quinta-feira, março 19, 2015

O Estado do Governo

O governo que, sob o seu ódio ideológico ao Estado, mais tem procurado instrumentalizar a Administração Pública, ao mesmo tempo que a despreza, humilha e enfraquece sempre que pode, é o mesmo governo que se esconde atrás dessa mesma Administração, deitando as culpas para os seus agentes e fugindo à assunção de responsabilidades políticas, logo que as coisas começam a correr mal para os seus interesses, por virtude da destruição e desqualificação organizada da máquina pública, que deliberadamente empreendeu.

Brasil

 
Na Económico.TV participei ontem num debate sobre a situação político-económica que o Brasil atravessa, no programa "Acerto de contas".
 
Pode ver aqui a 1ª parte e aqui a 2ª parte.
 

quarta-feira, março 18, 2015

Memorabilia diplomática (IX) - Uma profissão improvável

 
Era um homem encantador, que conheci num "Dez de junho", poucos dias após chegar ao meu primeiro posto, em Oslo, em 1979. Estaria na casa dos cinquenta, com um ar um pouco mais velho, porque a vida dura que o trouxera emigrado para a Noruega, onde labutava numa fábrica, não ajudava a conservar a frescura. Tinha vindo da Beira, de onde conservara a maneira de falar própria, com muitos "ches" à mistura. Viera com a sua mulher, há mais de vinte anos e o seu português, embora fluente, ressentia-se já disso. Dois filhos tinham-lhe nascido nas terras nórdicas. Nas visitas que, por vezes, me fazia na embaixada, quando por lá passava para renovar o passaporte ou tratar de qualquer outro documento, falava-me com orgulho do excelente percurso académico da prole.
 
Um dia, já no período final da minha estada no posto, convidou-nos para ir almoçar à sua casa, num fim de semana. Era um moderno apartamento numa zona fora de Oslo, mobilado e decorado ao gosto de quem trouxera a saudade do Portugal rural agarrada à pele. Notava-se que a vida de operário especializado lhe tinha garantido proventos para uma existência relativamente desafogada, a qual, claro, lhe havia dado oportunidade de construir a casa na aldeia beirã, para a qual regressaria no final da aventura norueguesa. Estava muito grato à Noruega: a ele e à mulher, dera-lhes trabalho e bom salário, usufruíam do Estado social, tinham uma boa pensão à sua espera, educara-lhes os filhos.
 
O almoço, que era um gesto bem amável de despedida, era também sobre isso. Um dos rapazes acabara, com excelente nota, o curso de Relações Internacionais, na universidade de Oslo. Com dupla nacionalidade, por consenso familiar, tinha intenção de ingressar na carreira diplomática portuguesa. Não sabiam por onde começar para concretizar o sonho do rapaz e, por isso, pediam a minha ajuda.
 
Era um miúdo tímido, com ar vivo. Ainda à mesa, perguntei-lhe pela composição do curso, para perceber se se coadunava com as nossas exigências. Quando falou - e era a primeira vez que o ouvia - caí das nuvens! O licenciado com mérito na universidade norueguesa tinha, em português, uma fala hesitante, articulava muito mal as frases, sofria de uma imensa pobreza vocabular. Ele era, simultaneamente, um norueguês educado, seguramente bem fluente, e um português que nem sequer tinha o ritmo discursivo, já de si muito pobre, dos seus pais. Copiava-lhes o sotaque, num registo caricatural, que redundava numa sonoridade bizarra. Só um ou dois anos de "imersão total" na sociedade portuguesa, com alguém que o ajudasse a adquirir uma cultura linguística suficiente, permitiria que viesse a obter as bases mínimas para poder apresentar-se ao concurso para diplomata em Portugal. E, mesmo assim...
 
Eu não sabia o que havia de dizer àqueles pais que tinham o sonho de ver o seu filho como meu futuro colega. Perguntei-lhes qual o plano de vida que tinham para ele. A confiança era imensa: apenas queriam saber os requisitos para o concurso. O rapaz haveria de se preparar, lá em Oslo, para um dia ir fazer as provas a Lisboa. Embaraçado, dei conta da imensa exigência do exame, do facto de serem centenas ou para cima de um milhar de candidatos para um admissão de uma dezena ou um pouco mais, das temáticas de História portuguesa que era fundamental dominar. Disse-lhes que havia candidatos que passavam meses consecutivos a estudar os temas para as provas, frequentando a biblioteca das Necessidades. E que a esmagadora maioria não era admitida. Os meus avisos não desanimavam o meu amigo, embora eu pudesse detetar no filho alguma perplexidade.
 
Dias depois, enviei-lhes o regulamento do concurso, agradecendo-lhes a simpatia do almoço. Parti da Noruega para Angola, algumas semanas depois. Nenhuma das caras de jovens colegas com os quais me cruzei, nos anos seguintes, nos claustros e corredores do palácio das Necessidades, era o filho daquele meu amigo português da Noruega.      

Netanyahu


Em meados de 1996, recebi no meu gabinete o embaixador de Israel em Portugal. Meses antes, em Jerusalém, ambos havíamos almoçado em casa de Itzahk Rabin, horas antes deste ser assassinado. A partilha desse momento criara entre nós uma relação especial.

Israel tinha ido a votos, semanas antes. Netanyahu acabava de ser nomeado primeiro-ministro. O embaixador cessava as suas funções, por ter atingido a idade da reforma. Ia regressar a Israel. Era uma figura muito simpática, popular em Lisboa, onde ia deixar grandes amigos. Ofereceu-me um livro de Amos Oz, que tinha acabado de ser publicado em português. Trocámos algumas palavras amáveis, como é uso nas despedidas, desejei-lhe felicidades pessoais e fui levá-lo ao pátio do Palácio da Cova da Moura, onde estava o seu carro. Lá chegados, perguntei-lhe se achava que a vitória do Likud ia induzir mudanças drásticas no processo de paz que, pelo menos no papel, parecia ainda poder subsistir. Otimista por dever de ofício, disse-lhe que não esquecia que o mais corajoso passo político que testemunhara por parte de um governo israelita - o tratado de paz com o Egito - fora dado precisamente por um governo Likud. Seria este novo governo Likud capaz de uma "paz dos bravos"?

O embaixador olhou para mim de um modo estranho. Fez um ricto facial que não me pareceu dever-se ao sol que lhe banhava a cara. Notei lágrimas a surgirem-lhe nos olhos. Agarrou-me o braço com força e, com visível dificuldade para dizer o que diria de seguida, ousou expressar: "Meu querido amigo. Provavelmente, eu não deveria estar a dizer-lhe isto, mas digo-o: com a eleição de Netanyahu, o meu país entrou no caminho da tragédia. Qualquer paz é impossível com ele. Não o conhecem!". E entrou no carro. Nunca mais o vi. Não sei se, quase duas décadas passadas sobre aquele momento, ainda será vivo. Espero bem que sim.

Lembrei-me dele há minutos. Os israelitas voltaram a escolher Netanyahu.

terça-feira, março 17, 2015

Renascença



Hoje, 3ª feira, a partir das 23 horas, estarei no espaço da Grande Entrevista da Rádio Renascença, à conversa com Raquel Abecasis.

Em tempo: veja um extrato aqui

Memorabilia diplomatica (VIII) - O adido


MNE, há mais de 30 anos. 

O diretor-geral, à secretária, de óculos na ponta do nariz, lia lentamente a informação de serviço que o adido de embaixada tinha preparado. De pé, o chefe de repartição e o jovem autor do texto mantinham-se num reverente silêncio, esperando o veredito.

Acabada a leitura, o diretor-geral levantou os olhos, deu um leve suspiro, olhou para o adido e disse: "Deixe ficar o papel", com uma implícita indicação de que o funcionário poderia retirar-se. 

Quando ficou a sós com o chefe de repartição, este último, pressentindo algum desagrado no modo como o seu superior tinha acolhido o texto, perguntou: "Não gostou da informação? Posso mandar refazê-la...".

O diretor-geral não respondeu logo. Levantou-se, caminhou para a janela e ficou a ver a ponte sobre o Tejo. Segundos depois, voltou-se, encarou o chefe de repartição, deu um suspiro ainda mais longo e inquiriu: "Você sabe quando é que este tipo entrou na carreira?". 

- Julgo que foi no concurso de há cerca de dois anos. Porquê?

- Por nada. Ele não tem culpa nenhuma, é apenas um incompetente que não sabe escrever português e que vai demorar alguns anos até se tornar num funcionário sofrível. Até lá, quem sofre é o Estado. O que eu gostava de saber é quem foram os cretinos dos membros do júri de admissão que o não chumbaram...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

O terraço de Varufakis


A Europa vive um momento raro de teatro. Confrontada com o corpo estranho que é o novo governo grego, que desde o início lhe contesta a filosofia orientadora, foi a cara de Dijsselbloem, o ministro holandês que preside ao Eurogrupo, a que melhor refletiu, desde o início, aquele misto de perplexidade e arrogância que foi a reação do “statu quo” comunitário. O jogo facial não terminou, porém, por ali. Entre o semblante fechado de Schauble e o ar jovial, latino do Norte, de Juncker, a Europa tentou descobrir a melhor forma de flexibilizar uma Grécia desengravatada, que lhe provocava a coreografia consuetudinária. A Europa não quer perder, sabe que não pode ser vista a perder, mas tem consciência de que o sentido de responsabilidade impõe que mostre um mínimo de abertura.

Quer Bruxelas quer Atenas começaram por navegar à vista. Os gregos colocaram em cima da mesa um conjunto de ideias, racionalmente coerentes, mas completamente à revelia da ortodoxia dominante. Não era difícil prever que a resposta institucional fosse, em absoluto, negativa. A Comissão, com anos de experiência em adocicar Estados recalcitrantes, lançou, talvez cedo demais, uma espécie de boia semântica, que pudesse salvar as duas faces que se confrontavam. Os alemães, sujeitos a uma barragem mediática sem precedentes por parte das novas autoridades gregas, forçaram a recusa do gesto. A sua opinião pública, com os títulos da imprensa a ressoarem diariamente as provocações helénicas, não compreenderia. Nem a senhora Merkel ousou fazer de “good cop”. Para Berlim, a Grécia terá de “morder o pó”, como se dizia nos “westerns”…

Numa tática antiga, as instituições procuraram – e não admiraria que viessem a procurar de novo – explorar uma possível dualidade interna grega, entre um primeiro-ministro que parecia politicamente mais abordável e um ministro das Finanças que dava ares de caminhar em glória aos ombros de si próprio, como se as derrotas o fortalecessem. Por um momento, chegou a parecer que ambos diziam coisas algo diferentes, mas o tropismo da política interna acabou por também reempolgar Tsipras.

A Europa tem do seu lado o tempo, a Grécia tem a pressa, que lhe limita as opções. Bruxelas percebeu que era importante atenuar a estratégia confrontacional grega. Deu-lhe, num papel, as “instituições”, em lugar da “troika”. Em contrapartida, obrigou-a a aceitar a ida a Atenas dos seus técnicos. Os gregos avançaram generalidades, Bruxelas recupera agora a mão e quer coisas concretas, calendários, quantificações. Atenas dá sinais de que parece esperar que, na iminência de uma situação de catástrofe, a Europa conclua que pode ser politicamente mais barato um compromisso.

Pelo meio de tudo isto, Varufakis posou, de senhora ao lado, para o “Paris Match”, num terraço à vista da Acrópole, Santorini fresco no copo. Numa conferência, fez um “dedo de honra” aos alemães. Se esta tática grega funcionar, modestamente, reverei tudo o que quatro décadas de diplomacia me ensinaram. E com grande gosto, confesso.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, março 16, 2015

Memorabilia diplomática (VII) - Quem vê caras...


São duas curtas cenas que se ligam.
 
A primeira passou-se em Arusha, na Tanzânia, durante uma reunião da então SADCC, em 1988. A delegação portuguesa não tinha conseguido arranjar quartos individuais para toda a gente, pelo que eu partilhava um deles com o meu colega João Salgueiro. A certa altura da madrugada, o João acordou-me, chamando a atenção para uma gritaria no corredor do hotel. Era a voz de um homem que insultava uma mulher, a qual lhe respondia num nível idêntico de linguagem. A curiosidade é que a "conversa" era... em português! Abri a porta do quarto e vi passar uma mulher negra, lindíssima, completamente nua, com umas peças de roupa na mão, saída do presumível dissídio num quarto vizinho. Perguntei-lhe: "Precisa de ajuda?" Ela olhou-me com uma cara angustiada, respondeu com um "não" quase impercetível e desapareceu, a correr, na esquina do corredor. Era, com toda a certeza, da delegação de um país de expressão portuguesa. No dia seguinte, porém, não a descortinei em nenhuma dessas delegações.
 
Decorreram alguns meses. Uma outra deslocação, desta vez para uma reunião da Convenção de Lomé, agora na ilha Maurícia. Num corredor de acesso à sala da sessão, encontro jubiloso com a delegação de um país de língua portuguesa, com troca amigável de abraços entre os dois membros do governo e cumprimentos entre os restantes delegados. Numa dessas saudações, deparo com o sorriso tímido de uma delegada, que me disse, baixo: "Olá, como vai?". A cena foi rápida, mas o tempo suficiente para eu perceber que se tratava a minha "conhecida" de Arusha. Os nossos colegas lusófonos afastaram-se mas o Duarte de Jusus, que estava ao meu lado e ouvira a saudação da delegada, comentou: "Era muito bonita! Você conhecia-a?". O António Dias e o José Manuel Correia Pinto costumam citar a minha exclamação, que provocou gargalhadas em toda a nossa delegação, mas de que hoje, confesso, me arrependo: "Eu já vi esta mulher nua!". E na passada contei, também um tanto impudentemente, a cena de Arusha. Na altura, o Duarte de Jesus, que é um homem sempre sereno, manifestou apenas a sua surpresa por eu me recordar de uma pessoa que vira só durante alguns segundos. Gostaria de ter tido o génio de lhe responder: "Eu nunca esqueço uma cara..." 

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Lajes


Há 12 anos, dia por dia, teve lugar aquela que ficou conhecida como a "cimeira" das Lajes, no Açores. Politicamente foi uma farsa destinada a criar a ilusão de que ainda era possível evitar que os Estados Unidos invadissem o Iraque, à procura das "armas de destruição maciça". A história e farta documentação provam hoje que essas armas nunca existiram e que a decisão de Washington estava tomada, independentemente de qualquer legitimação da comunidade internacional.
 
Portugal prestou-se ao triste papel de hospedeiro nas Lajes. Ao país, o primeiro-ministro de então, Durão Barroso, ficou para sempre a dever uma explicação pelo facto de ter conduzido Portugal a um papel servil e desonroso. O ministro da Defesa de então, Paulo Portas, também ainda há-de explicar um dia as provas da existência dessas armas, que então disse que "viu".
 
Somos um país sem memória porque, se a tivéssemos, talvez alguém chamasse hoje à pedra um bando de propagandistas, alguns sob a capa da profissão de jornalistas, feitos "neocons" da paróquia, que, dos jornais aos blogues, passando pelas complacentes televisões, argumentaram então, por semanas, em favor da "justeza" dessa guerra, que acabou por conduzir o Iraque à situação em que está, pasto para o atual Estado Islâmico e para o incontrolável caos que afeta toda a região. Um deles, hoje alcandorado a um posto de nomeação governamental, escreveu então que, se acaso se viesse a provar que as tais "armas de destruição maciça" não existiam, se "passearia nu pelo Rossio". Não há, por ora, notícias desse triste espetáculo, que o país anseia ainda testemunhar.
 
A propósito da publicação do livro de Bernardo Pires de Lima: “A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013), escrevi no nº 44 da revista "Relações Internacionais" um texto sobre a obra, que pode ser consultado aqui

Brasil...

 
Para um amigo do Brasil como eu sou, que por aí tive a experiência mais impressiva da minha carreira profissional, o que por lá se passa traz-me sentimentos contraditórios.

Por um lado, preocupa-me ver uma sociedade atravessada por uma tensão social muito forte, com a emergência de quase "dois Brasis", que prolongam a dualidade política pressentida na última eleição. Inquietam também os apelos populistas ao regresso da ordem militar, mesmo se todos percebem que as condições para esse estado autoritário de coisas estão muito longe de existirem. Mas que a memória desses tempos de chumbo se exiba sem vergonha é, pelo menos, triste.

Por outro lado, o Brasil que ainda ontem desceu às ruas demonstra a vitalidade de um país que começa a ter plena consciência da incompatibilidade de construir uma nação desenvolvida e moderna sob um sistema político marcado pela podridão, pelo patrimonialismo e pela sujeição a uma classe política sem escrúpulos e com fortes vícios incrustados.

Nas ruas que ontem se vestiram a verde e amarelo há de tudo: desde os ressabiados pela perda de poder, que os anos Lula haviam retirado legitimamente a quem mais beneficiava do forte contraste social, até uma nova classe média, ou com esperanças de o ser, que não aceita que o seu petróleo, do "Estado Petrobras", alimente bolsos corruptos, lado a lado com uma população condenada a transportes miseráveis, serviços de saúde indignos, rodovias em descalabro, em suma, políticas públicas fortemente ineficientes.

Deve ser muito difícil gerir um país de 200 milhões de habitantes, dirigir uma administração que, para funcionar, tem de conseguir aliar sob o mesmo programa mais de uma dezena de partidos, acomodar os seus interesses, muitas vezes contraditórios, que se cruzam com as idiosincrasias dos equilíbrios políticos e sociais de 27 Estados. Em período de ciclo económico negativo, tudo se torna pior, porque as margens financeiras para um forte keynesianismo deixaram de existir. Em especial, deve ser muito complicado gerir as frustrações que se seguem às fortes esperanças criadas pelo anos Lula, desse tempo do Brasil-vedeta, que ombreava e era admirado pelos poderosos do mundo - o Brasil do sonho do biodiesel, do ouro do pré-sal, dos êxitos do Fome Zero, da explosão da educação para todos. Um tempo em que, para muitos, tudo ia ser possível, nesse otimismo que é a riqueza maior daquela terra.
 
Dilma Rousseff não parece ser a figura ideal para encarnar esse otimismo. Mas é a presidente que foi eleita e o "impeachment" de que muitos falam, e que teria consequências gravíssimas para a normalidade constitucional que o Brasil ganhou, não tem hipóteses de se concretizar, tanto mais que teria que ser desencadeado no âmbito de um Congresso desprestigiado e, ele próprio, com uma legitimidade muito fragilizada, depois dos recentes escândalos.

Resta a hipótese de Dilma Rousseff conseguir vir a interpretar a pressão popular e impor uma reforma política com reais consequências no sistema de poder. Conhecendo alguma coisa do Brasil político, alimento sérias dúvidas que isso seja possível. Mas, às vezes, os suicidas conseguem ter serenidade para se arrependerem e regressar à vida.

domingo, março 15, 2015

Memorabilia diplomatica (VI) - O último


O gabinete não era grande. Para além, do seu titular, com jeito, cabiam sentadas umas quatro pessoas, para além dos que ficavam encostados, de pé, no vão da janela ou na moldura da porta de entrada, ou de quantos só assomavam por escassos minutos. Era um fim de tarde, nos anos 80, naquela representação diplomática portuguesa, numa capital europeia.

Eu estava por ali de passagem, ido de Lisboa para uma reunião. Com o colega em casa de quem me alojava mantinha-me por ali à conversa, nesse que era gabinete de um outro diplomata.
 
O dono do gabinete, com quem eu tinha uma relação distante, era conhecido por ser uma das pessoas que mais tarde saía das instalações. Era uma figura muito loquaz, com um humor cortante, algo ácido, muito radical nas opiniões. Era um homem inteligente e não deixava de ser divertido. Porém, a partir de uma certa altura, pelo menos para mim, senti por ali algo indefinido de desagradável: sempre que alguém abandonava o gabinete era mimoseado por ele com comentários depreciativos, do género "esta também tem a mania que é esperta!" ou "este tipo é um parvo e ainda nunca ninguém lho disse". Alguns dos que ficavam riam-se, numa partilha cobarde da crítica, nas costas do ausente. Outros, como era o meu caso, que mal conhecia a maioria dos visitantes, faziam um sorriso amarelo, onde abafavam o incómodo.

O tempo ia correndo, comigo "morto" por sair dali. Mas fui ficando, porque dependia da boleia do colega que me aboletava, com quem tinha um jantar, cuja hora se aproximava. A certo passo, no gabinete, para além do seu titular, ficámos só eu e o meu amigo. Ousei dizer: "se calhar, temos de ir andando..." Vi que o meu amigo se apressou a aproveitar a sugestão. Despedimo-nos do agora solitário mal-dizente e saímos. No elevador, comentei:

- Desculpa ter apressado a conversa, mas já creio que estamos já em cima da hora do restaurante.

O meu amigo retorquiu:

- Fizeste bem, mas não podíamos sair mais cedo.

Não percebi, mas ele explicou:

- Eu, daquele gabinete, sou sempre o último a sair. É a única garantia de que ele, logo de seguida, não vai dizer mal de mim a quem por lá ficar...

Razões para morrer

Há dias, atentei numa cerimónia em Londres onde se honrava a memória dos 453 militares britânicos mortos no Afeganistão, na decorrência da ação militar desencadeada nesse país por uma coligação de forças liderada pelos EUA. Recordo que se tratou da resposta militar aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a coberto de um mandato das Nações Unidas, com indiscutível legitimidade. O Afeganistão acolhia grupos terroristas que, naquele como noutros casos, se tornaram fortemente detrimentais para a paz mundial. Portugal integrou essa ação e fez bem.

Porém, ao refletir sobre os 453 mortos britânicos (para 2356 americanos e 2 portugueses), não pude deixar de comparar este sacrifício com o resultado efetivo deste esforço político-militar. Olhando para o Afeganistão dos nossos dias, para a extrema fragilidade das suas instituições políticas, para a permissividade ao compromisso com alguns grupos de "talibans" claramente responsáveis por ações de extrema violência, observando os efeitos que a campanha teve na perigosíssima desestabilização do Paquistão, a interrogação é legítima: valeu a pena? Se eu me coloco esta questão, muito mais legítimo é que ela surja aos familiares dos mortos.

Nos últimos tempos, temos vindo a assistir a uma evidente retração do Reino Unido no cenário político-militar global. O tradicional "compagnon de route" dos EUA mostra-se cada vez mais relutante a envolver-se em aventuras militares, sendo a da Líbia, em 2011, a última conhecida - cuja resultante está bem longe de se poder considerar brilhante. Pensando nos 453 mortos no Afeganistão, no peso orçamental de umas forças armadas qualificadas, nos militares e nas suas famílias, pergunto-me sobre a liberdade que um governo como o britânico terá hoje para comprometer tropas em zonas de conflito e de risco, que não sejam percebidas pelas populações como representando a sua fronteira natural de segurança.

E dei comigo a pensar sobre a NATO, sobre o artigo 5º do seu tratado constitutivo, sobre a agressão a um Estado dever ser considerada como uma agressão a que todos os outros têm de responder. Até que ponto a acumulação destas frustrações geopolíticas, a atenção crítica das opiniões públicas, o regredir do patriotismo, a leitura diferenciada dos interesses não terá já corroído os fundamentos de um compromisso que vem de um tempo em que o adversário era claro e existencial, em que quase ninguém aceitava o princípio complacente do "better red than dead"?

Esta é uma questão da maior importância, num tempo em que se ouve Jean-Claude Juncker falar, com alguma ligeireza, da necessidade do "exército europeu"? Onde está o "patriotismo" europeu que pode levar alguém, algum dia, a correr o risco de poder morrer em combate longe da sua fronteira natural? Devemos refletir muito bem em tudo isto quando analisamos a questão da Ucrânia e das fronteiras NATO por essa área.

Incredulidade

Na passada quinta-feira, ouvi na rádio as primeiras informações sobre a medida governamental, anunciada nesse mesmo dia, relativa a novos apoios ao regresso de emigrantes. A síntese fornecida pareceu-me redutora, algo caricatural, pelo que, concluí, só podia ser uma apresentação fantasiosa. Desde logo, pela ousadia "keynesiana" que transpirava do projeto, completamente à revelia da fúria liberal que tem varrido o país. Por isso, decidi ir ver as coisas com mais calma.

Embora eu não navegue nas águas oficiais dominantes, um mínimo de rigor impõe-me a obrigação de atentar nas iniciativas legislativas da maioria cessante. Faço parte de quantos acham que um governo, lá porque não nos é simpático, não produz, sempre e necessariamente, coisas negativas. Algumas vezes há-de acertar, caramba!

Assim, e por esta pudica prudência, fui ler um pouco mais sobre a iniciativa. E não quis acreditar! É preciso um executivo estar num estado de estertor, de indigência de ideias, para conseguir produzir um projeto daqueles. O mais impressionante é, de longe, o seu grau de "ambição": 20 a 30 iniciativas para começar, podendo vir a atingir o número astronómico de 200 (!!!) pessoas. Tudo não quantificado, que isso de contas é para se fazer mais tarde...

Que arrojo! Pode aferir-se, desde logo, o impacto fortíssimo deste programa no crescimento do produto nacional. E, em especial, podemos imaginar o gáudio e o entusiasmo transbordante que esta iniciativa legislativa vai provocar nos quase 300 mil portugueses obrigados a sair do país nos últimos anos, ao saberem que, no limite máximo de abrangência do modelo, menos de um em cada 1000 dentre eles, terá à sua disposição verbas para lançar um negócio, num regresso estimulado à mãe pátria - uma barbearia, um café, quiçá uma tabacaria num vão de escada! Imagino-os, pelo mundo, prenhes de gratidão, embora talvez ligeiramente perplexos: porque este ainda é, aparentemente, o mesmo governo que os estimulou a saírem da "zona de conforto", isto é, que lançou as bases das políticas públicas negativas que hoje contribuem para o seu atual desconforto. Mas o que lá vai lá vai, não é? Amigos como dantes, especialmente em ano de eleições...

O eleitoralismo e o populismo são muito maus conselheiros. É que não deixa de ser irónico ter sido dado a este programa o acolhedor nome de "Vem", logo por parte de um governo que, com o empurrão benévolo deste tipo de genialidade legislativa, não tarda se vai.

sábado, março 14, 2015

Memorabilia diplomatica (V) - A viagem impossível

Foi noutro março, em 1976.

Eu estava em S. Tomé, ao serviço do nosso então Ministério da Cooperação, para tentar acabar com uma greve dos professores cooperantes que, meses antes, tinham sido enviados de Portugal para o novo país. No jardim da residência do embaixador, entrei à conversa com uma velha empregada, a quem procurei indagar como é que os santomenses estavam a viver a sua independência recente.

"Eu não sou de cá, sou de Cabo Verde", respondeu-me a senhora. "Vim para S. Tomé há muito tempo".

"E agora, com o seu país também independente, tenciona regressar? Tem lá a sua família...", comentei.

Demorei uns segundos a entender o olhar triste da mulher e a indizível tristeza da sua resposta: "Eu não posso regressar nunca à minha terra. Não vou voltar a ver a minha família. Não tenho dinheiro para voltar. Vou morrer por aqui."

Tudo o que eu sabia sobre a tragédia dos "contratados" caboverdeanos, levados para um trabalho quase escravo nas roças santomenses, nada representava, ao lado da lição da vida daquela mulher, que nunca teria suficientes posses para a aventura que representaria regressar à sua terra natal, com a qual não havia já ligações marítimas e as vias aéreas eram muito escassas, complicadas e caras. 

Anos mais tarde, ao ouvir Cesária Évora cantar o "Sodade", onde se fala, em crioulo, de "esse caminho longe, esse caminho para S. Tomé", percebi melhor o drama criado pela dispersão humana no nosso passado colonial.

Ontem, ao ver anunciado num jornal que as autoridades de S. Tomé vão finalmente conceder a nacionalidade aos descendentes dos caboverdeanos imigrados no país, lembrei-me dessa minha conversa com a empregada da nossa embaixada.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sexta-feira, março 13, 2015

Não há só notícias más!


 
Fico satisfeito pelo facto da administração da RTP ter escolhido para novo diretor de informação o jornalista Paulo Dentinho, um grande profissional da nossa comunicação social, a quem, ainda há dias, aqui fiz uma referência.
 
Também me congratulo que, num gesto que é uma bela "resposta" à rádio privada que o dispensou, a informação de todas as rádios públicas tenha passado a ser dirigida por João Paulo Baltazar, alguém que não conheço pessoalmente mas que me habituei a respeitar nas ondas da TSF. Espero agora a sua melhor atenção para essa "deserdada" dos últimos anos que tem sido a RDP Internacional.
 
Afinal, não há só notícias más!

BES

Interrogo-me seriamente sobre a utilidade da comissão parlamentar sobre o BES. Percebo que, para as senhoras e senhores deputados, que, com cara grave, afivelam as suas indignações e se esforçam por mostrar ao país (em ano eleitoral, rende) a utilidade da função que cumprem, isso possa ser tarefa útil. Mas para além do estímulo ao "voyeurisme" sobre os ex-poderosos, ali justamente humilhados, em face da evidência das suas traficâncias, e do observar do desplante e contradições sem consequências de alguns dos depoimentos, o que é que o país ganha com este exercício? Explorar as divergências entre quem, sem exceção, empochou muitos milhões que saltaram dos bolsos dos pobres investidores que agora "assaltam", com todo o direito, as agências do Novo Banco, justifica todo este alarido? Ficamos a conhecer melhor o que por aí anda no mundo das negociatas financeiras? Talvez. E depois? No que me toca, já deixei de acompanhar o exercício. Fico impacientemente à espera da Justiça, a mesma que "engaiola" com toda a facilidade um carteirista do elétrico 28 mas, aparentemente, não tem "espaço" de cela para os "megacarteiristas" de alguma banca. A mesma Justiça que, estranhamente, sobre este caso, não faz o menor "leak" para o "Correio da Manhã". Por que será? Alguém já se perguntou?

Memorabilia diplomatica (IV) - O voto dos outros


Um dia de 1986, com Portugal recém-ingressado nas Comunidades Europeias, fui ao gabinete do secretário de Estado da Cooperação receber instruções para uma reunião no Luxemburgo. O ambiente na delegação portuguesa que ia a essa reunião era algo tenso, por virtude de uma disputa de competências, cuja substância não vem aqui para o caso. Por essa razão, eu ia "de pé atrás" e mais fiquei quando me foi dito, para além de uma orientação sobre o sentido de intervenção em dois ou três pontos da agenda, que, nos restantes, deveríamos "seguir os ingleses". Devo dizer que fiquei chocado, pelo que isso traduzia de abdicação de pensarmos pela nossa cabeça e de entregarmos a defesa dos nossos interesses, que os havia nesses pontos, aos humores de voto de outrem.
 
Um mimetismo teimoso com as posições de Londres foi, durante muito tempo, uma orientação que a linha política dominante nas Necessidades prosseguiu, no início da nossa experiência comunitária. Portugal parecia ter assumido que alguma identidade de pontos de vista com o Reino Unido, que tradicionalmente se verificava em matéria de segurança e defesa no quadro da NATO, era extrapolável para as áreas da vida comunitária. O tempo veio a provar que essa orientação estava totalmente errada e que, cada vez mais, a postura europeia de Portugal devia afastar-se da linha britânica, a qual, além de ter uma agenda de interesses muito própria e diversa da nossa, contribuía frequentemente para o nosso isolamento.

A imagem de uma diplomacia portuguesa "tutelada" pelos britânicos continuou, contudo, por algum tempo, nas instituições comunitárias. Cerca de uma década depois da cena que abriu este texto, um jornalista europeu, em Bruxelas, depois de eu ter anunciado a apresentação de uma qualquer proposta, perguntou-me, durante uma conferência de imprensa, se "tinha coordenado isso com os britânicos". Perante a minha questão "porquê com os britânicos?", o jornalista inquiriu: "então Portugal não coordena sempre previamente as suas posições com Londres?". E ficou surpreendido quando eu lhe garanti que não.

Nesta questão de sentido de voto, é muito divertida a história que Margarida Ponte Ferreira contou ontem na minha página de Facebook. Numa determinada negociação técnica, o delegado grego disse ter tido instruções da sua capital para acompanhar o sentido de voto de Portugal. A delegada portuguesa confessou que, provavelmente pelo facto do assunto não ser relevante para nós, Lisboa tinha indicado que deveríamos apoiar a posição que a França viesse a tomar. A resposta do delegado francês foi lapidar: ele tinha instruções para votar em sentido contrário aos britânicos...    

quinta-feira, março 12, 2015

Do blogue para o facebook

Tenho aprendido muito com as redes sociais. E uma das conclusões a que cheguei é a de que o humor e a ironia, tal como acontece a alguns vinhos, "viajam mal" nessas redes. Venho a constatar ser quase impossível tratar de forma leve e bem disposta alguns temas sem que isso desencadeie, de imediato, um cerrar de sobrolho por parte de alguns moralistas de sofá. Alguns leitores, embora poucos, em lugar de olharem despreocupados para as historietas simples que por aqui se relatam, partem de imediato para um policiamento dos episódios, insistindo em retirar deles ilações supostamente éticas, muitas vezes descontextualizando os factos, no lugar e no tempo.
 
Todas as três historietas diplomáticas que até agora aqui transcrevi foram imediatamente pasto para comentários de "rightouseness", de apontar acusador de vícios de comportamento, subjacentes aos factos relatados, as mais das vezes com uma crítica acerba ao comportamento dos agentes do serviço público neles envolvidos. Imagino que isso possa vir a agravar-se com outros episódios que aí vêm. Alguns desses comentários roçaram mesmo o insultuoso, o que também levo à conta dos tempos de confrontação que por aí já se vivem. E, por isso, não foram acolhidos, porque o masoquismo não é uma qualidade de que me orgulhe. 
 
Nestes dias em que parece estar na moda não sermos "perfeitos", quero dizer que assumo para mim esse estatuto, sem a menor dificuldade. Imagino que alguns leitores sejam irrepreensíveis modelos das virtudes, com que todos os outros não fomos abençoados. Só lhe posso desejar que lhes faça bom proveito.

Memorabilia diplomatica (III) - A guerra das alcachofras


Num passeio de manhã, num mercado de legumes, deparei com uma bancada cheia de belas alcachofras. Isso recordou-me uma historieta diplomática do final dos anos 80.

Estávamos nos tempos da renegociação da Convenção de Lomé (agora já vamos na Convenção de Cotonou), o acordo que, nomeadamente, permite aos países africanos (e também a outros, das Caraíbas e do Pacífico) exportar para a Europa, em condições privilegiadas, algumas das suas produções agrícolas, parte das quais essencial para sustentarem as suas débeis economias. Nesses cíclicos momentos negociais, os produtores europeus tentavam sempre convencer os seus governos a evitar que a Europa fizesse novas concessões. A Comissão Europeia, responsável pela negociação, propunha uma lista de possíveis novas aberturas e os vários Estados europeus retiravam dela, apresentando as suas razões, produtos que entendessem concorrentes com os seus.

O nosso Ministério da Agricultura enviara-nos uma lista de “produtos sensíveis” para os agricultores portugueses. Conseguíramos sustentar a maior parte deles, mas, nas versões sucessivas dessa “lista negativa” (como é vulgarmente chamada) europeia, a Comissão teimava em não incluir - imaginem! - as nossas alcachofras. Porque não compete aos diplomatas, que se encarregam de negociar, serem eles a “deixar cair” as objecções colocadas pelos departamentos especializados, era nosso dever tentar encontrar, e até inventar, todos os argumentos possíveis para sustentar o bom fundamento das nossas posições de defesa comercial.

Num determinado passo das discussões técnicas, uma nova proposta da Comissão de “lista negativa” europeia chegou à mesa das negociações. Mas, uma vez mais, nada de alcachofras... Pedimos a palavra e regressámos ao nosso argumentário, tão convincente quanto possível, sublinhando que as margens de comercialização dos nossos produtores de alcachofras eram já muito reduzidas, que uma invasão do nosso mercado por alcachofras de origem africana originaria um desastre económico no sector, etc. Não sei se fomos ao ponto de referir a possibilidade de crescimento de desemprego sectorial, bem como outros efeitos colaterais de natureza social, mas devemos ter ficado perto disso.

Recordo-me que a enfática posição portuguesa foi apoiada pela Grécia e pela Itália, embora, em ambos os casos, com uma convicção que se me afigurou um tanto débil, o que tomei à conta do facto de poderem estar a reservar-se para um defesa prioritária de outros produtos, em que teriam maior interesse direto.

Finalizada que foi a apresentação do nosso caso, feita com todo o garbo possível, a Comissão Europeia tomou a palavra, através de Manuel Marín, o comissário do pelouro. Como quase todos os espanhóis, Marin falava (e julgo que ainda fala) um francês com uma pronúncia macarrónica, cheia de “xes”, o que dava às suas intervenções uma sonoridade algo caricata, um castelhano em tom rural beirão. Mas Marin – que, posteriormente, já foi ministro e presidente das Cortes espanholas – é um homem fino e muito inteligente. Além de ser um bom amigo de Portugal, diga-se de passagem. 

Dirigindo-se à presidência da sessão, disse ter tomado muito boa nota dos sólidos motivos que a delegação portuguesa, apoiada por outras, acabara de apresentar, "com tanto brilho", com vista a recusar, liminarmente, a possibilidade de autorizar a entrada de alcachofras africanas no mercado português.

Chegado que foi este ponto do discurso do comissário, a delegação portuguesa ficou mais descansada. Imagino que nos teremos recostado nas nossas cadeiras, prenhes de satisfação pelo dever cumprido. E preparávamo-nos para ouvir da Comissão Europeia a confirmação final de que, por consequência, ela iria, finalmente, colocar as nossas prezadas alcachofras na “lista negativa”.

Foi então que, continuando a dirigir-se ao presidente da sessão, como era de regra, mas olhando de viés para a delegação portuguesa, com um sorriso que adivinhávamos malandro, Marin acrescentou: “Mais, M. le Président, je dois vous avouer un secret: il n’y a pas des artichauts en Afrique” (“Mas, senhor Presidente, devo confessar-lhe um segredo: não há alcachofras em África”). Afinal - surpresa das surpresas! -, a África não produzia as alcachofras que nós, tão denodadamente, tentávamos impedir de concorrerem com as nossas!

A sala entrou em gargalhadas – e nós em sorrisos, definitivamente, bem amarelos. Pela teimosia do nosso Ministério da Agricultura, numa defesa pateta das nossas alcachofras, tínhamos perdido uma boa ocasião para não desperdiçar capital negocial numa discussão europeia.

Mas, também eu, devo confessar-lhes um segredo: hoje, no mercado, não me contive e deitei um olho às caixas que acondicionavam as alcachofras. Não fosse dar-se o caso de serem originárias de algum país africano. Não eram...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, março 11, 2015

O meu 11 de março

                                                Foto de António Pedro Ferreira

Faz hoje precisamente 40 anos.

A tensão fora imensa, durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar (hoje Instituto de Defesa Nacional), na calçada das Necessidades.

Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, sob a mediação de Luís Costa Correia, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como.

A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E surgiram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e o próprio Dinis de Almeida, figura do dia.

De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo de então simplificava os revoltosos do dia.

Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.

Aí pelas 10 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.

Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, como que amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.

Depois, foi aquele povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.

Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligada ao PCP.

Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra para a realização de uma Assembleia extraordinária, muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.

De seguida, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante cerca de um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.

Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.

Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória. Às oito da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria no Saldanha.

O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a discutir, numa acalorada assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício continuava a ser mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.

Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.

Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil. Há dias encontrei-o na rua. E dei-lhe um abraço, claro.

Caramba, já passaram 40 anos.

(Reedição atualizada de um post antigo)

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...