No post anterior, falei da genialidade do "Charlie Hebdo",
acrescentando: "nem sempre concordando com a crueldade crítica que
utilizava". Com efeito, como se nota pela capa que acima reproduzo, o
jornal ia (vai) frequentemente muito para além do que parece ser razoável,
nomeadamente em termos de crítica das religiões - área a que sou completamente
alheio, porque não faço parte de nenhuma "freguesia". Porém, tenho
consciência de que as confissões religiosas fazem parte da sensibilidade íntima
das pessoas, pelo que sempre entendi que deve ser mantida alguma contenção no
tratamento deste tipo de matérias, reconhecendo embora que tudo isto se situa
numa zona cinzenta muito difusa e de difícil tipificação.
Neste domínio,
tenho a sensação de que os católicos costumam ser bastante mais tolerantes,
embora me recorde da polémica criada pelo "cartoon" do meu amigo
António, quando colocou um preservativo no nariz do papa, ou mesmo de Herman
José, quando retratou a raínha santa Isabel. No primeiro caso, houve protestos
e um processo, mas creio que tudo ficou por aí, no segundo, o humorista foi
afastado da RTP.
Outros casos
são bastante mais complexos. O politicamente correto prevalecente não
permite que disto se fale muito, mas a realidade é que é notório que, nas
últimas décadas, a pressão social pune muito mais, entre nós, o tratamento
livre dos temas judaicos do quem ouse atentar contra temáticas islâmicas. O
trauma do extermínio judeu pelos nazis criou um formidável policiamento social,
no tocante ao anti-semitismo, que é muito superior à consciência no combate à islamofobia.
E é óbvio que o mundo islâmico se deu conta disto e não aprecia esta
desigualdade de tratamento. Essa é também a dificuldade que se pressente em
algum islamismo moderado, o qual, condenando com sinceridade barbáries como a
de ontem, não pode deixar de refletir algum mal-estar que, no seu seio, é
suscitado pela forma como a sua simbologia é tratada no humor e na caricatura.
A grande e
essencial diferença entre as sociedades livres e as sociedades totalitárias é
que, nas primeiras, há o primado da lei: quem se sente ofendido queixa-se à
Justiça e esta, se acaso entender que os limites da liberdade de expressão
foram ultrapassados, lá estará para punir, se for esse o caso. O mundo
totalitário, que está instalado na cabeça dos "jihadistas" do
"Estado islâmico" ou dos assassinos franceses dos jornalistas do
"Charlie Hebdo" carateriza-se por não reconhecer a Justiça
democrática e decide fazer
"justiça" pelas próprias mãos, à luz da leitura extremada da sua
doutrina religiosa. Não há compromisso possível nesta matéria e a liberdade
deve ser defendida a todo o preço.
Esta não é uma
questão fácil de tratar e menos fácil se torna num tempo traumático como o que
vivemos. Mas temos a obrigação de ser honestos connosco mesmos e não metermos a
cabeça na areia. Eu não meto.