A emergência na eleição americana, com hipóteses reais de sucesso, de um candidato com um perfil fora do sistema suscita uma questão de fundo sobre a própria essência do modelo político em vigor nos EUA.
Ninguém pode colocar em causa a representatividade de Donald Trump, o facto das suas propostas configurarem uma agenda de preocupações que atravessa largas faixas do eleitorado americano. Pode argumentar-se que algumas dessas ideias assentam numa perspetiva preconceituosa e caricatural, num primarismo perigoso, às vezes apoiado em mentiras e distorções.
E quem é o juiz nessa avaliação? Se o maior dos ignorantes tem um voto idêntico ao do mais sábio dos cidadãos, então há que convir que o valor político das ideias de ambos, por muito diferente que seja a respetiva informação, se equipara democraticamente no momento do sufrágio.
Nos EUA, no passado, as elites republicana e democrata foram sempre capazes de produzir candidatos oriundos do sistema, com um perfil que respeitava uma espécie de ideologia do "mainstream", não obstante as suas diferenças. Um voto radical de qualquer dos lados acabava por ser recolhido pelo candidato que lhes estava mais próximo, embora ele próprio estivesse longe de traduzir uma agenda extrema.
Nesta eleições, a candidatura democrática conseguiu (pela última vez?) preservar esse modelo de seleção. Hillary Clinton foi capaz de derrotar nas "primárias" Bernie Sanders, uma figura com uma agenda “liberal” (na leitura americana da palavra, que se aproxima da europeia “esquerda”) algo radical. Agora, Clinton espera que os potenciais votantes em Sanders, quanto mais não seja para travar Trump, a apoiem, isto é, reforcem no sufrágio a candidata da elite democrática.
O mesmo não sucedeu no campo republicano: por uma "desblindagem" do processo de seleção, somada à emergência de uma concorrência medíocre nos candidatos da elite republicana, Trump acabou por ser o escolhido. A sua agenda programática acaba por ser uma tradução mecanicista (perdoe-se-me o conceito marxista) da vontade das bases. No fim de contas, poder-se-á mesmo dizer que, em termos de representatividade, Trump está mais próximo da vontade da esmagadora maioria de quantos o apoiam do que Clinton. É chocante escrever isto, mas é uma realidade.
O futuro do sistema político americano poderá vir a depender desta eleição.
Se Clinton ganhar, há quem sustente que a máquina republicana irá repensar o seu sistema de seleção, de modo a evitar novos Trump, mesmo com as consequências que isso possa vir a ter na revolta de franjas republicanas. Trump assusta muitos republicanos, muito embora o seu sucesso tenha contribuído para consagrar aquela que já era uma acentuada radicalização conservadora, a qual num passado recente, afetou seriamente a governabilidade do país. Uma vitória de Clinton, em si mesma uma presidente que entraria na Casa Branca sem a menor onda de entusiasmo ou prestígio mobilizador, se não vier a ser acompanhada por uma mudança no Senado favorável aos democratas, poderá converter os EUA num país bloqueado na sua decisão interna.
Se Trump ganhar, os Republicanos não mudarão, pelo que a assustadora deriva do sistema irá aprofundar-se, tanto mais que, no campo oposto, Clinton só conseguiu o apoio de Sanders pela promessa de que futuras “primárias” reflitam mais diretamente os “humores” populares. Uma “desblindagem” do Partido Democrático, num tempo presidencial de Trump, abriria a América a uma bipolarização que faria com que a eleição presidencial de 2016 acabasse por ficar para a História como o debate “civilizado” que esteve muito longe de ser.
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")