A Caixa Geral de Depósitos fez ontem 140 anos. Uma bela idade. A Caixa faz parte da minha vida. O meu pai foi funcionário da Caixa Geral de Depósitos por 47 anos, 25 dos quais como gerente, em Caminha, Monção e Vila Real. Vivi parte da minha juventude na residência que lhe era atribuída. Foi pelo exemplo dele, como funcionário da Caixa, que aprendi a respeitar e a reverar o serviço do Estado.
"Nisto não se mexe, isto é do Estado!". Tenho esta frase no ouvido desde sempre. Eu devia ter 7 ou 8 anos e o meu pai havia-me levado, uma tarde, a assistir à abertura de uns caixotes de madeira que, uma vez por ano, chegavam, "de Lisboa", com o material de papelaria, para ser utilizado pelos funcionários, nos 12 meses seguintes. Eram resmas e blocos de papel, lápis, cartolina, borrachas, elásticos e tinta para canetas. Para quem, como eu, vive, desde que se conhece como gente, fascinado pela "stationery", a visão desse material deve ter-me criado imensa água na boca. Mas o meu pai, nas coisas do Estado, era inflexível: nunca tive, pela sua mão, um lápis ou uma borracha "do Estado" e, recordo-me muito bem que, quando passei a poder usar uma velha máquina de escrever da família, o meu pai trazia para casa fitas já usadas, consideradas demasiado gastas para o serviço...
Foi assim que, em minha casa, aprendi, para vida, o que era o Estado. Dessa forma me foi ensinado o que era ser servidor público, como o meu avô já o fora, este mostrando-me, pelo exemplo constante de vida, que servir o Estado era sinónimo de servir o país. Com eles aprendi a recusar uma dualidade pessoal com o Estado, porque, como sempre ouvi, "o Estado somos todos nós".
Durante muitas décadas, a Caixa foi o banco popular de Portugal. Era à Caixa, porque a Caixa era do Estado, que as pessoas mais simples confiavam os seus haveres. A Caixa tinha "cadernetas" escritas à mão, onde era inscritos os juros e registados os saldos. Os depositantes compraziam-se em passar pelo balcão da Caixa, para fazer esse acrescento regular, que lhes assegurava "quanto tinham na Caixa".
O meu pai recordava, às vezes, uma pequena história. Um dia, um funcionário veio avisá-lo de que um cliente, depois de ter pedido para "atualizar a caderneta", informara que queria levantar todo o dinheiro que tinha na sua conta, em espécie. Tratava-se de um montante bastante elevado e, até por razões de segurança, era um pouco estranho que o cliente quisesse transportar o dinheiro dessa forma. Estaria o homem insatisfeito com o serviço prestado pela Caixa?
O meu pai mandou entrar o cliente para o seu gabinete. Era um homem simples, residente numa aldeia próxima de Vila Real, idêntico a uma imensidão de outros clientes oriundos das áreas rurais, que constituiam uma grande massa dos depositantes na Caixa. Tinha uma atitude de alguma reserva, talvez mesmo desconfiança, típica de pessoa de aldeia confrontada com a realidade, menos transparente, da cidade. Perante a estranheza manifestada, pela inusitada (e até arriscada) operação que ele pretendia executar, o homem respondeu: "O dinheiro é ou não é meu? Posso ou não posso fazer com ele o que me apetecer? Quero levantá-lo todo e já!". Perante esta inabalável determinação, o meu pai mandou preparar grandes envelopes com as notas, que foram entregues ao cliente. Após receber o dinheiro, o homem perdeu largos minutos a contar todas as notas. No final, disse: "Agora, quero depositar isto tudo outra vez. Foi só para saber se o dinheiro ainda era meu!". E era, claro.
Em 1971, no meio de algumas atribulações académicas que suspenderam o meu percurso universitário, e como forma de evitar que os meus pais continuassem com encargos derivados das trapalhadas universitárias do filho, decidi empregar-me. E fiz concurso para a Caixa, que admitia algumas centenas de novos funcionários.
Nesse concurso público de entrada, algum domínio da escrita terá compensado falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales. Só avisei o meu pai, de quem passei a ser "colega", depois do resultado das provas ser tornado público. Tenho, aliás, a ideia de ter ficado lá para o meio da tabela...
A Caixa Geral de Depósitos tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz (na imagem), onde eu passei a trabalhar no "serviço de títulos".
As regras eram à antiga. Eu vinha dos Olivais, de autocarro, passava para o metro, subia o elevador da Glória e atravessava o Bairro Alto. Entrava-se às 9.30. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes do encerramento do expediente, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava invariavelmente de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 17.30. Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado!
Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com quem a vivia com dificuldades bem maiores do que as do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, entre os quais fiz - diga-se - sólidos amigos.
O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tive de pedir autorização excecional para as escassas ausências. Mais tarde, foi necessário utilizar os dias de férias, para poder estar presente a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.
O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas suas secretárias ou saltitando em conversas, sempre sob o olhar crítico do senhor Marques, que prescutava as várias áreas do imenso "open space" por onde nos distribuíamos.
Os contínuos, o Rui e o Abrantes, forneciam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny, com preços "de favor".
Às segundas-feiras, dominava o futebol. Não se falava muito de política, salvo com o Aldeia e com o Murta, amigos com quem essa maior intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito Com eles, mantinha alguma cumplicidade, pela comunhão de que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.
Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, o senhor Trancoso, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, quase sem nos olhar, colocava-se junto à saída para um excecional aperto de mão anual de favor. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas do ano ficarem exatas.
Era assim a vida de um bancário público, que fui durante quatro anos. Nostalgia? Nenhuma, podem crer.
A Caixa mudou muito. Nem sempre para melhor. Há uns anos, numa dependência da Caixa, em Vila Real, testemunhei o drama de uma pobre senhora de aldeia, a dona Celeste, confrontada com a impossibilidade de resgate do montante de um "produto" em que, há alguns anos, tinha sido convencida a empregar alguns largos milhares de euros e que, agora, se via impossibilitada de levantar, sem perder uma importante fatia do próprio capital. Assiti então, por largos e pungentes minutos, ao embaraço delicado dos funcionários, dos lamentos lancinantes da senhora, seguidos do seu desmaio, com hipótese de convocação do 112. Um espetáculo triste, penoso e indigno, que incomodou quem a ele assistiu. Que não sei mesmo como acabou, porque, logo que pude, saí, indignado.
Quem terá sido o funcionário espertalhote que vendeu à dona Celeste o "produto", em cujo "small print" estavam (espero eu!) as condicionantes limitativas das possibilidades de resgate? Aquele que o fez impingiu àquela pobre senhora, que tinha uma evidente limitação cultural para entender as peculiaridades da evolução financeira dos mercados, um "produto" em que enterrou muitos dos seus haveres. E, goste-se ou não da palavra, essa pessoa incorreu, na prática, numa verdadeira fraude. Ela e, com ela, a Caixa Geral de Depósitos, instituição onde também eu tenho as minhas economias e que, por ser propriedade do Estado, sempre tive por um banco diferente, onde tinha a certeza que os clientes nunca seriam tratados assim. Enganei-me, pelos vistos.
Se fosse vivo, e se tivesse assistido a esta lamentável cena, o meu pai teria sentido uma imensa tristeza, idêntica à que eu próprio experimentei. Mas ele já morreu, como também já parece ter desaparecido uma parte daquela Caixa Geral de Depósitos que foi o seu orgulho, em que as pessoas mais simples deste país, por muitos anos, se habituaram a confiar.
Apesar de tudo, mas por tudo o resto, parabéns à Caixa. E uma nota interessante: gostei de ouvir o chefe do Estado, numa dependência da Caixa Geral de Depósitos, afirmar que era favorável a que a instituição permaneça pública. Eu também sou, claro.