Na língua portuguesa, a expressão é raramente utilizada. Angelismo é uma atitude de inocência ou credulidade, que descarta, ingenuamente, motivações mais interesseiras. Ao atentar na onda de loas com que foram recebidas as últimas declarações de Ângela Merkel sobre a Europa, claramente sugerindo a Alemanha como impulsionador de um processo de autonomização em matéria de defesa e segurança, perguntei-me se não estaríamos a embarcar num novo «angelismo», desta vez com etimologia derivada de Ângela e já não de anjos. Mas, no segundo seguinte, também me interroguei sobre que outras alternativas estão disponíveis no mercado de alianças.
Donald Trump, na brutalidade de muitas das suas posturas, tem a curiosa vantagem de tornar as coisas muito simples, por mais complexas que elas sejam. A nova América projeta uma agenda de afirmação nacional de interesses com imensa transparência, descurando deliberadamente a retórica acomodatícia de que, por muitos anos, se alimentou o «politicamente correto» das relações internacionais. Trump diz ao que vem: o relacionamento externo da «sua» América far-se-á exclusivamente nos termos que melhor corresponderem aos seus objetivos nacionais. E di-lo «alto e bom som», para óbvios efeitos internos, com isso reduzindo muitas das hipóteses de recuo ou compromisso.
Angela Merkel e os aliados europeus da América tiveram o privilégio de ouvir, sem ambiguidades, as novas regras do jogo, que vão do comércio internacional, passando pelas regras ambientais, chegando à segurança e defesa. E a Alemanha, que sempre me pareceu ser o país europeu que mais cedo percebeu o que Trump podia vir a representar, não tardou a tirar uma conclusão simples: agora, pela primeira vez desde há décadas, a Europa só pode contar consigo própria.
Esta constatação acarreta, contudo, alguns problemas.
Desde logo, de que Europa falamos, se dos bálticos e da Polónia que vivem ainda na situação pós-traumática de uma Guerra Fria que acham reiniciada, ou de quantos, ainda que sob uma aparente firmeza conjuntural face ao autoritarismo arrogante de Moscovo, estão mais do que desejosos de encontrar mecanismos de acomodação com a Rússia? A começar, sejamos claros, pela própria Alemanha e pela França, porque as fanfarronices de Macron face a Putin devem ser lidas à luz da necessidade de dar-se ares de «duro», num contraste fácil com Hollande, até às eleições legislativas.
Uma segunda questão prende-se com o facto de Trump não ter confirmado explicitamente a garantia última de defesa coletiva decorrente do artigo 5° do Tratado de Washington. Não o fez por acaso e isso não passou despercebido. Num mero contrato, pode-se funcionar numa base de boa fé. Numa aliança, que é feita de princípios, valores e objetivos comuns, é a confiança que prevalece. E, quando ela deixa de existir, é a desconfiança que emerge. E uma forte desconfiança projeta-se inevitavelmente sobre a eficácia, nos dias que correm, do compromisso transatlântico. Dir-se-á que Trump marcou, na palavras, a sua distância face a Moscovo e esse é o cimento essencial de aliança que sempre federou a NATO. Mas também há quem se não esqueça que o mesmo Trump, meses atrás, tecia loas a Putin e hoje parece recuar nessa estranha deriva apenas pelas trapalhadas a que esse caminho o conduziu.
Mas há um terceiro problema que, neste estado de orfandade europeia da afetividade do outro lado do Atlântico, está a emergir. Trata-se do lugar futuro da Alemanha no quadro dos poderes europeus.
Por essa Europa fora, a perspetiva de um papel central da Alemanha numa Europa de segurança e defesa é uma ideia pouco consensual. Claro que, a seu lado, descontado o Reino Unido no pós-Brexit, estará a França – com umas forças armadas poderosas, com capacidade de projeção de forças, um poder nuclear, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Mas a Alemanha, para muitos (sejamos claros, também para si própria) continua a ser um fantasma histórico. Ver a Alemanha a rearmar-se não é uma ideia sossegante para muitos, embora talvez se trate já de um preconceitos sem sentido. Mas um novo «angelismo» não parece fácil de adotar numa Europa onde o passado está sempre à espreita.