terça-feira, abril 28, 2015

Diplomacia democrática


A diplomacia portuguesa, em tempos de democracia, tem sido bastante preservada das flutuações e dos ciclos políticos. Salvo casos pontuais, em que a titularidade das Necessidades foi raptada por baixas “vendettas”, a emergência de novos governos não conduz, em geral, à mudança de embaixadores ou de chefias nas Necessidades. Esta salutar prática, que muito nos prestigia perante o mundo, foi inaugurada por Mário Soares em 1974 e muito contribuiu para transformar a política externa numa verdadeira política de Estado, que tradicionalmente se situa para além das clivagens partidárias.

O cumprimento dos mandatos tornou-se, desta forma, uma regra habitual no nosso aparelho diplomático. Contudo, também não é de estranhar, que, chegado o momento em que haja que substituir as chefias que herdaram, os novos governos optem por colocar, em determinados postos mais estratégicos, figuras do quadro diplomático que entendam que melhor podem levar à prática as suas orientações. E, aqui ou ali, alguma proximidade pessoal, ou mesmo política, acaba frequentemente por se refletir nessas escolhas. Nunca esta orientação foi, aliás, posta em causa no passado.

A razão por que trago esta questão a terreiro prende-se com uma situação particular que se vive no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Anuncia-se, neste fim de mandato, um importante movimento de embaixadores, decidido pelo atual ministro. Não conheço, nem me interessa conhecer, as escolhas feitas, mas pergunto-me se não seria “fair” aguardar pelo governo que sairá das eleições de outubro para proceder a tais mudanças, tanto mais que não existe nenhum quadro temporal que obrigue a que essas alterações se façam necessariamente agora. Recordo que, no passado, isso foi feito, tendo o principal partido da oposição sido consultado quando houve lugar a nomeações próximas de atos eleitorais. Este problema, aliás, deveria preocupar o senhor presidente da República, que nesta matéria terá a última palavra.

Mas há ainda uma outra questão, de sentido similar, que me parece também muito preocupante. Ela prende-se com a hipótese deste governo poder ser tentado a intervir na recondução ou substituição de adidos e conselheiros técnicos que estão hoje colocados em missões multilaterais e em certas embaixadas. Trata-se, neste caso, de quadros que não pertencem à carreira diplomática, destacados de diversos departamentos ministeriais. Tomar agora decisões sobre o futuro desses técnicos significa privar os futuros titulares de ministérios de usufruírem da mesma liberdade de escolha dos seus antecessores.

Tenho o ministro Rui Machete por uma personalidade política respeitadora das regras da diplomacia democrática. Espanta-me que queira agora vir a subscrever mudanças de pessoal que sabe que vão repercutir-se fortemente num futuro que, em princípio, já não lhe caberá gerir.

A hipótese de uma alternância política obriga à observância de regras que, nem pelo facto de não estarem escritas, deixam de ser essenciais à convivência democrática. Preservar o equilíbrio e o respeito pelo espaço de afirmação decisória dos opositores faz parte do espírito essencial das instituições. E, já agora, do 25 de abril.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, abril 27, 2015

Cansaço?



- Andas cansado do blogue?

- Por que é que perguntas? Nota-se muito?

- Claro que se nota! Vejo-te mais irritado, colocas coisas antigas, parece que estás cada vez mais sem paciência.

- Talvez tenhas razão. Tenho imenso que fazer e o blogue, em alguns dias, torna-se um pouco pesado.

- Por que não interrompes uns tempos? Ou não diminuis o ritmo? Tem mesmo de ser diário?

- Não tem de ser, mas habituei-me a isso, há mais de seis anos. É quase um vício!

- Pois é, mas há vícios maus, como sabes.

- Vou pensar nisso.

- Pensa mesmo, mas livra-te de suspender o blogue, ouviste?!

(Conversa com um amigo, ontem)

domingo, abril 26, 2015

"Evasões"


Nas últimas sextas-feiras de cada mês, escrevo na magnífica revista "Evasões", que é agora distribuída gratuitamente com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias", uma página com apontamentos apreciativos sobre um restaurante. Nela assino como "gastrófilo", que é exatamente aquilo que sou e pretendo continuar a ser - alguém que aprecia uma boa refeição, sem necessariamente se reivindicar da qualificação de especialista na arte gastronómica, que deixo para quem verdadeiramente sabe.

É meu objetivo procurar destacar restaurantes que, não sendo "topo de gama", são excelentes "utilitários" e oferecem uma boa relação qualidade/preço, pelo que o trabalho dos seus proprietários e empregados merece ser sublinhado e apoiado. 

As crónicas podem ser acompanhadas no meu (errático) blogue "Ponto Come".

sábado, abril 25, 2015

Dia da Liberdade


Hoje, 25 de abril, dia da Liberdade, libertei-me pela primeira vez da "obrigação" de escrever diariamente neste blogue. Alguma vez havia de ser...*

* A menos que esta nota sirva de post...

sexta-feira, abril 24, 2015

O empregado

"Temos uma situação de mais emprego, melhor emprego e menos desemprego" mente um senhor que o Estado emprega como Secretário de Estado para o dito.

Abril no feminino

41 anos depois da Revolução, é muito triste verificar que só 31 mulheres acederem a cargos de ministro em Portugal. Os homens foram 498.

O machismo é uma nódoa neste abril.

Questões incómodas


É dos livros que o comentador dá a sua opinião, na esperança de convencer o leitor. Não é o caso deste texto. Tenho apenas duas questões. Aliás, incómodas.

Nos últimos dias, todos fomos abalados pela tragédia humanitária no Mediterrâneo. Assistimos aos esforços dos dirigentes europeus para montarem uma operação que, simultaneamente, abra as portas da Europa a um número limitado de migrantes que lhe chegam do norte de África, somada a medidas restritivas ao tráfico de pessoas que, praticamente todas as noites e desde há anos, tentam dar às costas do eldorado continental em que vivemos, para atravessar a fronteira da miséria.

De certo modo, é uma decisão “envergonhada”: procura evitar-se a repetição das tragédias mas, no fundo, o que se tenta é pôr cobro à entrada desses migrantes. Como “compensação”, cria-se uma espécie de quota, que sossega as consciências. É esta a solução possível? Haveria outra? Deixar entrar toda a gente? Não sei.

Se olharmos bem para a origem geográfica destas migrações, facilmente concluiremos que é a permissividade da costa da Líbia que hoje as favorece. Naquele país não existe algo a que possamos chamar um Estado, pelo que os cidadãos da África subsaariana que o atravessam têm bem melhores condições do que as que existiam no tempo de Kadhafi para se entregarem às mãos dos traficantes, para as suas sinistras jornadas marítimas. Recordo que fomos “nós”, a Europa, quem liquidou Khadafi.

Daqui decorre a segunda questão, a que também não sei responder.

A rejeição das barbáries de Saddam Hussein sobre o seu povo estiveram por detrás da justificação do seu derrube. Desaparecido o ditador, o Iraque e a região caíram num caos e, centenas de milhares de mortos depois, ali se abriram as portas para o sinistro Estado Islâmico.

No Egito, todos olhámos com esperança para a “primavera árabe” que emergiu da praça Tahrir, que derrubou Mubarak e possibilitou eleições. Depois, foi o que se viu: a experiência democrática levou os radicais islâmicos ao poder, os quais, de imediato, tentaram hegemonizá-lo. Regressaram os militares e o mundo ocidental parece hoje aceitar, embora de sobrolho democrático cerrado, o novo regime ditatorial.

Quem é que quer responder a esta questão? É preferível conviver com um ditador, por mais sinistro que seja, que preserve uma estabilidade nacional e regional pela força ou, por um proselitismo democrático, devemos arriscar abrir as portas ao caos?

Temo que, um destes dias, venhamos a ser tentados a repetir a frase de Franklin D. Roosevelt sobre o ditador nicaraguense Somoza: “Ele pode ser um filho da puta. Mas é o nosso filho da puta”.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 23, 2015

Confiança

Ontem, ouvi na televisão o presidente do Montepio Geral afirmar, com plena e determinada convicção, que os respetivos depositantes podem, em absoluto, estar descansados quanto à possibilidade de terem os seus depósitos e aplicações garantidos.

Há uns anos, uma afirmação destas, feita com toda esta solenidade, dar-me-ia uma imensa garantia. Eu ficaria sossegado quanto aos riscos que estava a correr e, em especial, determinaria as minhas decisões fortemente ancorado nestas "rassurantes" declarações.

Porém, ao ouvi-las ontem, a minha primeira reação foi precisamente oposta: "se ele se sente na obrigação de vir a público dizer isto, é porque alguma coisa vai mal". 

Há uns meses, todos assistimos a declarações de importantes titulares de cargos políticos a dar garantias solenes de que o BES era uma entidade acima de toda a suspeita de insolvência. Depois, foi o que se viu.

Mais tarde, assistimos a afirmações perentórias a assegurar que os portugueses não gastariam "um único euro" com a solução dual mau/bom banco. Hoje já todos perceberam que, salvo um improvável "milagre das rosas", o contribuinte português vai ter de esportular algum para a fatura final daquela imaginativa "engenharia financeira".

Cada vez mais, os portugueses estão a habituar-se a olhar a realidade político-financeira como olham as declarações dos dirigentes do futebol sobre a estabilidade dos treinadores: está tudo bem, até ao dias em que esteja tudo mal.

Muitos olharão para isto com um sorriso irónico. Como se de uma inevitabilidade se tratasse. Eu acho que isto é uma imensa tragédia.

A Rússia em Bruxelas

Para o influente comentador do "Financial Times" Wolfgang Munchau, uma eventual saída da Grécia do euro, se viesse a ser acompanhada de uma ajuda financeira da Rússia ao país, traduzir-se-ia numa verdadeira "compra" por Moscovo de um lugar no Conselho Europeu. Sendo um cenário hipotético e longínquo, não deixa de suscitar a importante questão sobre o que poderá vir a suceder se um membro da União vier a criar dependências ou razões estratégicas para se colocar numa posição contra ou independente do "mainstream" das orientações comunitárias. A União Europeia ainda nos pode trazer muitas surpresas.

quarta-feira, abril 22, 2015

Pires de Miranda e a diplomacia económica


Era um cavalheiro urbano e elegante, com mundo, inteligente e sabedor das coisas económicas, com um sorriso social algo distante, mas de trato pessoal simpático. Pelo menos, foi essa a imagem que dele guardei do escasso tempo em que foi ministro dos Negócios estrangeiros, quando Cavaco Silva chefiava o governo, bem como dos poucos contactos anteriores e posteriores que com ele tive. Já antes havia sido ministro do Comércio e Indústria e presidente da Comissão de Integração europeia. Profundo conhecedor do mundo dos petróleos, havia também sido nomeado "embaixador político", para especificamente tratar dessa questão. Nasceu em 1928 e morreu ontem.
 
Na sua breve passagem pelas Necessidades (1985-87), deu sempre ares de estar sempre algo desconfortável no seu papel. Na gíria da casa, atendendo à sua formação, era conhecido como o "petroleiro", sendo então chamado "cacilheiro" ao seu secretário de Estado da Cooperação, o comandante (da Marinha) Eduardo Azevedo Soares.
 
Embora nunca tenha tido a certeza de quem foi o verdadeiro "pai" da ideia, foi com Pires de Miranda na chefia da diplomacia que se processou uma das mudanças estruturais mais polémicas que o MNE sofreu. Tratou-se da eliminação da Direção-geral dos Negócios económicos, que foi fundida com a Direção-geral dos Negócios políticos, para dar origem à Direção-geral dos Negócios político-económicos, de que viria a ser titular José Cutileiro, também "embaixador político". Esta reforma acabou por fazer desaparecer parte significativa da dimensão económica do MNE, que acabou por ser claramente ultrapassada pela dimensão política, numa casa onde, como costumo dizer (para desagrado de muitos), o tropismo natural é para "mais Kosovo e menos batatas". Só não esperava isto quem desconhecesse o MNE. Concedo que a ideia parecia teoricamente boa: dar maior coerência ao tratamento integrado dos espaços regionais. Mas falhou redondamente e a máquina diplomática portuguesa sofreu imenso com isso. 
 
Anos mais tarde, procurar-se-ia corrigir a medida com a criação do Gabinete de Assuntos Económicos (GAE) e, mais tarde, da Direção-geral dos Assuntos Técnico Económicos (DGATE). Com o governo que agora cessa funções, a machadada na dimensão económica do MNE seria definitiva: a DGATE foi extinta, a AICEP "pareceu" integrar o MNE por algum tempo, isto é, até ao momento que Paulo Portas, irrevogavelmente, a levou no seu bolso político para o palácio das Laranjeiras, como veículo para o seu saltitar entre aeroportos, na versão moderna do "Oliveira da Figueira", a promover os nossos produtos. Conjunturalmente pode ter sido um remendo útil, institucionalmente é mais um desastre.
 
Volto ao engenheiro Pedro Pires de Miranda (na foto, à direita, com Jacinto Nunes e Mota Pinto), para aqui deixar registada uma sentida nota de pesar pela sua desaparição.   

Os comentadores económicos

Com o debate que aí vai sobre o documento económico apresentado pelo PS, dei-me conta de que há dois grupos bem distintos de comentadores: aqueles que são "próximos dos socialistas" e os "independentes". 

Não faltará ninguém?

Memorabilia diplomatica (XXVIII) - Lei seca


Lembro-me como se fosse hoje, e já passaram cerca de quatro décadas. Levámos aquela delegação líbia a jantar ao "Faz Figura", que estava então muito na moda. À mesa, notámos que nenhum deles tocou em álcool, optando por sumos ou água mineral. Um grande contacto posterior com muçulmanos veio a ensinar-me que a leitura dos ensinamentos do Corão, no tocante às bebidas alcoólicas, é muito variável. Na Líbia, Mouammar Khadafi tinha proibido, em absoluto, a importação e o consumo de álcool. Por essa razão, não estranhei a atitude coletiva do grupo.

No dia seguinte, um dos motoristas que nos acompanhava na ronda de visitas empresariais e institucionais à delegação líbia, deixou cair: "Sabe que a noite de ontem foi longa, senhor doutor...".

Não percebi. Tínhamos saído do restaurante bastante cedo! Entre risos, ele explicou: "Os líbios sabem "da poda": pediram-nos logo para ir ao Tamila. Alguns saíram de lá "aos bordos"! E a festa continuou no hotel!" Não cuidei de saber mais pormenores.

Onde estarão hoje esses líbios?

Democracia(s)


Contado por um amigo alemão, num jantar na noite de ontem.

Falava ele com um militar e fez-lhe notar que era incoerente que um exército moderno mantivesse uma estrutura interna quase "ditatorial", com uma pressão hierárquica esmagadora e uma pressão psicológica sobre os soldados às portas da violência e da humilhação.

O militar foi muito claro: "Nós existimos para proteger a democracia, não para a praticar".

Ficou tudo dito!

terça-feira, abril 21, 2015

Os penduras

Este blogue está aberto à crítica, nela se incluindo, naturalmente, a expressão de posições contrárias àquelas que são defendidas nos seus posts. Espero, assim, poder continuar a acolher nos comentários as opiniões de quantos decidam exprimi-las.

O que este blogue não está aberto é a servir, no espaço para comentários, para mera colagem de extratos de sites, blogues ou outros veículos de opinião, aqui colocados por quem não diz o que pensa e se limita a "pendurar" as ideias dos outros.

Preconceitos

Devo confessar que sou um pouco preconceituoso: estava intimamente à espera que a maioria cessante viesse dizer mal das propostas económicas apresentadas pelo PS. É um defeito meu não acreditar num mínimo de abertura de espírito daquela gente. Reconheço isso! 

Em que posição é que eu ficaria se as propostas tivesse sido acolhidas como uma contribuição positiva e construtiva para o debate económico nacional? Qual seria a minha reação se os porta-vozes do poder de turno tivessem vindo a terreiro dizer que saudavam algumas das ideias agora propostas e, em especial, se se mostrassem dispostos a discuti-las e a encarar, à luz de uma serena abertura de espírito, uma revisão das suas próprias ideias? Nem quero pensar no que seria a minha cara de contumaz preconceituoso!

Felizmente, a maioria "arrasou", em poucos minutos, as propostas do PS! Se eu ainda fosse mais preconceituoso do que já sou, diria que mal tiveram tempo para ler o que foi divulgado. E, se o cúmulo do preconceito fosse mesmo o meu maior defeito, era capaz de afirmar que, fosse qual fosse o conteúdo das propostas, a reação desta ex-maioria que está de saída seria basicamente a mesma.

É o que dá ser preconceituoso! Nunca mais aprendo!

Olha!


Ontem, ao (re)ler o "Só", de António Nobre (para o que me dá!), deparei com este extrato do poema "A vida":

(...)

Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da política!
Olha um artista a ler, soluçando, uma crítica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquele outro que o tem... mas não sabe escrever!

(...)

Paris, 1891

Richard Anthony

 
Nunca soube bem porquê, mas o "Ce Monde" disse-me sempre muito.
 
Por isso, mais do que o "C'est ma fête", do que o "Tchin tchin" ou do "Donne-moi ma chance", é dela que me lembro mais, no dia em que o Richard Anthony desapareceu. E por que será que sei ainda, de cor, as letras patetas de todas estas canções? 

segunda-feira, abril 20, 2015

Gente a sul da sorte


A ideia de que centenas de pessoas morreram afogadas num porão de um navio, no meio do Mediterrâneo, quando tentavam chegar às costas europeias, em busca de um futuro distante da miséria das suas origens africanas, é um murro no estômago de todas as pessoas com consciência.

Como sempre acontece perante casos destes, as boas almas europeias sobressaltaram-se, na maioria dos casos, presumo, com real sinceridade. E, para darem um ar "operacional", as autoridades anunciaram logo vão fazer reuniões de emergência e coisas de igual quilate (e talvez um "rigoroso inquérito", como por cá é moda...) 

Não quero ser cínico, mas não consigo deixar de perguntar: o que é que vão fazer? Já sei que a resposta vai ser "lutar contra as máfias do tráfico de pessoas", que vivem à custa da exploração daquela pobre gente, com travessias de imenso risco. 

Até aí estamos todos de acordo. E depois? Está a Europa disponível para acolher no seu solo os muitos milhares de africanos que chegam às costas da Líbia (onde hoje não há Estado)? E quantos? E como os distribui? Ou será que se está apenas a aproveitar esta indignação para, através do pretexto da luta contra as máfias, tentar, afinal, evitar que os africanos entrem no continente europeu? Será que a Europa está disponível para dar uma solução de vida a essa gente? Ou será que apenas pretende um modelo como aquele que existe em Ceuta, com centenas de pessoas penduradas nas redes de metal que encerram a primeira praça da nossa expansão? Não será isso, lá no fundo, o "sonho" europeu?

A Europa tem de ter a coragem de dizer, alto e bom som, sem eufemismos, que não tem condições para receber milhares de cidadãos oriundos de Estados africanos (e outros) que se revelam incapazes de dar condições de vida decentes a essas pessoas. E tem de ter a frontalidade de dizer que, apesar dessa gente passar por lá fome, violência e imensas provações, não está disposta a abrir-lhes as suas portas. Mas tem de assumir isto, caramba! Andar com discursos piedosos a "fingir que faz" é de uma imensa hipocrisia política. 

O que a Europa podia fazer, e não faz, é promover políticas decentes e eficazes de cooperação para o desenvolvimento nos Estados emissores de emigrantes, que fossem estímulos para a fixação das populações. Basta consultar as conclusões das cimeiras entre a UE e os países africanos para se ter um completo e bem elaborado catálogo do que nelas se proclamou, assinou e não se cumpriu.

Memorabilia diplomatica (XXVII) - Um charuto e um cognac


Era um diplomata bastante atípico, como algo atípica tinha sido a sua carreira. Solteiro e "loner" por opção, o 25 de abril apanhou-o no estrangeiro e o facto de se ter mantido sempre em postos distantes da Europa, bem como a circunstância de viver desligado da escassa família que tinha em Portugal, não ajudava a que conhecesse bem a especificidade dos conflitos políticos que marcaram os nossos agitados anos 70 e se refletiam sobre o ambiente nacional.

Um dia, Mário Soares chegou ao país em que ele estava estava colocado como embaixador. Ia na sua qualidade de líder do PS, que estava então na oposição, para uma reunião da Internacional Socialista, acompanhado de Maria Barroso.

O embaixador tinha ido buscá-lo ao aeroporto. No carro, a caminho do hotel, para fazer conversa, Soares disse algumas generalidades sobre a situação política em Portugal. Corria o ano de 1980. Sá Carneiro era primeiro-ministro do governo da Aliança Democrática (PSD/CDS), Ramalho Eanes presidente da República. O embaixador, contudo, não parecia muito interessado na situação interna de Portugal, mas lá foi deixando uns comentários esparsos, sempre vagos e de circunstância. Preenchia, com esse comportamento, o "cliché" e a caricatura de uma certa carreira que então havia.

A certo passo da conversa, Soares, tendo-se dado conta de que o representante diplomático português estava muito distante da complexa situação interna, deixou uma nota de tonalidade pedagógica.

- Sabe, senhor embaixador? Vivemos em Portugal tempos muito difíceis. As relações entre o presidente da República e o primeiro-ministro são hoje muito tensas. Eu próprio, como saberá, tenho uma relação complexa com o general Ramalho Eanes. E, com o dr. Sá Carneiro, as coisas também não estão brilhantes.

É então que o embaixador, parecendo sair de outra galáxia, avançou com esta:

- Bom, nós sabemos que as coisas, na prática, não serão exatamente assim. Mas percebe-se que a ideia de que esses conflitos existem é essencial para animar a vida democrática, para alimentar os jornais e os comentadores. Mas estou em crer que os senhores, não obstante as divergências que os possam separar pontualmente aqui ou ali, mantêm, como em muitas democracias modernas, um espaço para um entendimento de fundo e para um bom relacionamento pessoal. Por isso, não me admiraria nada se, por vezes, ao final do dia, o dr. Mário Soares, o dr. Sá Carneiro e o general Eanes, se encontrassem para um charuto, à volta de um cognac e de uma boa conversa. E também entendo que o não queiram revelar. Estão no seu pleno direito.

Mário Soares deu um salto no banco do carro!

- Um charuto e um cognac?! Ó senhor embaixador. Eu nunca me encontraria com o dr. Sá Carneiro às escondidas! E muito menos com o general Eanes. Mas o senhor embaixador faz ideia do que é Portugal nos dias de hoje?

O embaixador balbuciou alguma coisa, Soares bufava, Maria Barroso abafava uma elegante e discreta risada  e um silêncio pesado caiu sobre o carro. A despedida entre Mário Soares e o embaixador, à porta do hotel, não foi das mais calorosas, "to say the least".

domingo, abril 19, 2015

Etiópia


Há dias, ao olhar o catálogo da exposição - que imagino excelente! - organizada sob o patrocínio do embaixador português em Adis Abeba, António Luís Cotrim, sobre a fase contemporânea das relações entre Portugal e a Etiópia, que agora fazem 500 anos (!), descobri, na respetiva capa, a fotografia que me faltava. Eu explico.

O anedotário popular português durante a ditadura, era feito de pequenas historietas, que se pretendiam ridicularizadoras do regime e das suas figuras. Vistas à luz do humor de hoje, essas graças têm uma inocuidade quase infantil. Mas, à época, repetidas à boca pequena nos empregos e nos cafés, constituiam-se como um subtil discurso de resistência, denegridor da seriedade formal com que as personagens do poder sempre gostam de se revestir.

Uma dessas anedotas dizia respeito à chegada a Portugal, em 26 de julho de 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassié. Esta visita de Estado, integrada numa frustrada sedução de líderes "do sul" para amenizar a pressão internacional sobre a política colonial portuguesa, processava-se cerca de um ano depois da grande "chapelada" eleitoral que havia colocado o contra-almirante Américo Tomaz no palácio de Belém. O sufrágio havia sido comprovadamente recheado de fraudes, o que, para muitos, terá inviabilizado a eleição do candidato opositor, o general Humberto Delgado. Por essa razão, a legitimidade política de Tomaz, como presidente, era, à época, ainda muito contestada em largos setores portugueses.

O Negus, com um capacete esplendoroso coberto de penas, foi recebido no Cais das Colunas, em Lisboa, em "grande estadão", pelo novo presidente da República, este com o "bicórnio" de gala. E é assim que a pequena "história" humorística regista o que teria sido o primeiro contacto entre os dois:

- Eu sou Américo Tomaz, presidente de Portugal.

- Eu Selassié (leia-se "sei lá se é")...

*Até agora, não tinha conseguido a fotografia ilustrativa do momento caricaturado. Ela aqui fica agora, imagino que extraída dos arquivos etíopes.

Nota

Alguns comentadores deste blogue, por coincidência sempre aqueles que vivem refugiados num confortável anonimato ou em pseudónimos, procuram...