terça-feira, novembro 08, 2016

O que aí pode vir

A emergência na eleição americana, com hipóteses reais de sucesso, de um candidato com um perfil fora do sistema suscita uma questão de fundo sobre a própria essência do modelo político em vigor nos EUA.

Ninguém pode colocar em causa a representatividade de Donald Trump, o facto das suas propostas configurarem uma agenda de preocupações que atravessa largas faixas do eleitorado americano. Pode argumentar-se que algumas dessas ideias assentam numa perspetiva preconceituosa e caricatural, num primarismo perigoso, às vezes apoiado em mentiras e distorções.

E quem é o juiz nessa avaliação? Se o maior dos ignorantes tem um voto idêntico ao do mais sábio dos cidadãos, então há que convir que o valor político das ideias de ambos, por muito diferente que seja a respetiva informação, se equipara democraticamente no momento do sufrágio.

Nos EUA, no passado, as elites republicana e democrata foram sempre capazes de produzir candidatos oriundos do sistema, com um perfil que respeitava uma espécie de ideologia do "mainstream", não obstante as suas diferenças. Um voto radical de qualquer dos lados acabava por ser recolhido pelo candidato que lhes estava mais próximo, embora ele próprio estivesse longe de traduzir uma agenda extrema.

Nesta eleições, a candidatura democrática conseguiu (pela última vez?) preservar esse modelo de seleção. Hillary Clinton foi capaz de derrotar nas "primárias" Bernie Sanders, uma figura com uma agenda “liberal” (na leitura americana da palavra, que se aproxima da europeia “esquerda”) algo radical. Agora, Clinton espera que os potenciais votantes em Sanders, quanto mais não seja para travar Trump, a apoiem, isto é, reforcem no sufrágio a candidata da elite democrática.

O mesmo não sucedeu no campo republicano: por uma "desblindagem" do processo de seleção, somada à emergência de uma concorrência medíocre nos candidatos da elite republicana, Trump acabou por ser o escolhido. A sua agenda programática acaba por ser uma tradução mecanicista (perdoe-se-me o conceito marxista) da vontade das bases. No fim de contas, poder-se-á mesmo dizer que, em termos de representatividade, Trump está mais próximo da vontade da esmagadora maioria de quantos o apoiam do que Clinton. É chocante escrever isto, mas é uma realidade.

O futuro do sistema político americano poderá vir a depender desta eleição.

Se Clinton ganhar, há quem sustente que a máquina republicana irá repensar o seu sistema de seleção, de modo a evitar novos Trump, mesmo com as consequências que isso possa vir a ter na revolta de franjas republicanas. Trump assusta muitos republicanos, muito embora o seu sucesso tenha contribuído para consagrar aquela que já era uma acentuada radicalização conservadora, a qual num passado recente, afetou seriamente a governabilidade do país. Uma vitória de Clinton, em si mesma uma presidente que entraria na Casa Branca sem a menor onda de entusiasmo ou prestígio mobilizador, se não vier a ser acompanhada por uma mudança no Senado favorável aos democratas, poderá converter os EUA num país bloqueado na sua decisão interna.

Se Trump ganhar, os Republicanos não mudarão, pelo que a assustadora deriva do sistema irá aprofundar-se, tanto mais que, no campo oposto, Clinton só conseguiu o apoio de Sanders pela promessa de que futuras “primárias” reflitam mais diretamente os “humores” populares. Uma “desblindagem” do Partido Democrático, num tempo presidencial de Trump, abriria a América a uma bipolarização que faria com que a eleição presidencial de 2016 acabasse por ficar para a História como o debate “civilizado” que esteve muito longe de ser.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

segunda-feira, novembro 07, 2016

François Hollande


Com a publicação de um livro da autoria de dois jornalistas, em que são reportados comentários de François Hollande a várias figuras e instituições francesas, o atual ocupante do Palácio do Eliseu deu uma machadada final naquela que era já uma muito remota hipótese de recandidatura. A França é muito dada a este tipo de indiscrições escritas, pelo que o livro de José António Saraiva nunca seria um escândalo por lá. 

(Tenho algures um outro livro, também de dois jornalistas, com conversas com Nicolas Sarkozy, igualmente "politicamente incorretas", mas que não iam tão longe como as do político socialista e que, se bem me recordo, em nada contribuiram para a sua derrota, em 2012. Contra Hollande, recorde-se.)

Sei que isto não deve ser muito popular, mas devo confessar que gosto de Hollande como pessoa. Conheci-o em Lisboa, creio que em 1999, quando cá veio a uma conferência no Hotel Ritz, numa iniciativa promovida por Mário Soares e António José Seguro, em que ambos falámos sobre o estado da Europa. Revelou-se um homem cordial e afável, brincalhão e bem disposto. Tenho um fraco por pessoas assim.

Politicamente, Hollande nunca foi "grande espingarda". Assessor de Mitterrand, nunca por este (nem por Jospin) foi levado para o governo, o que pode querer dizer alguna coisa. Gestor hábil da máquina socialista - um "saco de gatos" muito difícil - acabou por emergir como uma espécie de "média aritmética" nas primárias que levaram à sua seleção como candidato da esquerda às eleições presidenciais, numa França então muito cansada da hiperatividade arrogante de Sarkozy. Ganhou com um discurso bastante mais à esquerda do que presidência que depois faria. Portugal deve-lhe uma política fiscal contra os "ricos", que fez com que para cá emigrasse muito capital, que comprou meia Lisboa.

Como presidente, Hollande demonstrou não ter uma estratégia clara para os problemas internos do país, da questão da competitividade à integração social das comunidades, dando sinais contraditórios com algumas escolhas que fez para o executivo. Mas portou-se bem nas questões da segurança. No plano externo, revelou um elevado sentido das responsabilidades globais que competia à França assumir - de que a sua ação no Sahel fica como um marco significativo. Na área europeia, não conseguiu disfarçar a crescente fragilidade da França. O saldo global, como se vê com os seus 4% (!) de aprovação, é, contudo, abaixo de medíocre.

Custa-me dizer isto de um país de que gosto muito: o problema francês, isto é, a inadequação que me parece evidente das suas ambições face à realidade, tornam o seu problemático futuro - quem que seja quem a dirige - numa questão para todos quantos dependem da sua capacidade como poder para reequilibrar a balança europeia, principalmente agora que dizemos adeus a Londres no quadro comunitário.

Em 2012, François Hollande afirmou querer ser um presidente "normal", para contrastar com a imagem de Sarkozy. Infelizmente, acabou por ser um presidente banal, tocando mesmo alguma vulgaridade, em especial no modo como geriu as dimensões públicas da sua vida sentimental. 

Posso estar a ser simplista, mas, nestas derivas afetivas, creio ter vislumbrado em Hollande algum "mitterrandismo" tardio, uma teatralização à Feydeau da vida meio-política-meio-pessoal em que os franceses são mestres, a qual não deixa de colher os favores da minha nostalgia. É que Hollande manteve sempre em tudo isso um registo humano com que não consigo deixar de simpatizar. É também por isso, para além das dimensões políticas, que tenho pena que acabe por sair da cena da História desta maneira.

domingo, novembro 06, 2016

"Não problema"

Perguntado sobre quais eram as três questões, tidas como prioritárias, para o seu país, no contexto europeu, aquele deputado estónio foi claro: "Rússia, Rússia e Rússia". Nenhuma surpresa. Se a pergunta tivesse sido formulada a um letão ou a um lituano a resposta seria seguramente a mesma. E imagino que um polaco não reagiria de forma muito diversa. 

O imenso receio da Rússia, a incerteza quanto à sustentação de uma atitude de firmeza da União Europeia face a Moscovo e a ideia de que a NATO (isto é, os Estados Unidos) permanece como o principal fator em que assenta a sua segurança marcam muito do pensamento dos países do Báltico nos dias que correm. A isso acresce um novo sinal de preocupação: os sinais de reforço militar russo em Kalininegrado (antigo Koningsberg), a península russa separada do resto do país, com fronteira com a Lituânia e com a Polónia.

Desde a recuperação da independência, a relação dos bálticos com Moscovo nunca viveu momentos fáceis. E o estatuto das minorias russas nestas três Repúblicas mantém-se com problemas (sendo hoje o caso letão talvez o mais preocupante). A liderança de Putin e o autoritarismo interno na Rússia - com o comportamento de Moscovo na Geórgia e na Ucrânia a funcionarem como elementos de prova - servem hoje de forte desculpa para a firmeza nacionalista nos três países. E para a recolha de apoios de outros parceiros europeus para solidariedade com essa linha política.

Um jovem intelectual estónio de origem russa resumiu bem o seu dilema: "Sou russo mas sou cidadão estónio, tenho uma lealdade total ao meu país mas quero ajudar a garantir que os russos que nele vivem têm um estatuto de cidadania plena e que o facto de o serem não os transforma em vítimas colaterais permanentes da tensão que a Estónia mantém com a Rússia. Os russos da Estónia são estónios, não são uma "quinta coluna" da Rússia."

Esta perspetiva, que parece ter toda a lógica, pressupõe a aceitação, pelos bálticos não russos, de que há um problema com as minorias russas, que é preciso reconhecer e ajudar a resolver. Mas não é exatamente assim: o mesmo deputado estónio que referi no início do texto, perguntado separadamente sobre o tema, respondeu-me, com uma frieza irritada: "esse é um não problema". 

Este tipo de questões, envolvendo origens que conflituam com o estatuto nacional onde as pessoas vivem, é de muito difícil perceção para alguém que vem de um país como o nosso, com fronteiras com quase nove séculos, uma identidade indiscutível e indiscutida, bem como uma um maioria étnica esmagadoramente coincidente com a sociedade nacional. Que percentagem de pessoas de outra origem étnica tem a sociedade portuguesa? - perguntava-me um outro estónio (não russo), que chegou a pertencer ao parlamento soviético. Respondi que eram cerca de 5%. "Os problemas só começam a aparecer depois dos 10%", replicou-me com total segurança.

Nunca conseguiremos entender por completo os problemas - e também os preconceitos - dos outros. Mas tentar refletir sobre eles é meio caminho andado para compreendermos o que é diferente e para ajudar reforçar a nossa cultura de tolerância. 

Outro mundo?


A Estónia é um dos países mais informatizados do mundo, ao que consta. O "governo eletrónico" é aqui uma realidade poderosa e o iPhone 7 (que julgo que ainda não chegou a Portugal) vende-se em todo o lado.

Ontem, quis comprar o "The Economist" e o "International New York Times". Percorri várias tabacarias de Tallinn e não encontrei jornais ou revistas em inglês (muito menos o "El Pais" ou o "Le Monde", que são vulgares na maioria das capitais). Tentei no "lobby" dos principais hotéis e... nada! 

Por fim, perguntei na receção do meu próprio hotel como poderia adquirir imprensa estrangeira. A reação foi interessante: "Em papel?". Sim, em papel, era o que eu queria. "Isso é muito difícil. Talvez só no aeroporto..." E o "estadulho" loiro acrescentou: "Mas não tem um laptop ou ou iPad? Em alternativa pode usar o desktop do "business centre" ". Não soube como lhes traduzir "até aí chegou o Neves!". E quando pedi para me imprimirem os cartões de embarque para o voo de regresso, nem imaginam o sorriso complacente com que o rapaz atendeu o meu pedido.

Isto vai bonito, vai...

sábado, novembro 05, 2016

Alarme


Tocou um alarme durante a nossa reunião, aqui na Estónia. Por um minuto, ninguém se mexeu: todos temos a tendência de pensar, pela prática, que, quando um alarme toca, "nunca é nada!". Passado esse minuto, um certo desconforto começou a atravessar a sala. Duas ou três pessoas levantaram-se e foram-se encaminhando para a porta. 

Um português, irónico: "Se calhar, chegaram russos. Se assim for, tanto faz ficarmos na sala ou não..." Não eram os russos. Não era incêndio. Afinal não era "nada"! Como "sempre"...

sexta-feira, novembro 04, 2016

Em português


Já se percebeu: o caso da Guiné Equatorial não mais vai perder o seu lugar cativo na atenção mediática sobre a CPLP. De agora em diante, por mil coisas da maior utilidade que a organização venha a conseguir fazer, nada distrairá os nossos plumitivos da coreografia do senhor Obiang, sobre quem o cumprimentou ou não, e, claro, sobre a existência oficial da pena de morte naquele país africano. Questão sobre a qual, aliás, o MNE Santos Silva disse o que havia que ser dito.

Sem com isso pretender absolver o sinistro regime político que vigora naquele país -  esse sim, um imenso e escandaloso problema – talvez um destes dias valesse a pena esses jornalistas se debruçarem sobre as largas dezenas de Estados em que essa prática se mantém, entre os quais figuram alguns com os quais mantemos simpáticas relações: Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, China, etc. Não me consta, aliás, que a subsistência da pena de morte nesses países figure nas agendas das nossas conversas bilaterais com eles.

Para além desse «fait-divers», a recente Cimeira da CPLP trouxe algo de novo? 

Raramente me permito um grande otimismo no tocante àquela organização, mas devo dizer que, em geral, gostei do modo como o Brasil «agarrou» a sua presidência rotativa. Várias vezes tenho expressado a ideia de que o futuro da CPLP dependerá sempre muito do modo como o seu país membro mais relevante à escala global souber usar a organização em benefício da sua própria estratégia. No passado, o Brasil não parecia ter interesse em explorar as potencialidades deste grupo político-linguístico. Mas talvez agora, num momento em que o país caiu «na real» (como por lá se diz), em que o seu glamour como emergente empalideceu um pouco, em que a sua excelente diplomacia procura fazer esquecer tempos de conflitualidade interna fragilizante, em que a sua economia passa por um tempo de lenta recuperação – talvez agora a CPLP lhe possa servir para alguma coisa. E nisso fico contente pela memória de José Aparecido de Oliveira.

Se houve facto interessante e inédito nesta «cúpula» ou «cimeira», como as diferentes versões da nossa língua impõem, foi a presença muito oportuna de um convidado que se chama António Guterres. Com ele em Brasília, talvez o país anfitrião do encontro tivesse constatado que, afinal, o «primo pobre» europeu pode ainda produzir alguns fatores de relevo na cena internacional, que não estão distantes dos interesses do próprio Brasil, como António Costa também teve o ensejo de sublinhar no tocante a um possível acordo UE-Mercosul. 

Em português, há muitas coisas que podem ser feitas em conjunto. Desde que haja vontade política, lealdade e uma linha de ação mínima em que todos nos encontremos. Mesmo tendo à ilharga o senhor Obiang, o qual, repescando O’Neill, acaba por ser um pouco o «remorso de todos nós».

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, novembro 03, 2016

Talin não tem S


Quando ontem disse a um amigo que hoje ia à Estónia, ele advertiu-me: "Não ponhas um S antes do nome da capital. Eles não iriam gostar..."

Nightmare


Foi uma tradição de décadas: numa noite em cada ano, no Bar Procópio, o Nuno Brederode Santos passava para o lado de dentro do bar e elaborava um famoso cocktail a que dava o nome de "Nightmare" (pesadelo). O segredo da mistura mantinha o mesmo grau de secretismo que o druida Panoramix guardava para a sua poção mágica, na aldeia de Asterix. Os "happy few" a quem a mistela era servida dividiram-se sempre quanto ao nível do paladar final do combinado. Havia mesmo quem dissesse que, a cada ano, o Nuno tinha uma "fórmula" diferente, fruto dos humores da conjuntura e talvez dos níveis dos alcoóis que a Alice destinava às prateleiras.

O Nuno deixou de ir ao Procópio e eu também tenho sido muito relapso no meu pousio das almofadas da "mesa dois". O "Nightmare" já não sai há uns bons anos e, que se saiba, o Nuno não passou o segredo a ninguém - se é que segredo havia...

Agora, com a hipótese de uma vitória de Trump - não quero acreditar, mas a possibilidade existe - fica criado um cenário de pesadelo, de "nightmare". Se esse infausto acontecimento ocorrer, porei o meu fígado de castigo por umas horas e pedirei à Alice para me deixar fazer um "Nightmare" à minha maneira. Chamar-lhe-ei "Trump". Terá, pela certa, bourbon e vodka. E será "explosivo", garanto.

quarta-feira, novembro 02, 2016

Iskra


À margem de um encontro internacional, fui um dia apresentado à mulher do então ministro sueco do Comércio, Leif Pagrotsky. Sabendo-me português, dirigiu-se a mim num espanhol com ressonância latino-americana. Tal como o seu marido, era muito pequena de estatura e também muito morena, num contraste evidente com o estereótipo da sueca. Explicou-me ser de origem uruguaia e chamar-se Iskra. Não consegui conter a curiosidade e perguntei-lhe, um tanto a medo: "O seu nome tem alguma coisa a ver com um jornal?...". Ela sorriu, surpreendida: "Conhece o Iskra?" Confirmei que, como alguém com passado marxista, não me era estanho o nome do "Iskra", um jornal editado por Lenine. A simpática uruguaia-sueca, arquiteta de profissão, revelou-me que a sua mãe, comunista uruguaia e devota de Stalin, decidira dar-lhe esse incomum nome.

O jornal Iskra, publicado na clandestinidade, teve uma existência breve, nos primeiros anos do século XX. A palavra "iskra", em russo, significa "centelha" ou "faúlha" e o lema do jornal era "da centelha surgirá a chama", simbolizando a propagação da ideia revolucionária.

Lembrei-me do Iskra há horas, na RTP, antes de entrar no ar para uma conversa com Ana Lourenço, ao ver imagens da agitação que abala Marrocos.

Há seis anos, um vendedor de fruta tunisino Mohamed Bouazizi imolou-se em protesto. Começou aí a "primavera árabe" que levou à deposição do ditador Ben Ali e ao sucesso da democracia no país. Ele foi a "iskra" que espoletou todo o movimento.

Agora, num cenário político diverso, mas nem por isso sem algumas similaridades óbvias, um vendedor de peixe marroquino está a suscitar ondas de protesto no nosso segundo vizinho mais próximo (embora, em linha direta, a distância de Rabat a Lisboa seja menor do que a que separa as capitais portuguesa e espanhola). 

Poderá este incidente ser a "iskra" para um movimento de natureza idêntica? E há a certeza de que o resultado de uma mudança política em Marrocos se fará no sentido do reforço da experiência democrática que por lá hoje vigora? Quando se lança o fogo numa pradaria, nunca se sabe para que lado acabará por soprar o vento.

terça-feira, novembro 01, 2016

Os nossos


O que sobrou em nós dos nossos mortos? Nestes dias em que, por um ritual também deles herdado, os evocamos intimamente, talvez valha a pena interrogarmo-nos sobre se soubemos construir, em nós mesmos, alguma coisa com aquilo que eles nos deixaram, à hora da morte, como tributo daquela que foi sua vida. É que se "isto" tem algum sentido, esse sentido só pode ser a consagração dos valores que deveriam ter transitado para nós. Se isso não aconteceu, se não fomos fiéis a essa herança (e todos encontraremos alibis conjunturais para o não termos sido), então talvez alguma da saudade que sentimos seja apenas um mal-estar íntimo por esses mortos estarem, afinal, já muito distantes daquilo que hoje, em realidade, somos.

Hipocrisia

Nas hostes da antiga maioria, levantou-se um escarcéu sobre a projetada redução das verbas atribuídas ao ministério da Educação, no orçamento do próximo ano.

É minha impressão ou trata-se da mesma oposição que acha que é importante reduzir os gastos públicos, que o controlo do défice deve fazer-se, não pelo aumento de impostos, mas pela contenção da despesa, pela redução do número de funcionários, por ataque às "gorduras" do Estado? E agora condena quem está a fazê-lo?

Se o ministério da Educação tivesse tido um programa orçamental do qual viesse a originar um impacto negativo no cumprimento das metas do défice e um encargo maior na dívida, aposto que viria logo uma acusação de "despesismo", de "irresponsabilidade", de estar a "fazer o frete" ao sindicato do Mário Nogueira e coisas assim.

segunda-feira, outubro 31, 2016

O professor Coutinho

Anda por aí a polémica sobre os "doutores" que, afinal, não o são, que inventaram títulos, talvez para adocicarem o "Vai um cafezinho, shotôr?", lá pelos ministérios.

Há muitos anos, na Pompeia, em Vila Real, no tempo em que não havia telemóveis e, nos cafés, os clientes eram chamados em voz alta, quando surgia uma chamada telefónica para eles, havia um "caramelo" com ar pomposo, alto e de poupa, que era useiro e vezeiro na utilização desse tipo de serviço. Andava na Escola do Magistério Primário, mas, ao que se sabia, estava ainda bem longe de ter concluído o curso que lhe daria direito ao título de professor. Não obstante, era frequente ouvir-se "Chamam ao telefone o professor Coutinho". O nosso homem, estrategicamente colocado do outro lado do café, levantava-se pausadamente e, solene, atravessava a sala em direção ao aparelho preto, pousado sobre a lista telefónica, que o meu amigo Neves facultava ao uso dos clientes. E por ali ficava, uns minutos, enrolado sobre si próprio, emitindo sons ininteligíveis.

A frequência regular das chamadas, naquela hora de enchente depois de almoço, levou à desconfiança: aquilo era "montado" para consagrar, por usucapião auditivo, o título antecipado do grau académico do Coutinho.

Um dia, depois de uma taina no Choco, o Pinto, colega do Coutinho no "Magistério" (os homens, por lá, contavam-se pelos dedos de menos de duas mãos), descaiu-se e confirmou que sabia do caráter deliberado das chamadas para homem,  para "armar", como então se dizia. Eram feitas à sucapa por uma criada da casa onde o Coutinho se hospedava, perto da Cardoa, com a qual ele mantinha uma "amitié particulière". A partir desse dia, a história correu em mesas da Pompeia e, sempre que o Coutinho era chamado ao telefone, havia quem organizasse uma caçoada algo barulhenta. Mas a coincidência desse ruído com o "perpwalk" pós-pandrial do Coutinho parece ter tido sucesso: as chamadas desapareceram!

Que será feito do professor Coutinho?

UP


A revista UP, que a TAP oferece aos seus viajantes, convida todos os meses uma personalidade diferente a escrever o seu editorial. A ideia é elaborar uma curta mensagem personalizada, em português e inglês, que estimule quem nos visita a conhecer algo mais sobre o país.

Tive o prazer de ser convidado a ser o "anfitrião" da UP do mês de novembro, que estará em distribuição a partir de amanhã. Tenho assim o privilégio de juntar-me a figuras como Miguel Sousa Tavares, Gonçalo M. Tavares, Clara Ferreira Alves, Lídia Jorge, João Lobo Antunes e muitos outros.

No meu texto, optei por estimular os visitantes para olharem para Portugal para além dos "clichés" dos guias turísticos e, muito em particular, a chamar a atenção para Trás-os-Montes, uma zona do país que a maioria estrangeiros, mas também muitos portugueses, ainda desconhecem - e não sabem o que perdem!

Mas é melhor lerem:

Uma vida passada em grande parte fora de Portugal fez de mim um quase obsessivo turista no meu próprio país. Por décadas, parte importante das minhas férias era passada a recuperar o que perdia no resto do ano. E essa viagem nunca mais parou.

Nessas visitas, fui criando uma espécie de mapa, humano e cultural, do meu Portugal afetivo. Frequentemente, dei por mim a testar, junto de amigos e conhecidos estrangeiros que nos visitavam, esse meu íntimo guia sentimental. Para tal, era importante transmitir-lhes alguns instrumentos para a compreensão do país. E nada melhor, para isso, do que revelar o modo como eu próprio me comportava no meu eterno regresso a Portugal.

São coisas bastante simples, como o atentar no movimento num largo principal de uma aldeia recôndita, na alegria de uma festa popular numa vilória, no silêncio de uma paisagem, de um miradouro improvisado. Mas, igualmente, o gosto de nos sentarmos no «café central» das cidades de província, olhando a coreografia social, o prazer em descobrir restaurantes e tascas em locais recônditos, onde nos servem vinhos que não conhecemos, doces que por ali se conservam por tradição. E também aquilo que se aprende ao entrar em pequenas lojas, fora dos grandes circuitos de comércio, onde se encontram coisas insólitas, entrecruzadas com conversas e amena simpatia.

É que, longe dos locais turísticos que os guias apontam ao visitante minucioso, existe um Portugal sereno que, sem se impor, se oferece discretamente a quem o visita. E em que vale a pena um visitante perder-se.

Desse Portugal, que não sendo imenso é, ainda assim, muito diverso, o que é que eu selecionaria para apontar, como um destino seguro, a um visitante estrangeiro disposto seguir o meu conselho? Um país feito de dureza de vida, de beleza única, de gentes fortes e de caráter: Trás-os-Montes.

Trás-os-Montes é a natureza mais bravia que Portugal tem para oferecer. Situado, como o nome indica, por detrás das grandes serras nortenhas, é um mundo de paisagens deslumbrantes, de uma culinária preciosa, de cidades cheias de história. Miguel Torga, o poeta que por lá nasceu, chamou-lhe, imodestamente, “o reino maravilhoso”. E talvez não tenha exagerado. Para lhe dar razão, basta atentar no rio Douro, que desenha a fronteira sul da região, obra ímpar da natureza e do homem, no colorido das vinhas que são a sua riqueza, na majestade dos seus vales profundos.

Vá a Trás-os-Montes! Arrisque perder-se naquilo que Portugal tem de mais autêntico, genuíno e belo. E, depois, diga-me se eu não estava certo.

domingo, outubro 30, 2016

Liberdade


Há dias, a propósito de um comentário feito ao ressurgimento de um comentador azedo, e de outros que o emulam, fui crismado de "comuna" para cima, nuns blogues de seita.

Agora, porque disse o que pensava sobre as "liberdades" em Cuba, caiu sobre mim, em páginas do Facebook, um ror de insultos, em que o de "reacionário" foi o mais benévolo.

Pensar pela própria cabeça tem um preço, mas é muito agradável, podem crer.

Bernardino Gomes



Era um homem cordial, agradável, com sentido de humor e de oportunidade, na inteligência culta das intervenções públicas que fazia. Alguém que olhou a relação transatlântica como o vetor central e inescapável da equação geopolítica do país. Civicamente, soube sempre estar no lugar certo, olhando a vida coletiva de uma forma solidária, com opções há muito assumidas e a que se mantinha coerentemente fiel.

Morreu hoje Bernardino Gomes.

A hora dos mencheviques

Mudou hoje a hora. Nem sempre tivemos este regime horário. Por exemplo, entre 1992 e 1996, a nossa hora acompanhava a da Europa central. Foi o primeiro governo de António Guterres que decidiu reintroduzir o modelo da hora atual. A decisão não foi totalmente pacífica, no Conselho de Ministros em que foi tomada. Eu estava casualmente por lá, substituindo Jaime Gama, e manifestei-me contra, com base num conjunto de argumentos que não vêm para o caso. A defesa da medida que acabaria por ser adotada foi feita, com brilhantismo, por Eduardo Marçal Grilo, ministro da Educação e do Ensino Superior. Guterres era um grande adepto da alteração mas, nem por isso, havia conseguido convencer pessoas que lhe eram muito próximas, como foi o caso de António Vitorino e Joaquim Pina Moura. Fomos, recordo, as três vozes postas em minoria naquele Conselho de Ministros. À saída, Pina Moura, com o seu imenso humor, de que sinto muita falta, disse-me: "Por uma vez, fazemos parte dos mencheviques".

sábado, outubro 29, 2016

Marta Neves

Ontem, quando tratava de um assunto num balcão de um hospital de Lisboa, olhei para o nome que a funcionária trazia ao peito: Marta Neves. Um nome comum, o daquela jovem mulher, bonita e elegante. Mas que me dizia alguma coisa.

Por um instante, fui tentado a perguntar-lhe se era ela quem tantas cartas me havia mandado, durante anos, com alguma regularidade. Ia queixar-me, finalmente, do tom impessoal daquelas missivas manuscritas a tinta azul, da sua falta de um mínimo de intimidade, como se a mesma carta pudesse ser dirigida a mim como a qualquer outra pessoa. E dizer-lhe que tinha uma bela letra, fácil de ler, reveladora de serenidade.

Mas não, a Marta Neves que estava diante de mim não tinha idade para me ter escrito cartas que, com toda a certeza, eu tinha recebido ainda antes dela nascer.

Eram sempre cartas simpáticas, otimistas. As cartas da Marta Neves traziam sempre boas notícias e vinham em envelopes cheios de papelada, às vezes até traziam uma prometedoras "chaves", mas em plástico...

Marta Neves era o nome ficcionado que assinava a correspondência que, por muitos anos, as Seleções do Reader's Digest nos mandava, a anunciar os livros e discos que editavam. Vim a saber um dia que a "Marta Neves" era, na realidade, a escritora Rita Ferro.

Olhei para a sorridente e eficaz empregada do hospital, ponderei as pessoas na fila que estavam "desertas" para que eu lhes desse lugar no balcão e decidi não lhe falar nessa outra Marta Neves. Ia ser complicado "to make a long story short" e, no final, talvez ela não achasse nenhuma graça. E quem estava à espera, seguramente, ainda acharia bem menos. Como ela não deve ler blogues, que é mais vício de rebujentos, fica por aqui a minha história epistolográfica com a Marta.

Bica


Recomendo vivamente a nova revista "Bica", que pode ser consultada livremente aqui.

São 212 páginas onde se fala muito de Lisboa (meto por lá a minha "colherada", nas páginas 25 e 26), que esta publicação trimestral pretende tratar com muita atenção e cuidado, e de que apresenta um guia precioso. Ah! E também Viseu, com um dossiê especial.

sexta-feira, outubro 28, 2016

Amizade


Os verdadeiros amigos não são para as ocasiões. São para sempre. Aprendi isso numa existência aos solvancos geográficos, pelas terras em que vivi e onde os fui criando. Parte deles foi deixada ficar para trás no tempo, porque não transitaram para o quotidiano seguinte, às vezes por descuido, outras porque nós próprios mudamos e não sabemos sobreviver, mutuamente, à usura da ausência. Uma parte desses amigos, contudo, foi permanecendo, nessa decantação progressiva do tempo. E a esses foram-se somando novos, que ficaram tanto ou mais amigos do que aqueles que vinham do passado. No seu conjunto, os meus amigos são a riqueza que guardo a meu crédito, fazem parte da minha conta a prazo da vida.

Lembrei-me disto há uma semana, quando me foi dado partilhar a felicidade de dois amigos. É que a alegria dos nossos amigos constitui uma parte da nossa própria alegria. E, se não estou enganado, é a isso que se chama, muito simplesmente, essa coisa bonita e insubstituível que é a amizade.

(Dedico este post à Rusa e ao Zé Luis)

28°


Gosto destes dias de fim de junho. Maio foi muito bom, mas o Verão que aí vem já promete. Ontem, jantei numa esplanada. Hoje, estou a pensar passear ao fim da tarde no jardim da Estrela. Que belo tempo! 

Estranho, contudo, esta ideia de andarem a vender, por estes dias, castanhas assadas. Não é coisa que se coma num tempo tão quente! Antes, só se viam à venda no Outono. Agora é isto! O que é que pensarão os turistas de calções que enxameiam Lisboa?

Marcelo e Fidel


Entendo o prazer que Marcelo Rebelo de Sousa deve ter tido ao encontrar-se com Fidel de Castro, durante a sua visita a Cuba. Ele pertence a uma geração para quem as referências da História são importantes, independentemente da lateralização ideológica das figuras que a encarnam. Por isso, poder falar, ainda que no seu ocaso, com um dos protagonistas do mundo contemporâneo, deve ter sido uma experiência marcante. De certo modo, invejo-lhe esse momento, não obstante Fidel não ter nunca feito parte das minhas mitologias.

Castro e a revolução cubana foram um expoente para uma certa geração radicalizada que antecedeu a minha – que é, aliás, a mesma de Marcelo. A heroicidade da luta contra o agressor “yankee”, que tentava limitar o grito de liberdade saído da Sierra Maestra e que se empenhava em suportar sinistros déspotas, por toda essa América Latina sujeita à tutela cínica da Doutrina Monroe, foi uma bandeira que excitou as várias esquerdas mundiais. E também por cá.

Cuba, depois, foi o que foi. De um farol de liberdade, que Guevara ainda tentou exportar, transformou-se numa ditadura triste, em grande parte prolongada graças ao alibi dado pelo bloqueio americano, o qual, aos olhos benevolentes de alguns, lhe absolve todos os pecados.

Raramente tive uma experiência tão desagradável, como turista, como quando há uma década, sem guias nem mentores, passeei pela pobreza das ruas de Havana, então uma cidade de gente sem esperança, a que nem a graça que alguns acham à decadência dava alguma franca alegria.

Fidel libertou os cubanos do bordel dos Estados Unidos em que Baptista convertera o país, mas prendeu-os num pesadelo de vida que condenou gerações à penúria. E não me venham com a conversa do “orgulho” nacional, como se isso pudesse alguma vez substituir a possibilidade de dizer, alto-e-bom-som, podendo também escrevê-lo fora do “Granma”, o que se pensa, bem ou mal, dos dirigentes, que se querem eleitos e contrastantes.

A vida ensinou-me a deixar de ser complacente com a crueldade dos sonhos radicais, do “socialismo real” do Leste europeu a todos os modelos que relativizam o interesse em preservar as liberdades “burguesas”, reféns de amanhãs que o tempo veio o provar ser, infelizmente, muito similares o outros “ontens” que quero esquecer.

Para mim, guardarei para sempre o olhar triste daquela pintora cubana, uma mulher jovem, num subúrbio de Havana, que me contava ter vendido quadros seus em exposições nos Estados Unidos, e a quem, inadvertidamente, perguntei se tinha gostado da viagem: “Eu? Eu não fui! Eu não posso sair daqui. Eu nunca vou sair daqui...”. Aquele desencantado e nem sequer revoltado “nunca” marcou-me para sempre.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Jogar pelo seguro


Salvo para alguns inimputáveis, preparados para brincar com o fogo, não existe uma real alternativa de bom senso na eleição presidencial americana. Se Hillary Clinton está muito longe de entusiasmar as hostes, é em geral reconhecido tratar-se de um “safe pair of hands” que garante que a potência determinante à escala global fica sob um controlo responsável. Este texto parte, assim, do pressuposto que Hillary Clinton será a próxima presidente americana.

Depois das aventuras da administração Bush filho, os dois mandatos de Obama mostraram uma América num dos seus ciclos regulares de retração estratégica. Sair logo que possível do Afeganistão e do Iraque, readequar o discurso da guerra anti-terrorista e tentar sarar algumas feridas abertas pela administração divisiva que o precedera – tal era o projeto visível de Obama pelo mundo. A Europa deixara aparentemente de figurar nas prioridades essenciais de uma política externa que olhava a Ásia e o Pacífico como o destino futuro de atenção. A Rússia parecia controlável nas suas ambições.

Os acontecimentos, esse regular obstáculo dos políticos, atrapalharam as previsões. O destino desigual das “primaveras árabes” e a desregulação do Iraque, gerou impactos imprevisíveis em todo o Médio Oriente, criando um caos cuja resolução não era conforme com a política de “no boots on the ground” que os EUA se obstinavam em manter. Os aliados ressentiram-se. Israel e a Arábia Saudita desconfiaram da eficácia do apaziguamento de Washington com as ambições nucleares do Irão. A Turquia mostrou-se um parceiro errático. A Rússia de Putin afirmou-se como uma potência oportunista, jogando na certeza de que a resposta ocidental aos seus avanços estratégicos ficaria sempre aquém das armas. Provou ter razão na Ucrânia, como já testara na Geórgia. A NATO, esse heterónimo militar dos EUA na Europa, teve de reganhar agressividade verbal e visibilidade do seu dispositivo. Os EUA não conseguiram recuar tanto quanto tinham planeado, o que também não foi facilitado por uma União Europeia descredibilizada e crescentemente dividida.

Oito anos depois de um ridículo prémio Nobel da Paz, dado “avant la lettre” como uma espécie de investimento na esperança, o balanço da política externa de Obama é claramente pífio. O mundo não está mais seguro do que estava na data da sua posse. É indiferente se a culpa é ou não de Obama, o que contam são os resultados. E esses são maus.

Hillary Clinton não herda a diplomacia de Obama, recebe também o resultado dos erros que ela própria cometeu, de que o caos na Líbia é talvez o caso mais flagrante na nota de culpas que merece pelo tempo em que geriu o Departamento de Estado. Quando aí chegada, Clinton olhava a prioridade Ásia-Pacífico como central na estratégia diplomática pós-Bush. O “braseiro” do Médio Oriente impôs-se e estragou esse desígnio. O seu saldo não foi brilhante.

Que fará Hillary Clinton pelo mundo, uma vez chegada à Casa Branca? A mais republicana candidata que os democratas podem produzir vai, ao que tudo o indica, agravar as tensões com a Rússia, que dá sinais de estar já a contar com isso. Se assim acontecer, uma parte da União Europeia exultará, outra hesitará em acompanhá-la até ao fim. A União pode dividir-se neste particular e a América, que se mantém um poder europeu, confirmará o seu tropismo para partir ou unir o velho continente, de acordo com os seus interesses. Nada que seja verdadeiramente novo.

Mas o grande teste imediato de uma administração Clinton passa pela Síria e pelo modo como aí lidará com uma Rússia que já mostrou que prefere ser temida a respeitada. Há quem diga que a Turquia pode funcionar como ”subcontratado” dos EUA na região. Recuperar a confiança do mundo sunita (com a Arábia Saudita à cabeça) e de Israel é outra das tarefas essenciais na região.

Resta... o resto: o futuro dos acordos comerciais inter-regionais, a substância efetiva da política Ásia-Pacífico e o modelo de relação futura com a China (com o crescente problema da Coreia do Norte no horizonte) e com a India nuclear, as alianças preferenciais numa Europa pós-Brexit, a definição da filosofia de ação externa, entre o proselitismo democrático e a “realpolitik”, etc.

Tempos interessantes, como diz a velha expressão chinesa que os ocidentais adotaram. E perigosos, pelo que vale a pena jogar pelo seguro e o seguro é Hillary Clinton.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

Administração Hillary


Um "disclaimer" prévio: os autores são meus amigos. Um aviso sério: ninguém se arrependerá se comprar este livro. Garanto.

Raquel Vaz-Pinto e Bernardo Pires de Lima, dois dos nossos mais talentosos académicos na área das relações internacionais, escreveram uma obra de grande valia. Partindo do conhecimento profundo que têm da estrutura das relações internacionais, cruzando-a com uma apurada análise da política externa americana, produziram um guia quase imprescindível para nos guiar através da Administração Obama, no caminho para uma (quase certa) Administração Clinton. Por ali ficam, com realismo e numa linguagem acessível, os grandes desafios que o mundo vai enfrentar no futuro imediato, com pistas para o modo como o próximo governo americano os irá ter em conta.

Este não é um livro conjuntural, que se esgota em escassos meses, ultrapassado pelo peso da realidade. É um referencial de análise para quem gosta de política internacional e tem curiosidade de saber o que a América pode vir a fazer por esse mundo fora nos próximos anos.

quinta-feira, outubro 27, 2016

Afinidades

Há uns anos, numa conversa com alguém com quem partilho grandes afinidades políticas, vieram à baila dois nomes de antigos líderes do PSD: Durão Barroso e Marcelo Rebelo de Sousa. 

Essa personalidade conhecia ambos bastante bem e, comparando-os, deixou cair esta reflexão: “Você não está de acordo comigo de que, entre os dois, não obstante as divergências que possamos ter com o Marcelo, estamos mais próximos dele e bem mais distantes de Barroso, por partilharmos um mundo de referências que nos são comuns?” 

Ontem, ao ver a imagem de Marcelo com Fidel, lembrei-me dessa conversa e da minha concordância com o que então dizia essa figura, que foi dada por várias razões e também por essa.

quarta-feira, outubro 26, 2016

Diplomacia e sindicalismo


Há momentos em que nos damos conta de que fechamos algumas portas na vida. Tive essa sensação hoje, ao final da tarde, ao assinar a última ata da minha "gestão" como presidente da Assembleia Geral da Associação Sindical dos Diplomatas portugueses, função que exerci durante os últimos dois anos, não obstante estar aposentado desde março de 2013.

Decidi pôr termo ao exercício desse cargo, por ter a perceção de que a minha distância face à vida das Necessidades era cada vez mais profunda e não tinha qualquer sentido estar formalmente ligado a algo que, para mim, se tornara quase uma realidade virtual.

Em Portugal, o sindicalismo diplomático nasceu, naturalmente, apenas depois do 25 de abril. De início, foi apenas uma estrutura associativa sem caráter sindical - razão que me levou, em 1977/78, a encabeçar um grupo de jovens diplomatas que se recusou a integrar essa Associação dos Diplomatas Portugueses, que acusei de "elitista", o que me levou a zangas com alguns de quem hoje sou grande amigo.

Tempos mais tarde, a associação passou a ser sindical e, coerentemente, inscrevi-me nela. No seu seio, disputei algumas "batalhas" pela definir um Estatuto para a carreira, tendo feito parte de várias comissões com esse objetivo, que foi finalmente conseguido, contra ventos e marés. Cheguei a ser vice-presidente da direção da ASDP até uma tarde em que, no meio de uma reunião de direção, recebi um telefonema de Jaime Gama a convidar-me para o governo. O comentário imediato de António Santana Carlos, presidente da direção, nesse final de uma tarde de outubro de 1995, ficou-me para sempre: "Passaste-te para o patronato...". Esse "patronato", creio, não tratou mal o sindicalismo diplomático e a Carreira, embora eu nada tivesse a ver com essas decisões.

Em 2014, depois de uma grande insistência, acedi a ser presidente da Assembleia Geral da ASDP. Fi-lo com imenso gosto, por poder participar numa estrutura sindical que, aos olhos de muitos, continua a ser algo atípica, por se mostrar fortemente solidária com as finalidades do serviço de Estado, tendo essa atitude na sua matriz genética.

Essa porta fechou-se hoje, sem a menor nostalgia, desejando agora aos colegas à frente dos destinos da ASDP a maior sorte e sucesso.

terça-feira, outubro 25, 2016

Álvaro Guerra

Álvaro Guerra e eu divergíamos sobre a data em que falámos pela primeira vez. 

A tese dele é de que foi a 26 de abril de 1974, numa inusitada reunião na biblioteca da Escola Prática de Administração Militar, coordenada pelo então capitão Teófilo Bento, em que havia um mundo curioso de gente à volta da mesa (Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Adelino Gomes, Luís Francisco Rebelo, Orlando da Costa, Manuel Jorge Veloso, Luís Filipe Costa, Manuel Ferreira, Artur Ramos, António Reis - dos que me lembro, mas eram alguns mais), numa reflexão sobre o futuro de uma RTP democrática.

Já eu tinha ideia de que, dois anos anos, Mário Mesquita nos tinha apresentado na redação do "República". Mas imagino que ele se tivesse esquecido desse encontro fortuito. Eu havia ido ali, discretamente, tentar fazer publicar uma nota sobre uma conflitualidade, com laivos políticos, sobrevinda numa reunião dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, onde eu trabalhava à época. A censura não deixaria "passar". 

Claro que, de há muito, eu conhecia o Álvaro da escrita. Seguia-o na ficção, mas também no jornalismo, onde era leitor, embora irregular, da sua coluna na última página do "República" (que nunca foi o meu jornal), o "Ponto Crítico". 

Um dia, vi-o entrar para a diplomacia, pela mão de Mário Soares. Inicialmente, era destinado a ocupar o posto de Conselheiro Cultural na Índia, mas tenho ideia de que não pôde ser colocado no lugar ... por não ser licenciado. Mas, curiosamente, essa qualificação académica já não era indispensável para poder ser embaixador "político"! E assim o Álvaro esteve sucessivamente a chefiar as missões diplomáticas portuguesas em Belgrado, em Kinshasa, em Nova Delhi, no Conselho da Europa em Estrasburgo e, finalmente, em Estocolmo. E, em todos esses postos, revelou-se um excelente profissional, como a memória (sempre mais exigente para quem não fez todo o percurso da Carreira) das Necessidades reconhece. 

Creio que foi em Kinshasa onde, nessa qualidade, nos reencontrámos. Mais tarde, e por várias vezes, em Estrasburgo, falámos por horas, naquela casa do Boulevard de l'Orangerie, onde a Helena nos preparava requintados pitéus, regados por líquidos escolhidos na vizinha "Route des Vins", e se abafava, em divertidas conversas, a nossa insanável divergência sobre a tauromaquia. E sempre, sem exceção, ia com ele à Kléber, onde me assinalava livros que a sua incessante curiosidade tinha descoberto. A última vez que nos vimos foi em Estocolmo, onde já o senti bastante frágil. 

O Álvaro viria a morrer aos 65 anos, em Vila Franca de Xira, junto aos gaibéus da sua terra. No passado sábado, soube agora, uma escultura do António (Antunes) rende naquela cidade uma merecida homenagem a esse homem de bem, excelente diplomata e escritor que se chamou Álvaro Guerra, de quem tive o privilégio de ser amigo.

segunda-feira, outubro 24, 2016

Insegurança


O caso do presumível assassino que andará por Trás-os-Montes parece estar a desencadear um duplo efeito.

Desde logo, as vozes complacentes dos amigos do eventual criminoso, dando-o como "bom rapaz" e lançando a ideia da implausibilidade de ele ter cometido tão hediondos crimes, começam a suscitar uma espécie de benevolente perplexidade que, numa primeira reação, assume aquilo que é a atitude bem portuguesa tradicional, filha das medíocres teorias conspirativas de quem não sabe nada mas não está disposto a que alguém lhe passe a perna: "esta história está mal contada!". No achismo de café, adubado pela especulação palavrosa incessante dos estagiários a tremer de frio com os "cornetos" das televisões, tudo é possível. Daqui até à "síndroma de Estocolmo", que leva à simpatia com os criminosos, pela relativização ou indução de dúvidas sistemáticas sobre factos especulados, o passo é curto.

Mas o caso do "piloto", ao prolongar-se sob angústia mediática obsessiva, redunda também numa fragilização objetiva do prestígio das autoridades policiais, as quais, numa leitura simplista de uma situação operacional visivelmente complexa, já aparecem como que a serem "gozadas" pela argúcia do fugitivo - o que sempre diverte alguns patetas. Esta imagem das polícias impotentes é reforçada pela simultaneidade de crimes violentos ocorridos noutros locais do país, magnificados pela "imprensa do sangue", com televisão próprias em apoio. Se a isso somarmos as dúvidas cumuladas pela repetição de incidentes com argelinos no aeroporto de Lisboa, dir-se-á estar a criar-se um caldo de cultura para um ciclo de insegurança psicológica, com os sindicatos policiais (que no quadro mais global estão travados pelos compromissos da "geringonça") a cavalgarem oportunisticamente a onda.

Nada pior que um país com dúvidas sob a eficácia de quem o pode proteger no dia-a-dia, isto é, a sua polícia - depois de há muito ter visto já instalada uma forte desconfiança sobre o aparelho da sua justiça.

domingo, outubro 23, 2016

Em Lisboa, vá pela sombra


Se acaso pretendesse reduzir a famigerada (gerada pela fama) luz de Lisboa a uma única fotografia, não hesitaria um segundo. A cidade está toda na imagem que Gérard Castello-Lopes nos deixou, do alto, voltado para a rua do Arco do Carvalhão, um local a que os antigos chamavam os Terramotos. Nessa fotografia, um monumento de arte, a luz segue pela rua adiante, lado-a-lado de uma estranha fila de gente, numa adivinhada monotonia, que é bem o retrato de um Portugal onde, como dizia o ditador, as pessoas "viviam habitualmente".

Mas se se olhar um pouco para além dessa luz quase obscena que parece dominar o cenário, invasora, nada pudica, há na pintura a preto e branco da máquina de Castello-Lopes um recorte bem mais variado, sofisticado, seja no elegante pormenor geométrico que rebate, como num desenho, as casas - e que, diacronicamente, imaginamos evolutivo, como num filme -, seja nas caricaturas individuais das figuras em presumível movimento, que se projetam contra a grade bordejante. A luz está lá, sempre igual, por toda a parte, quase banal. É, porém, nas sombras que a criatividade se forja.

Lisboa é uma cidade de sombras - e essa não é uma expressão de retórica passadista, sentimental ou misteriosa, embora pudesse ser também isso tudo, até com fado à mistura. É uma realidade insofismável, que só não tem emergido porque, é preciso dizê-lo, há uma óbvia conspiração a favor da luz, para a qual o exército das sombras não encontrou até hoje o adequado antídoto.

Querem exemplos, omnipresentes na cidade ? É a sombra que o Aqueduto das Águas Livres atira contra o solo que lhe confere uma grandeza humanizada. Sem a sombra, aquela obra de arte seria apenas uma maqueta, em ponto grande. Passeie-se sob as arcadas do Terreiro do Paço, num dia inundado de sol, e olhe-se a riqueza dos desenhos que as sombras produzem nas paredes pombalinas. É a sombra que acomoda o viajante que por ali anda e que, por alguma razão, a procura, fugindo da luz, da torreira. A sombra protege, a luz abafa. A sombra, no fundo, é o lado bom da luz.

Um dia, dedique o leitor uma boa hora a percorrer os caminhos do lisboeta cemitério dos Prazeres. Escolha um dia de sol (Lisboa tem uma obsessão tal com o sol que até deu a uma sua rua o nome de "rua do Sol ao Rato") e perceberá melhor o que lhe quero dizer. Para além das árvores que lhe filtram a incómoda luz, um dos mais óbvios "prazeres" do cemitério é, para os vivos, claro, poder apreciar a infinda variedade das projeções das sombras dos jazigos, um rendilhado criativo que confere a algumas daquelas fúnebres moradias uma dignidade de bairro, onde nem sequer faltam os gatos, que o silêncio reinante permite melhor apreciar. Sente-se num dos bancos que por ali há, à sombra, à conversa, gastando o tempo, que é, além da esplêndida penumbra da contraluz, a mercadoria mais abundante no local, e logo perceberá melhor o que lhe quero dizer

Nem lhes conto o quanto me perturba ver alguns fabianos, « cara al sol », como se entoava no tempo infame, loiros de escaldão, a calcorrearem a ala central do Parque Eduardo VII, já de si escavado como uma vala para adoradores do dito, como se acaso estivéssemos por aqui à borda de um fiorde, num país em que o verão se esgotasse num fim de semana. Convide-se essa gente ao gosto da fuga, por um momento, para a adjacente Estufa Fria e, estou seguro que eles logo perceberão o "calor" ímpar da sombra, das árvores, da delicadeza da luz filtrada. Eles verão que é a noite e o dia, ou melhor, um quase vice-versa.

Lembram-se das imagens brancas, desertas ou quase, muito ensoleiradas (em especial aos domingos, em que a brutalidade da luz parece apostada em rimar com a santidade do dia), dos filmes do neo-realismo italiano? Pois bem, o velho "novo cinema português" tentou reeeditar esse registo, jogando com a alvura das avenidas a que nos habituámos a chamar "novas", usando e abusando de uma luz sem vergonha. E se revisitarmos essas películas, com alguma sofisticação no nosso olhar, é hoje um regalo ver as imagens, inundadas de branco, ganharem de imediato « cor », logo que a câmara se descai, com bom gosto, para a intrusão das sombras, que conferem à naïveté das histórias um sentido digno de recato, de discrição, um toque de intimismo, que a luz não permite e até antagoniza. Não será por acaso que, na expressão «  a-preto-e-branco » o preto surge primeiro...

Como o leitor já presumiu, cansa-me muito escutar o rame-rame do discurso obsessivo, turístico-folclórico, sobre a luz de Lisboa. Tanner - um cineasta suíço que, talvez por isso, não percebe muito de cores da vida do Sul - chamou a Lisboa "A cidade branca". Nunca percebi onde é que ele foi descobrir a "kasbah" que o fez encontrar Argel por aqui. Lisboa não é uma "cidade branca", é uma terra de cores vivas, a que as sombras fazem ganhar novos cambiantes. Por isso também é falso o que cantou Sérgio Godinho, no "Lisboa que amanhece", ao dizer que "as sombras de Lisboa são da cidade branca a escura face". Uma ova !

As sombras são a face mais "luminosa" da cidade e, claro, ganham outra expressão na noite quando, finalmente, a cidade se liberta do sol. É então que a saudável e pecaminosa - no bom sentido, que é o do bom pecado - face de Lisboa se revela. 

Olhem-se com atenção as sombras incomparáveis da ruas que atravessam a Bica em noites de copos e música, procure-se uma ruela esconsa no Cais do Sodré onde se imagina o « deal » final entre a meretriz e o marinheiro da esquadra da NATO, visite-se a tristeza quase suburbana da entrada de uma pensão "com águas correntes" na Almirante Reis, atravesse-se a Praça das Flores na penumbra de um fim de tarde da Lisboa « colorida » pela diversidade sexual, faça-se uma romagem romântica à sombria estátua de Sousa Martins, no Torel, numa noite de luar, ou à ímpar marca de solidão da Triste-Feia, a mais misteriosa rua da Alcântara que foi operária. Ou olhe-se a sombra do Tejo nas Docas, as esquinas onde os adolescentes trocam « shots », com o iPhone na outra mão, nas madrugadas divertidas de Santos ou (ainda) do Bairro Alto. As sombras de Lisboa não têm fim, morrendo no cansaço do alvor do novo dia, feito de olheiras e, claro, de sol.

É essa a minha Lisboa, feita de mil sombras, de mil e uma noites, de uma resistência denodada à ditadura da luz, cuja única verdadeira virtualidade é ter o mérito de ser geradora dessa glória eterna da imagem que é a sombra. 

Que este texto possa ter ajudado os visitantes de Lisboa a melhor entenderem que, aqui chegados, têm uma magnífica Lisboa de sombras pronta para ser consumida. Tenho fundada esperança que o que aqui deixei, este guia irónico em forma de elegia da cidade escurecida, tenha contribuído para que, sobre este tema, haja sido feita, finalmente, alguma luz.

(Artigo publicado no nº 1 da revista "Bica")

sábado, outubro 22, 2016

Michel Barnier e as línguas


A figura que a União Europeia indicou para negociar, em seu nome, com o governo britânico, a saída do Reino Unido da União Europeia é o antigo comissário europeu (e também, embora breve, MNE francês) Michel Barnier. Conheço Barnier desde 1996, quando ambos representámos os nossos respetivos países na negociação do Tratado de Amesterdão. Não deixa de ter graça que o ministro britânico que está encarregado de negociar o Brexit, David Davis, tenha sido também, à época e por algum tempo, o negociador britânico desse tratado.

Porém, a razão porque hoje trago aqui o nome de Barnier é outra: acabo de ler no "Independent" que ele propôs que as negociações com Londres venham a decorrer em francês. Imagino o "agrado" com que a notícia deve ter sido recebida no governo de sua Majestade... E é preciso não conhecer o "estado da arte" em Bruxelas, em matéria do uso de línguas, para pensar que esta ideia tem pernas para andar. É, claramente, uma afirmação de natureza política, numa "guerra" que a França já perdeu, a meu ver, infelizmente.

(Há dois dias, na reunião da OSCE em Viena em que participei, fiz a minha primeira intervenção em inglês. Convidado no final da sessão a intervir de novo, falei em francês. A embaixadora da França junto da OSCE saudou de imediato no Twitter o facto de eu ter falado na sua língua, repetindo-mo pessoalmente durante o almoço. De facto, fui o único a fazê-lo e a outra língua que ouvi falada na reunião foi... o russo!)

Quando me iniciei nas lides europeias, há 30 anos, o francês competia perfeitamente com o inglês nos trabalhos comunitários. 15 anos depois, quando saí dessa área diplomática, o francês estava já em acelerada perda de força. Dizem-me que hoje, em especial por efeito do alargamento, que trouxe para Bruxelas culturas onde a língua francesa tem já muito escasso acolhimento, a situação é bastante pior. Os ingleses podem sair da União Europeia, mas o inglês tem hoje um lugar eterno garantido como "língua franca" no seio da UE.

Deixo ainda uma historieta, a propósito de Michel Barnier e das línguas. 

Um dia de 1996, convidei-o a vir a Lisboa e ofereci-lhe um jantar nas Necessidades. Estendi esse convite a alguns membros do governo português a quem, em razão dos dossiês que titulavam, poderia interessar conhecer o ministro francês. À entrada, um jovem (e brilhante) secretário de Estado português inquiriu: "O Barnier fala inglês?". Achei que fazia a pergunta por curiosidade, atenta a escassa apetência dos políticos franceses (e ingleses e americanos e espanhóis e alemães, etc) para línguas estrangeiras. Expliquei-lhe que o inglês de Michel Barnier, não sendo (à época) excecional era, contudo, aceitável, inquirindo da razão da sua pergunta. A resposta deixou-me siderado: "É que eu não falo uma palavra de francês!". 

Foi nesse instante que me dei verdadeiramente conta de que uma nova geração portuguesa (e europeia), com uma idade bem inferior à minha, já não tinha o francês como essencial e, pura e simplesmente, não falava, e muitas vezes não compreendia sequer, aquela bela língua. Se assim era há duas décadas, bem pior será hoje. Se Barnier quiser conduzir as negociações com os britânicos em francês, vai ter de arranjar um intérprete... 

sexta-feira, outubro 21, 2016

Florestas e inquietação cívica


Hoje à tarde, pelas 18 h, no Centro Cultural Regional de Vila Real, no largo de S. Pedro, intervirei na apresentação do livro "A Floresta Portuguesa - um apelo à inquietação cívica", da autoria do meu amigo e camarada de armas no 25 de abril, Victor Louro.

Numa perspetiva diferente do habitual, este livro, de grande oportunidade, lança um alerta que é muito importante escutar.

Vêm aí os russos?


Alguma imprensa internacional vem a alertar para a escalada de tensão Leste-Oeste, potenciada pelos conflitos na Ucrânia e na Síria. Alguns falam mesmo da possibilidade de estarmos nas vésperas de um novo confronto de dimensão global. Terá isto algum sentido?

Com o fim e a implosão da União Soviética, países que viviam sob a tutela de Moscovo e algumas Repúblicas da antiga URSS procuraram estruturar sociedades políticas de matriz similar à dos países democráticos da Europa “de cá”. Diga-se que isso correspondeu a um evidente desejo das respetivas populações, ciosas de uma soberania que lhes fora “raptada” desde o fim da Segunda Guerra mundial. A posterior entrada de muitos desses Estados para a UE e a sua inclusão na NATO, em ambos os casos aproveitando a “janela de oportunidade” dada pela debilidade conjuntural de Moscovo, levou ambas as organizações até junto da fronteira russa. 

Atravessada por fragilidades de vária natureza – económicas, tecnológicas, militares, demográficas, etc – que afetavam o estatuto a que se achava com direito, a Rússia viu-se mergulhada num cenário de impotência, que se somava ao sentimento de humilhação histórica pela derrota na Guerra Fria. Neste contexto, a tentativa de alguns de modificar a posição da Ucrânia, vista pela Rússia como o último bastião da «buffer zone» que a separava do ocidente, seria sempre inaceitável. O sonho russo era conservar em Kiev um poder «amigo» que, em especial, não colocasse minimamente em causa o seu livre acesso naval ao mar Negro e ao Mediterrâneo. A mudança «de lado» da Ucrânia não podia assim ser aceite pela Rússia, que deu força militar às populações russófilas no leste do país e aproveitou para tomar a Crimeia, área chave para o poder naval meridional russo. O poder em Kiev pode ser pró-ocidental, mas a Rússia provou conseguir instabilizar o país.

O mal-estar russo criou o caldo de cultura política interna para a emergência de um «cesarismo» na figura de Vladimir Poutin, num registo nacionalista autoritário, tendo como objetivo a restauração de algum poder global de Moscovo. Como resposta aos avanços europeus da NATO, que não esteve em condições de travar, a Rússia colocou em questão os equilíbrios em matéria de forças convencionais acordados no fim da Guerra Fria e assume agora iniciativas destinadas a forçar um novo equilíbrio de poder, de que a postura na Síria é uma componente essencial. Moscovo parece aguardar pelo novo poder americano para dialogar olhos nos olhos com a única potência de que se considera (de novo) rival. Até lá, mexe algumas peças do xadrez militar, para aumentar as suas possibilidades no tabuleiro estratégico.

Vêm ai os russos? Não me parece, mas a solidão decisória de Putin não garante a prevalência da racionalidade sobre algum possível aventureirismo.

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...