Há dias, a pretexto de uma crítica que fiz às ideias políticas de Miguel Urbano Rodrigues, numa nota respeitosa que escrevi por ocasião da sua morte, fui, nas redes sociais, zurzido de “anti-comunismo”. Só faltou acrescentarem “primário”...
A acusação de “anti-comunismo” está ligada, entre nós, a um certo período histórico. “Anti-comunistas” eram quantos, no pós-25 de abril, diabolizavam o PCP (apenas a este partido isto era aplicável), negando, implícita ou explicitamente, a sua legitimidade para integrar o espaço democrático. Para alguma esquerda, ser “anti-comunista” era, ao tempo, quase sinónimo de “fascista”, de defensor da ordem ditatorial anterior, que tinha no PCP como inimigo jurado.
Reconheço alguma razão nesse reflexo porque, já depois do 25 de abril, ainda houve gente que sonhou ilegalizar o PCP – e nunca poderemos agradecer suficientemente a coragem tida por um homem como Ernesto Melo Antunes, ao impor a recusa política dessa sinistra ideia, na sequência do 25 de novembro.
Porém, uma coisa é ser “anti-comunista”, nesse preciso registo, outra bem diferente é ter o direito a expressar, sem risco de insulto, uma discordância com a agenda política hoje titulada pelo PCP. No meu caso, combato muito daquilo que o PCP defende, acho obsoleto e retrógrado muito da sua agenda política, mas não admito que, por essa razão, alguém me qualifique de “anti-comunista”.
Faço parte de uma geração política que foi educada no respeito pelo “Partido”, na admiração pela bela história de luta dos comunistas portugueses, principais vítimas da repressão da ditadura, tempos em que com eles me senti bem solidário, a quem agradeço os sacrifícios que fizeram e que muito contribuíram para a nossa liberdade.
É claro que algum PCP teve tentações autoritárias no período do PREC, mas muitos de nós, por essa altura, também embarcámos em aventureirismos que, fazendo parte indissociável do nosso passado, fazem igualmente parte daquilo que foi a nossa aprendizagem política: a ideia de que não há nada mais parecido com uma ditadura de direita do que uma ditadura dita de esquerda. E não me obriguem a dar exemplos.
Lembrei-me de tudo isso, há dias, quando, com o presidente da República, mas também com o secretário-geral do PCP, participei numa justíssima homenagem a Mário Castrim, militante comunista. Durante essas horas, não me dei conta de que alguma distância, no plano das ideias políticas, me impedisse de apreciar o jornalista e o escritor que nos ajudou, com arte e ironia, a atravessar o "ar irrespirável” da ditadura. Alguém que, para retomar o belo poema de Manuel Gusmão (também ele comunista), citado na ocasião pelo ministro da Cultura, nos ajudou a encontrar,"contra todas as evidências em contrário, a alegria”.