “bem”. Devia ter sido bem gira. Era ainda Nevogilde, no seu melhor. Nele, a cara dizia-me qualquer coisa, mas, confesso, que já tive melhores dias no reconhecimento facial de pessoas. Tinha uma boa década e meia a mais do que ela. 

Foi num bom restaurante do Porto, há umas horas. 

Eu jantava sozinho. Eles, um com o outro, na mesa ao lado. Cada um olhava o respetivo telefone. “Já viste o resultado em Espanha?”, perguntou ela. “Os vermelhos ficam!”. Sorri (interiormente), interrogando-me sobre se o fantasma da Pasionaria estaria mesmo a rejubilar com a recondução do “Ken da Barbie” na Moncloa.

Ele, grave, continuava a ponderar. A certo ponto, reagiu, meio displicente: “Deram cabo de tudo. Agora ainda há essa coisa do Vox!“. Deixou passar um instante e revelou: “Nunca acreditei no Fraga, sabes? Traiu o Franco”. 

A conversa começava a compor-se. Eu fingia que lia o editorial do Economist sobre a Hauwei. Mas estava curioso. De onde é que, afinal, eu conhecia aquela cara?

Mandei vir mais um Jameson, porque ando numa fase de trocar o “whisky” pelo “whiskey”, talvez como consequência colateral do “backstop” do Brexit! E foi então que ouvi, na boca dele, a frase definitiva: “Gostava era dos dias em que a Falange tinha sempre unanimidade nas Cortes. Belos tempos!”. E gargalhou, finalmente. Ela (pronto, era isso, era segundo casamento!) inquiriu: “Ias lá muito, nesse tempo, não ias?”. Não esperou a resposta, óbvia, e, olhando para o lado (que isto agora nunca se sabe quem é que anda por aí), baixando a voz, que era cava, como o estatuto social requeria, clarificou: “Para além do ano de 1975, claro! Passaste lá muito tempo, então”. Ele só fez um esgar, blasé e cúmplice, confirmatório, qualquer coisa entre o ELP e o MDLP. E o nome dele, caramba!, finalmente, emergiu, para derrota provisória do meu futuro Alzheimer. Mas não esperem que o diga!

Enquanto me levantava da mesa, tive o impulso (felizmente contido) de perguntar, para o lado: “Ia muito ao Pasapoga, nessa altura, não ia?” Mas travei-me. No Porto, por estes dias, ainda por cima depois do resultado de hoje na “pedreira” de Braga, ainda tenho de ter algum cuidado...

domingo, abril 28, 2019

CDS

O CDS foi sempre, por muito que alguns nunca o tenham entendido, um partido estruturante do nosso sistema democrático. Custa-me assim assistir ao estranho silêncio de um certo CDS, histórico e responsável, em face das derivas populistas e extremistas hoje feitas em seu nome.

Encontro


- Já não se lembra de mim?! Pudera! Com a vida que tem...

Era um homem pequeno, magro, de olhar penetrante, tenso, um sorriso que não era mais que um esgar. Tinha-se aproximado pela rua, aos zigzags, e agora, no passeio, travava-me o passo.

Estávamos no cruzamento da rua do Almada com a dos Clérigos, no Porto. Há uns anos.

Costumo ter boa memória visual, mas, por mais que me esforçasse, não me recordava dele. Podia ser que com o fluir da conversa...

- É natural que já se tenha esquecido de mim. Passou já tanto tempo. Mas eu não esqueço aquelas palavras simpáticas que, há anos, me dirigiu, sobre o meu trabalho. Ficaram-me para sempre.

Que teria eu dito? Continuava mudo, encurralado no passeio estreito, com os carros à disparada, a impedir um início de retirada. O meu esquecimento seria da idade? É que continuava sem me lembrar de nada. O que já me incomodava.

- Pois eu, depois de ter por lá andado - bons tempos! -, tive uma vida muito complicada. Traições, sabe? Não se pode confiar em ninguém.

Onde é que teria sido o "lá" onde ambos nos tínhamos, ao que parece, encontrado? Sem nomes, relatou invejas que o tinham prejudicado, perseguições de que fora vítima, uma carreira profissional arruinada. Até a família! Tudo tinha corrido mal. Estava no desemprego.

Por essa altura, eu tinha passado aquele limiar temporal em que já me não era possível, com decência, perguntar quem ele era, onde nos conhecêramos, o que realmente fazia ou fez. O discurso do homem, culto e rico na expressão, revelava-me alguém bem preparado, mas, igualmente, uma personalidade abalada, perturbada. Continuava a acreditar que, por uma qualquer referência que acabasse por surgir, ainda ia "agarrar" a origem da figura e ligá-la a uma circunstância que me fosse comum.

Informou-me que lhe aparecera uma oportunidade para dar aulas. Começava na semana seguinte. E, algo críptico, acrescentou:

- O problema vai ser aguentar até lá.

Crendo ter vislumbrado uma escapatória, peguei na palavra, porque até então não tivera espaço para qualquer deixa, e disse-lhe que, se essa oportunidade se abria, seria apenas uma questão de tempo até pôr a sua vida em ordem. E adiantei umas platitudes de sala de espera de médico, como "o mundo dá tantas voltas" ou "sabe-se lá o dia de amanhã" ou "vai ver que tudo acabará por correr bem".

Vi, com alívio, que o meu interlocutor concordava, assentindo com a cabeça.

- Tem toda a razão, disse. Mas há-de concordar que é dificil, como no meu caso, estar sem comer quase há 24 horas. Mas vou aguentar! Não se preocupe...

Aí, fraquejei. Levei a mão à carteira e preparava-me para tirar uma nota, quando ele reagiu:

- Não, não! Nem pense nisso! Não junte uma humilhação mais àquelas por que tenho passado. Nunca perdoaria que o meu amigo ficasse com uma má impressão de mim. Posso ter fome, mas tenho a minha dignidade e, em especial, quero conservar a minha imagem. Como lhe disse, nunca esqueci as suas palavras. Basta-me isso! Eu cá aguentarei...

A cena invertera-se. Ele estóico, eu a pedir-lhe que aceitasse, dada a situação em que estava, uma simples nota para aconchegar o estómago. Não tinha nada a ver com humilhação ou dignidade, disse-lhe. Eu tinha muito gosto...

A relutância do homem começou a esbater-se. Condescendente, lá cedeu:

- Bom, se o meu amigo quer mesmo fazer-me esse favor, eu posso aceitar. Mas com uma condição! Isso é imperativo! Sem ela, não aceito! O meu amigo vai dar-me o seu endereço, para eu lhe enviar, logo que receber o primeiro salário da escola, aquilo que agora faz o favor de adiantar-me. Tenha paciência! Isso não dispenso! Nem eu aceito esmolas nem o meu amigo, pessoa que muito admiro, alguma vez seria tentado a dar-mas. Eu conheço-o!

Concordei, claro, "flattered" e aliviado com afastamento da suspeita de que eu pudesse ousar dar-lhe uma esmola. E lá lhe avancei alguns euros, acompanhados de um cartão pessoal. Sei lá porquê, senti-me aliviado. Parecia que o homem me acabara de fazer um favor. Na verdade, eu estava grato por ter recuperado a minha "liberdade", saído daquela conversa tão intensa. E lá se foi ele, rua abaixo. Até hoje.

A pessoa que me acompanhava, silenciosa durante toda a cena, interveio, por fim: “Quem era?”. Ainda hoje recordo o seu olhar de espanto, ao ouvir o meu ainda aturdido “Sei lá!”.

sábado, abril 27, 2019

Laranjeira


Olhando para trás, dou comigo a pensar que devo ser cliente do Laranjeira, um dos mais seguros poisos gastronómicos de Viana do Castelo, vai para mais de seis décadas. Comecei a ir por lá almoçar em criança, com os meus pais, no verão, quando na antiga “casa de pasto” preponderava a figura do senhor Francisco, com a dona Maria a dirigir a cozinha. 

Ao longo dos anos, a casa evoluiu. E a ambição, felizmente, também. Da pequena sala e da pensão, a família passou a ter um hotel e, depois, a bela residencial Melo e Alvim, meu pouso preferido na cidade. O casal fundador - que, por décadas, continuei a rever na mesa ao fundo, à esquerda - deixou entretanto as rédeas ao filho José. Levei por ali dezenas de amigos, recomendei a casa a muitos mais. 

Com o José, desde há muito, estabeleci uma relação pessoal que fazia com que, mesmo numa passagem breve pela cidade, nunca deixasse de o visitar, ali naquele início da rua Manuel Espregueira, à saída da Praça. Era com evidente alegria que, à minha vista, ele disparava do fundo, da zona do balcão, naquele seu passo curto e estugado, com o sorriso a aflorar no bigode cada vez mais branco, para o nosso abraço sempre amigo.

Há uns anos, falou-me da doença. Que, a certa altura, se lhe pressentia na cara. Creio mesmo que me disse ter ido a uma consulta ao estrangeiro. Depois, recuperou e tudo parecia bem. Passei, há pouco tempo, por Viana e olhei para dentro do restaurante. Era a meio da tarde. Nem o José, nem sequer a simpática empregada Maria Eugénia, estavam à vista. Perdi assim a última oportunidade de encontrar o meu amigo José Laranjeira, que hoje desapareceu. Para mim, Viana, sem ele por ali, não será mais a mesma coisa.

Memória de uma noite


No dia 11 de março de 1975, houve uma tentativa de golpe de Estado militar em Portugal. Descontente com o curso da Revolução e inconformado com o seu afastamento do poder pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em setembro do ano anterior, o general Spínola e alguns sequazes tentaram retomá-lo. Na sua ação, provocaram um morto e feridos. Constatado o malogro da intentona, Spínola fugiu para Espanha (iria depois para o Brasil), tendo alguns dos seus cúmplices sido presos.

Ao final da tarde desse dia, a cúpula do MFA reuniu no palácio de Belém com o presidente Costa Gomes, para avaliar o ocorrido. Houve quem achasse que isso não era suficiente. Alguns oficiais, entre os quais eu me encontrava, entenderam que era importante tirar reais consequências do estado de coisas, no seio das Forças Armadas, que tinha criado as condições para a execução do golpe. E, se bem o pensámos, melhor o fizemos: metemo-nos nos nossos carros, entrámos pelo palácio de Belém dentro, forçámos a interrupção da reunião e, manifestamente contra a sua vontade e tendo subliminarmente atrás de nós o peso de algumas unidades militares importantes, obrigámos Costa Gomes e as estruturas dirigentes do MFA a deslocarem-se para o edifício na calçada das Necessidades, onde hoje funciona o Instituto de Defesa Nacional. E assim aconteceu a Assembleia do 11 de março.

Há dias, foi lançado um livro que contém a transcrição completa do debate havido nessa tensa Assembleia, que durou mais de oito horas. Tive o gosto de ser convidado por Vasco Lourenço e Almada Contreiras para, na Associação 25 de Abril, fazer a apresentação do livro, que surgiu quase simultaneamente com um excelente documentário realizado por Jacinto Godinho para a RTP sobre essa histórica Assembleia. 

Porque, durante estes 44 anos, o que se passou realmente naquela reunião foi objeto de forte controvérsia, não obstante ela ter sido testemunhada por cerca de duas centenas de pessoas, a publicação da transcrição dos debates reveste-se da maior importância. 

Sumariando o que disse na apresentação do livro, julgo ficar claro que o qualificativo denegridor de “assembleia selvagem” colado a essa reunião, não tem a menor razão de ser, pelo que o livro ajuda a acabar de vez com três mitos.

O primeiro é da indisciplina. A reunião, não despida de emoção em alguns momentos, passou-se sob um permanente sentido de respeito hierárquico, desde logo garantido pela tutela do presidente da República e do primeiro-ministro. Ao longo dessas longas e tensas horas, como o texto testemunha, não houve o mais leve beliscar do respeito hierárquico e as interlocuções mantiveram-se no formalismo a que o ambiente de uma reunião militar obrigava.

O segundo diz respeito à questão das eleições para a Assembleia Constituinte, previstas para 25 de abril, isto é, pouco mais de um mês depois da Assembleia. A mitologia, adubada por alguns historiadores, aponta no sentido de ter sido Costa Gomes, num “hábil” fecho da reunião, que deu esse assunto como encerrado, para evitar que a Assembleia procedesse a um adiamento, assim incumprindo com o compromisso assumido pelo MFA no 25 de abril. Nada mais falso. Como o texto revela, não obstante terem surgido algumas vozes favoráveis ao adiamento, muitas mais se pronunciaram em favor da manutenção da data. É mesmo Rosa Coutinho quem adianta que seria uma “provocação” ao povo português não cumprir com a palavra dada.

Finalmente, um terceiro mito fica também, para sempre, arrumado: a questão dos fuzilamentos. Claro que houve quem alvitrasse que se deviam fuzilar os responsáveis pelo golpe criminoso dessa manhã (mas nenhuma dessas pessoas foi o coronel Varela Gomes, como erradamente consta de livros e abundantes artigos de imprensa). Houve, de facto, uma intervenção nesse sentido e foi lida uma proclamação, sob a mesma orientação, aprovada na unidade militar que havia sido bombardeada pelos sediciosos. Mas a rejeição esmagadora dessa ideia ficou, desde logo, bem patente. O texto traz-nos, a esse respeito, magníficas intervenções de Cabral e Silva, de Rosa Coutinho, de Sacramento Marques, de Costa Neves, do presidente Costa Gomes e de outros, afastando liminarmente essa irresponsável sugestão, garantindo contra ela o apoio esmagador da Assembleia. Devo dizer que esse é talvez um dos grande momentos da Assembleia do 11 de março, pela prevalência clara, no seu seio, de um sentimento humanista e muito português, como Ferreira Fernandes bem sublinha na sua crónica de hoje no “Diário de Notícias”, que pode ser lida aqui.

A Assembleia do 11 de março, com todas as suas decorrências, faz hoje parte integrante da História de Portugal. Tive grande orgulho em nela participar e ter mesmo nela feito uma intervenção - sendo, aliás, uma das muito escassas vozes de oficiais milicianos que alguma vez tomaram a palavra na dezena de Assembleias do MFA, realizadas entre dezembro de 1974 e setembro de 1975 (e estive presente em três). 

Não se pode entender a História sem contextualizarmos os factos. Não se pode olhar para os acontecimentos de uma época como se as coisas se estivessem a passar hoje, à luz do que agora sabemos e pensamos. Além disso, temos de nos ver a nós mesmos inseridos nessa época, no Portugal convulso e agitado desses dias, nesse caldeirão de esperança em que todos estávamos mergulhados. A Revolução era jovem e nós também.

Reflexão sobre a ingratidão

Um certo olhar sobre o 25 de abril, que sempre emerge por esta época, apoia-se na ideia de que existe um défice de reconhecimento, em especial por parte das novas gerações, dos benefícios que a ordem democrática trouxe aos portugueses. Para essa perspetiva, a liberdade de que desfrutamos surge hoje como um dado adquirido, sem que, no entanto, haja um reconhecimento explícito dos sacrifícios que foram necessários para, em 1974, nos libertarmos da ditadura. E, mais do que isso: sem que se assumam as incomensuráveis vantagens que o novo regime trouxe, face ao “tempo da outra senhora”.

Geracional e politicamente, sou tentado a simpatizar com este modo de ver as coisas e irrito-me com quem tende a desvalorizar o esforço e o risco de quem lutou pela liberdade, negativizando aquilo que ela nos trouxe. Mas, devo confessar, com realismo, que acho quase inevitável que, 45 anos depois da Revolução, quem a não viveu e não haja sofrido o autoritarismo do anterior estado de coisas não sinta um forte apelo a comemorá-la, com um entusiasmo militante. Algumas dessas pessoas, olhando para o paradigma político que hoje marca a generalidade da Europa, tenderão mesmo a considerar que o modelo de liberdades em que nos habituámos a viver mais não é do que uma coisa natural e, perdoe-se-me a ousadia, uma quase banalidade.

É injusto que assim pensem? Claro que é, mas temos de entender que estão no seu pleno direito de assim pensarem, tanto mais que algumas delas também reagem negativamente ao que consideram ser uma certa apropriação da “memória de Abril” por setores políticos em que não se reveem. Ora a democracia é isto mesmo: o próprio direito a lê-la como cada um entenda.

Chamei o 25 de Abril a este texto, não para o discutir, mas pela similitude que nele podemos encontrar com a atitude de muita gente face à ideia europeia. É uma evidência que, também no modo como os cidadãos reagem perante a Europa, se pode dizer que há como que uma evidente “ingratidão”, quer nas críticas, quer mesmo em alguma indiferença.

Ora a Europa comunitária representou muito para os países integrantes. Foi vital para lançar e sustentar um sentido de cooperação em paz entre Estados saídos, pouco mais de uma década antes, de uma tragédia quase sem par. Depois, alavancou o seu desenvolvimento, garantindo-lhes tempos de prosperidade e de bem-estar, sob um modelo social magnífico. Essa mesma Europa fez partilhar as suas sinergias por outros países que não haviam estado no grupo fundador, apoiando também o fim de algumas ditaduras, mais tarde dando acolhimento a países vítimas da Guerra Fria - quer a Estados de vocação neutral, quer aos que se haviam libertado da tutela de Moscovo.

O que vemos hoje? A revolta perante o fracasso do modelo? Nada disso. A Europa comunitária, mais integrada e mais aprofundada, continua a ser um espaço quase ímpar de modelo de convivência de Estados, com instituições transparentes, regras funcionais que são um “benchmark” para o mundo, um espaço atrativo para os que o olham de fora. Embora longe do crescimento exponencial de outrora, a Europa mostra uma vitalidade económica muito significativa, alimenta uma moeda única de referência universal, é um notável espaço de bem-estar e liberdade. 

Tudo parece indicar que a Europa, afinal, acaba por ser uma vítima do seu próprio sucesso. O projeto foi “vendido” com um grau de expetativas que acabou, aqui ou ali, por se confrontar com uma realidade que ficou aquém do sonho. Porque combina duas legitimidades, a europeia e a nacional, assistimos a esta última se avantajar agora, crescentemente, sobre a primeira, à revelia da tendência anterior. A Europa passou a ser o “bode expiatório” das insuficiências nacionais, a fonte de todos os males de que os eleitos dos países se não querem sentir responsáveis. 

Muitos já não olham a Europa como fator de esperança, mas apenas como fonte de crescentes inseguranças – com muito mito e mentiras à mistura. Tal como no caso do 25 de abril, já poucos se lembram como era antes. E daí o crescimento do euroceticismo, das derivas populistas, o êxito do Brexit. É triste para muitos, mas é a vontade de outros. E isso é a democracia.

(Publicado no Jornal de Negócios em 26.04.19)

Aleluia!

“A revolução de 1974 desmantelou a ditadura salazarista, que durante décadas manteve os portugueses em menoridade cívica”, Rui Ramos, “Observador”

sexta-feira, abril 26, 2019

Reflexão sobre a ingratidão


Hoje, no Jornal de Negócios, pode ler o artigo que ali publico com o título em epígrafe. Aqui.

quinta-feira, abril 25, 2019

EPAM


45 anos


E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, o outro Marcelo, os tanques, a Grândola, as fardas, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda a parafernália de datas e de siglas pouco disserem aos que hoje passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, para quantos vão para hostels, sem saberem onde e o que foi Champigny, os bivaques da guerra colonial ou a triste sina nos paradeiros de exílio? 

É que cada vez é mais difícil fazê-los ouvir falar da "frigideira" do Tarrafal, da “estátua”, das patifarias do Botas de Santa Comba, de quem foi o Manuel Tiago ou onde eram as tipografias da clandestinidade. E que sabem eles do Copcon ou da 5ª Divisão, do MDLP ou do ELP, do MES ou a FEC-ML? Por quanto tempo será possível fazê-los escutar o Furtado ou o Fialho a lerem comunicados do "posto de comando", a Luísa Bastos a gritar o "Avante Camarada", a poética neorealista com a rima prenhe de "povo", a saltitante “Gaivota", o hino marcial da Intersindical a conclamar as "massas" p'ró que der e vier? E até quando os poderemos manter atentos às memórias do 11 de março ou da Constituinte, do padre Max ou do cónego Melo, das bombas da reação (que não passaria mas afinal passou) ou do PRP? 

Alguns dirão ser uma causa perdida, que a nossa compulsão comemorativa anual, de cabelos brancos e cravos vermelhos, mais não é do que a desesperada tentativa de nos agarrarmos ao tempo, como os republicanos que estiveram na Rotunda e não se calaram com essa história até ao dia em que o chanfalho do Gomes da Costa os pôs com triste dono, por quarenta anos.

E, no entanto, será que dizer “fascismo nunca mais” é uma palavra de ordem datada, nestes tempos de Trump, de Salvini, de Le Pen ou de Orbán? Alguém se atreve a dizer que lutar contra o racismo, a xenofobia, a discriminação das minorias é uma luta do passado? Será que, nestes dias de “fake news”, não tem sentido clamar por uma informação livre, pela verdade, sem censura nem distorção dos factos? Ao vermos a extrema-direita já ali na esquina, não será afinal uma boa razão para as novas gerações perceberem a importância de comemorarem uma data que continua a ser o glorioso contrário de tudo isso?

Eu, por mim, já optei. Orgulhosamente, de cravo ao peito, com uma força proporcional à irritação que isso provocará sempre noutros, direi: viva o 25 de abril, sempre!

25 de Abril, sempre!



quarta-feira, abril 24, 2019

45 anos


Este é o título do artigo que hoje publico no Jornal de Notícias e que pode ser lido aqui.

Nota

Alguns comentadores deste blogue, por coincidência sempre aqueles que vivem refugiados num confortável anonimato ou em pseudónimos, procuram...