quinta-feira, junho 28, 2012

Álvaro Vasconcelos

Até há poucos dias, Álvaro de Vasconcelos foi, em Paris, diretor do Institute for Security Studies, uma estrutura promotora de estudos e reflexões que, a meu ver, a União Europeia deveria e poderia ter utilizado bem mais e melhor. Alguns dos trabalhos produzidos por este instituto têm uma qualidade e uma profundidade que mereceriam um melhor tratamento e, em especial, que fossem tidos em conta no desenho de algumas das políticas da União na sua dimensão externa. O trabalho desenvolvido pelo Álvaro de Vasconcelos e pela sua equipa, de um modo discreto mas bem eficaz, deve merecer o apreço de todos quantos se preocupam com as relações externas europeias, nas quais assenta muito do seu futuro como potência à escala global. E, registe-se, o seu papel à frente do ISS prestigiou muito Portugal.

Conheço o Álvaro Vasconcelos há muitos anos, desde que ele criou, em Portugal, o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), um importante "think tank" de reflexão estratégica. Com ele, e com as pessoas de grande qualidade que soube mobilizar em torno daquele instituto português, participei em muitos debates, em Portugal e no estrangeiro, em especial centrados sobre o futuro desejável para as instituições europeias e as suas dimensões externas. Ironicamente, lembro-me de ter assumido, nesses anos 90, posições bem mais "recuadas" do que as que o Álvaro, e muitos dos seus amigos, então defendíam, em especial quanto à questão do "federalismo", tema em torno do qual, curiosamente, ambos evoluimos, embora em sentidos diferentes.

Com o Álvaro, preparei o único livro editado em inglês que faz um completa cobertura sobre a postura europeia de Portugal - "Portugal, a European story" -, onde se conta muita dessa grande aventura da nossa contemporaneidade. E juntos estivemos, anos depois, num seminário sobre Segurança, no sul do Egito, num tempo em que se não sonhava ainda com as "primaveras árabes", tema de um livro que o Álvaro publicou recentemente e que muito recomendo - "Listening to unfamiliar voices: the Arab democratic wave".

Bolas!

Há países com azar? Há países com sorte? Nós temos azar e os espanhóis têm sorte? Isso só é assim na aparência. Tem azar quem não tem sorte e ter sorte é uma coisa que dá muito trabalho. As bolas não entraram, quando deviam ter entrado? Pois é, a isso chama-se futebol. Depende e não depende de nós.

Pronto, já passou! Vamos agora ao jogo do défice e da dívida. Esse é o "euro" que não quero perder.

quarta-feira, junho 27, 2012

Títulos

Faço parte, desde há semanas, de uma comissão, empossada pelo primeiro-ministro português, que tem como mandato proceder à revisão do Conceito estratégico de Defesa nacional. Preside a este grupo o professor Luís Fontoura, uma figura que passou pela política e pelo mundo empresarial, tendo sido das pessoas que, de forma mais determinada, deu um "abanão" positivo à nossa política de promoção das exportações. Homem interessado, desde há muito, pelas questões internacionais, teve nessa área um singular percurso académico, apoiado em várias reflexões publicadas. Por algum tempo, foi secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Na abertura da primeira reunião da comissão, Luís Fontoura referiu que o nosso labor seria necessariamente discreto, que não trabalhávamos para obter títulos nos jornais. Ao ouvir a palavra "títulos", na sua boca, fez-se-me luz e lembrei-me do primeiro dia em que o conheci.

Na segunda quinzena de 1973, durante o meu serviço militar, integrei uma visita de estudo ao jornal "A Capital", que se situava então nuns andares da avenida Joaquim António de Aguiar. Desse grupo de garbosos militares faziam parte António Franco, Jaime Nogueira Pinto, Manuel Cavaleiro Brandão e outros seis "soldados-cadetes" que, dentre os cerca de 500 que, em março desse ano, tinham feito a sua incorporação na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, haviam sido selecionados para serem formados como futuros oficiais de Ação Psicológica.

A Ação Psicológica era uma das mais interessantes especialidades militares, com disciplinas de Sociologia, Psicologia, Técnicas de propaganda e contra-propaganda, etc. Visitar um jornal estava, assim, no âmbito normal desse curso. E, como jornal, "A Capital" era, à época, um caso singular. Recriado em 1967, num registo de compita com o "Diário de Lisboa", perdera a matriz original e fizera, entretanto, um percurso diferente, distinguindo-se por ser, em Portugal, o primeiro jornal a adotar um estilo gráfico mais agressivo, próximo do de alguns jornais tablóides britânicos. Ao lado dos outros diários lisboetas da tarde, e do "Diário do Norte", do Porto, "A Capital" destacava-se claramente nesse domínio.

Recordo que fomos recebidos por Luis Fontoura, que presidia ao conselho de administração do jornal, e que tinha consigo, como colaborador direto, um grande amigo meu, já desaparecido, o Álvaro Magalhães dos Santos. Apresentou-nos as grandes linhas em que se fundamentava a política do jornal e, à volta disso, lançou-se alguma discussão. A certo ponto, alguém perguntou a Luís Fontoura o que é que ele considerava ser o fator distintivo do jornal, face aos outros similares - o "Diário de Lisboa", o "Diário Popular" e o "República". Sem enveredar pela questão ideológica, talvez subjacente à pergunta, Luís Fontoura retorquiu: "Qual é o único jornal português cujos títulos alguém consegue ler do outro lado da rua? Só "A Capital"."

Era verdade. "A Capital" iniciara o hábito dos títulos fortes, com escassas palavras, que "agarravam" os leitores. O jornal viria a durar mais do que o "República", do que o "Popular " e do que o "Lisboa", mas, ainda que sendo o último sobrevivente dos jornais da tarde, não conseguiu resistir à concorrência noticiosa das rádios e das televisões. Poucos meses depois daquela nossa visita, como a imagem mostra, faria, aliás, um título cuja hábil, prudente e distanciada construção é, em si mesmo, um bom tema de "ação psicológica"...     

Júlio Montalvão Machado

Júlio Montalvão Machado, de cuja morte me avisaram há pouco, era um homem amável e sereno, sempre com um sorriso de pessoa com quem a vida estava bem. O seu compromisso com a liberdade tornou-o um perseguido durante o Estado Novo, período em que foi impedido de exercer, como médico, quaisquer funções públicas. Conhecemo-nos em 1969, nas lutas oposicionistas contra o Estado Novo, na campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional. Recordo-me bem de me ter dito, quando lhe fui apresentado: "Tenho grande gosto em conhecê-lo. O seu avô foi um dos maiores amigos do meu pai". Curiosamente, nessa campanha, acabámos por ter algumas divergências doutrinárias, por diferentes perspetivas sobre a questão colonial. Onde isso tudo vai... 

Depois do 25 de abril, cruzámo-nos muitas vezes e sempre pude apreciar nele o homem de diálogo e o espírito culto que o transformava numa das grandes e respeitadas figuras de Chaves e em todo o distrito de Vila Real - cidade onde, aliás, tal como eu, nascera.

Há algum tempo, os amigos comuns António Ramos e Alexandre Chaves organizaram com ele um agradável jantar no Forte de S. Francisco, onde trocámos histórias, nesse jeito tão transmontano de perder as horas da noite, ganhando-as na conversa amena. Foi a última vez que conversámos. E é com muita pena que agora o vejo desaparecer. 

terça-feira, junho 26, 2012

De Leninegrado a São Petersburgo

Há mais de 30 anos, ao tempo em que vivia em Oslo, tive a curiosidade de visitar a União Soviética. Achei que os preços das viagens eram surpreendentemente convidativos. Na véspera da minha partida, falei do assunto a um colega norueguês e logo fiquei ciente daquilo em que me metera: a agência de viagens que eu escolhera estava ligada ao Partido Comunista norueguês e, se calhar, fazia "dumping" ideológico. De facto, no grupo em que, durante duas semanas, estive incluído, muitos foram os que, logo que chegados a Leninegrado, colocaram na lapela uma imagem de Lénine...

A visita acabou por ser muito interessante, feita também por Moscovo e por Ialta, comigo sempre a tentar, para desespero da guia norueguesa, fugir ao espartilho dos programas e reagir à irracionalidade do condicionamento de movimentos. Guardo para sempre algumas recordações impressivas desse país, com uma vida que, à época, pressenti misteriosa, cinzenta e triste.

Hoje, por razões profissionais, estou em São Petersburgo - mas já não em Leninegrado. Para além do nome, muita coisa mudou por aqui, como se sabe. Mas, confesso, tentarei não deixar de revisitar, em homenagem àquilo que é a memória sentimental de uma certa geração, a estação da Finlândia, o Smolny, o Aurora e, claro, o palácio de Inverno, símbolos fortes de uma Revolução de outubro, que em dez dias abalou o mundo, e que, por sinal, foi em novembro.

segunda-feira, junho 25, 2012

Memórias de além muro

Haviam já passado muitos anos desde que aquele diplomata português saíra da capital de um certo país do leste europeu, onde permanecera algum tempo, nos anos 80 do século passado. A vida levara-o, entretanto, por mais de uma década consecutiva, por outras partes do mundo.

Uma sapateira, adquirida numa casa de velharias nessa cidade, seguira, entretanto, para Lisboa, com destino a um armazém onde se amontoavam outras tralhas, compradas por aqui e por ali, coisas que os diplomatas vão acumulando pelos apeadeiros da sua carreira e de que, no final, já mal se lembram.

No seu regresso definitivo a Lisboa, já a caminho da reforma, o diplomata reencontrou a velha sapateira. Veio-lhe então à memória a negociação tida com o vendedor, o inevitável regateio do preço, a competição virtual com um colega egípcio que, de acordo com o homem, também seria candidato à aquisição. Olhando agora para a sapateira, perguntava-se por que diabo teimara em comprar aquele mono, que não lhe servia para nada. A certa altura, ao revolvê-lo, do fundo de uma prateleira descolou-se uma pequena peça retangular, escura e achatada, que lá devia estar, desde há muitos anos, desde a compra da sapateira. Observou, intrigado, o minúsculo objeto, do qual que destacava um fio metálico. O filho, dado às coisas técnicas, não teve dúvidas: era um microfone.

Apesar de todas as escutas, o muro caiu. 

Portugal no mundo

Um dos aspetos curiosos da vida como diplomata é observar o modo como Portugal é visto pelos outros, que imagem de nós está criada pelo mundo, o que ficou da nossa História em países cujo passado cruzámos. 

Há dias, ao efetuar uma diligência junto de um colega estrangeiro, e para além da eventual racionalidade daquilo que era a nossa pretensão, fui confrontado com a seguinte e espontânea reação: "Vocês podem sempre contar conosco! Eu nasci ao lado de uma fortaleza construída pelos portugueses. Desde criança que me habituei a admirar a vossa aventura pelo mundo".

Esta é uma riqueza não se mede em cifras do PIB e que, seguramente, vai durar muito para além da nossa dívida.

domingo, junho 24, 2012

O Douro e a UNESCO

Ser representante de Portugal junto da UNESCO, em acumulação com as funções que desempenho em França, trouxe-me a responsabilidade acrescida de ter de cuidar, na linha da frente, de um conjunto de questões que ligam Portugal a diversas áreas de competência da organização. Devo dizer que, nestes meses, embora tenha tido de me "desmultiplicar" para poder atender a todo esse conjunto de tarefas, aprendi muito sobre mais esta dimensão multilateral da nossa política externa. E, devo dizer, estou a gostar da experiência.

Como é sabido, esta semana, em São Petersburgo, o Comité do Património da UNESCO debaterá uma resolução, preparada pelas instâncias próprias da organização, que apela à suspensão imediata das obras de construção de uma barragem perto da foz do rio Tua, por considerar que essa obra coloca em risco o equilíbrio global do Alto Douro Vinhateiro, como conjunto considerado património mundial.

Alguns países, organizações não-governamentais e diversas outras vozes, nomeadamente na imprensa, estão de acordo com os termos dessa resolução. O Estado português considera que, sendo embora essencial garantir a preservação do estatuto internacional atribuído ao Alto Douro Vinhateiro, tal não é incompatível com a edificação de uma barragem no rio Tua. E que, por essa razão, não se justifica, sem uma análise atenta a um conjunto de medidas que entretanto foram tomadas e outras que estão em análise, que tais obras sejam suspensas de imediato. 

Não deixa de ser uma curiosa coincidência que o debate desta questão esteja a ser titulado, junto da UNESCO e em nome de Portugal, por alguém que nasceu a escassas dezenas de quilómetros do Douro e que hoje preside ao Conselho geral da Universidade da região. E que, porventura, gosta muito mais do Douro do que muitos dentre quantos, com outras legitimidades, se têm desdobrado em declarações inflamadas sobre o tema.

sábado, junho 23, 2012

A política interna e a Europa

Acaba de ser anunciado que, entre os dois maiores partidos políticos portugueses, não foi possível chegar a um consenso sobre temáticas europeias, com vista às grandes decisões que pode vir a ser necessário tomar, em nome do país, nesse plano, nos próximos dias. Não conheço o assunto em pormenor, mas posso imaginar a imensa complexidade desse esforço comum.

No passado, estive ligado a exercícios similares, alguns com êxito, outros com desfecho menos feliz. Convém dizer que, nas últimas décadas, as relações entre as duas maiores formações políticas portuguesas - ou melhor, entre os governos e o principal partido da oposição - raramente dispensaram a existência de canais discretos de comunicação, como é próprio dos regimes democráticos com maturidade. Às vezes, as tensões políticas internas tornaram esse diálogo mais difícil e menos constante, mas, que eu saiba, nunca foram quebrados, por completo, tais contactos. E isso tem todo o sentido: há mais país, nomeadamente na ordem internacional, para além da inevitável guerrilha política interna.

Em tempos em que tive algumas responsabilidades governativas nessa área, e por instruções expressas do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros de então, esses canais de comunicação estiveram sempre abertos. Mas a vida política faz-se de altos-e-baixos, como a historieta que vou contar demonstra. 

Um dia, a propósito de uma negociação europeia de grande importância, o primeiro-ministro e o líder da oposição reuniram, acolitados por mim e pela minha "sombra" nesse partido da oposição. Tratava-se de tentar apresentar, a público, uma posição comum, a montante de um Conselho europeu. Isso reforçaria o governo no plano dessa negociação e daria ao principal partido da oposição uma imagem de responsabilidade de Estado, naquele que era então um grande dossiê externo. 

A reunião em S. Bento correu bem. Tínhamo-la preparado antes com algum cuidado e, depois de algum tempo de debate, assentou-se num conjunto de pontos comuns. As questões na agenda europeia eram então relativamente consensuais e os interesses portugueses a defender eram claros. Fiquei encarregado de escrever um projeto do texto que se pretendia divulgar, que teria cerca de duas páginas. Pelo que conhecia das preocupações da oposição, não tinha a menor dúvida de que seria capaz de elaborar um documento suscetível de ser assinado pelos dois lados. Em diplomacia, as palavras, se bem usadas, podem servir, simultaneamente, para destacar as convergências e para esconder, de forma elegante, as inevitáveis divergências. 

Escrevi o texto num avião em que fui, nessa tarde, para Bruxelas, onde tinha uma reunião na manhã do dia seguinte. Chegado ao hotel, enviei-o por fax à pessoa que era minha contraparte na oposição. Cerca da meia-noite, ela confirmou-me, como eu esperava, que, por si, não tinha objeções. Restava passá-lo ao seu "chefe".  No dia seguinte, a meio da manhã, ainda antes do meu regresso a Lisboa, recebi a indicação de que o texto podia merecer o acordo da oposição, "em termos gerais". Alguma experiência alertou-me logo para esta reticência.

Entretanto, pela parte do governo, as coisas avançaram rapidamente. Dois ministros leram o texto, por indicação do primeiro-ministro, e mostraram-se positivos face ao respetivo conteúdo. O chefe do executivo considerava, no entanto, essencial obter a concordância prévia do ministro dos Negócios Estrangeiros, que andava algures pelo mundo. Horas depois, veio também a luz verde deste. Marcou-se um encontro com a oposição, no formato do dia anterior, em S. Bento, para cerca da meia-noite.

Na política interna, durante esse mesmo dia, as coisas haviam estado muito agitadas. Por virtude de um facto político de grande expressão mediática, um membro do governo viu-se envolvido numa imensa polémica, com o pedido da generalidade da oposição para a sua demissão. A tarde, na Assembleia da República, fora um "inferno". As declarações do líder da oposição contra o governo subiam de tom. Os telejornais da noite, que antecederam a reunião em S. Bento, foram palco de tomadas de posição muito fortes, de ambos os lados. A crispação política estava no auge.

Quando cheguei a S. Bento, não tive tempo para falar com o primeiro-ministro, antes da reunião com a oposição. À entrada do edifício, a expressão facial da pessoa que era minha contraparte do outro lado do espelho político não prenunciava nada de bom. Vi que alguma coisa tinha mudado, relativamente ao ambiente do dia anterior.

O líder da oposição também entrou tenso. Sentámo-nos. Começou por dizer que tinha lido o texto, que "genericamente" lhe parecia bem, mas que, depois de ponderar, tinha várias alterações a propor. Mesmo à distância, pude ver que havia, no papel que tinha na mão, uma imensidão de anotações manuscritas. Ia ser bonito...

Na cara do primeiro-ministro, notei uma grande serenidade. E logo perguntou: "Se não quiser, não fazemos texto nenhum. Desta conversa pode resultar um compromisso sobre certos pontos, que não precisa de ser anunciado. Basta-me a sua palavra". Pareceu-me que o líder da oposição deu um suspiro de alívio. E, desde logo, apressou-se a concordar. "Então, esquecemos o documento e passemos adiante", disse o primeiro ministro. E o resto da reunião foi rápido, relembrando os pontos comuns que tinham sido abordados no dia anterior. Para quem, como eu, tinha perdido horas a tratar do texto e da sua afinação, era uma desilusão, mas, como costumava dizer esse primeiro-ministro, "é a vida!". Espantou-me, contudo, a rápida cedência do chefe do governo, sem sequer se ter dado ao trabalho de ouvir as divergências que a oposição teria para sublinhar e sobre as quais, até hoje, sempre fiquei curioso.

Quando as duas figuras da oposição saíram da sala, não me contive e perguntei ao primeiro-ministro a razão por que tinha dispensado o documento com tanta prestreza. A sua resposta foi clara: "Você acha que, depois do governo ter sido insultado durante todo o dia, em tudo quanto foi rádio e televisão, o meu partido me perdoaria que, ao fim da noite, eu anunciasse um entendimento, fosse sobre o que fosse, com o líder da oposição?". Fiquei a pensar que, de forma simétrica, deveria ter sido esse também o pensamento deste último. A vida política é assim mesmo.  

sexta-feira, junho 22, 2012

Camarate

No dia 4 de dezembro de 1980, eu jantava na "Farmácia Campos", em Matosinhos, quando alguém entrou e encostando-se ao balcão, disse alto, ouvido por toda a sala: "Morreu o Sá Carneiro. O avião em que vinha para o Porto caiu". Alguns dos presentes levantaram-se e pediram para se ligar a rádio. Era verdade.

Estávamos a escassas horas das eleições presidenciais portuguesas, em que Soares Carneiro defrontaria Ramalho Eanes, na sua tentativa de reeleição. O país estava fortemente polarizado entre as duas candidaturas. Nessa noite, na televisão, a tese do acidente prevaleceu, na voz de praticamente todos quantos se pronunciaram. Num dos dias seguintes, a (única) televisão fez do funeral de Francisco de Sá Carneiro um lamentável e vergonhoso espetáculo. Portugal nunca poderá orgulhar-se desses tristes dias de desbragada manipulação política.

Depois, começaram as dúvidas. Acidente ou atentado? Por mim, pouco atreito às teses da conspiração, e muito convicto de que a teoria do atentado era uma mera arma política de arremesso, acreditei piamente na hipótese do acidente. E o facto, entretanto provado à saciedade, de que Sá Carneiro só se havia decidido, no último momento, pela viagem no avião sinistrado mais me reforçou a convicção de que a ideia do atentado mais não era do que um mero expediente para vender uma versão politicamente "biaisée", como por aqui se diz. E fui desqualificando e ridicularizando, durante muitos anos, a tese do atentado.

Arquivei assim "Camarate", nome pelo qual o assunto ficou para a história, na prateleira das questões políticas que já tinha por resolvidas. Um dia, porém, um episódico antigo colega de governo, o advogado Ricardo Sá Fernandes, publicou um "pavé" sobre o assunto. O qual, segundo ouvira dizer, privilegiava a tese do atentado. Fiquei curioso. Tinha optado, quase em definitivo, por deixar de ler sobre Camarate. Os escritos que conhecia, quase sempre cheios de ódio e de enviesamento político, incitavam-me a isso. Mas, já nem sei bem porquê, decidi-me a ler o livro de Sá Fernandes, Avancei por ele dentro muito cético, bem de "pé-atrás". Era um livro imenso. Em duas noites, li-o. E, confesso, as dúvidas colocaram-se-me, em força. Será que, no fim de contas, teria sido atentado? Seria Adelino Amaro da Costa o alvo?

O parlamento português foi entretanto constituindo sucessivas "comissões parlamentares de inquérito", umas vezes dominadas pela direita, outras vezes pela esquerda. Sem surpresas, nesse balançar opinativo, por entre testemunhos de diferente credibilidade, muito para alimento dos tablóides, tais "comissões" iam concluindo, umas vezes pela hipótese do atentado, outras pela do acidente. Com o tempo, setores da esquerda juntaram-se à primeira das hipóteses, credibilizando-a um pouco mais.

Noutro patamar, a justiça foi também caminhando sobre o assunto, ora seduzida pelo mediatismo e pelo espetáculo, ora presa ao formalismo. Em todo o caso, as conclusões a que chegou, sempre prenhes de incidentes e das inevitáveis prescrições, foram pouco mais do que nenhumas. Dava a sensação de ficar entretida entre as fantasias de José Esteves e os mistérios de Lee Rodrigues, registando, pelo meio, algumas gratuitas insinuações, sem fundamento sólido comprovado, sobre figuras da nossa vida pública. E, claro, os processos não chegaram a nenhuma conclusão, ficando a aguardar "melhor prova". 32 anos depois?

Mas a que vem isto, aqui e agora? É muito simples: estará em curso, ao que leio, a constituição da 10ª (!!!) "comissão parlamentar de inquérito" sobre o "desastre" de Camarate ("desastre" ou "tragédia" é o refúgio lexical de quantos não têm certezas sobre o assunto).

Como dizem os brasileiros: dá para acreditar?

quinta-feira, junho 21, 2012

Portugal em Paris

Acaso seria "bonito" ver o embaixador de Portugal, Campos Elísios abaixo, buzinando em uníssono com dezenas de automóveis, cheios de portugueses com bandeiras e cachecóis, a comemorar a vitória de Portugal sobre a República Checa?

De facto, era capaz de não ser. Mas foi...

Cultura geral

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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.

O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.

Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).

A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!

Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:

- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.

- A França, talvez.

- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?

(Pausa longa)

- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!

- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?

- Talvez da Inglaterra... 

(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).

- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?

- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!

Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.

quarta-feira, junho 20, 2012

Grécia

Na história política grega, uma aliança governamental entre o partido conservador Nova Democracia e os socialistas no PASOK é um caso inédito. As raízes profundas de ambas as formações partidárias apontam para direções bem opostas, fruto de linhagens familiares próprias, de clientelas divididas e de outros fatores de "balcanização" em que a sociedade grega é useira. Só uma ameaça exterior (como será a da imediata bancarrota ou seria a da Turquia) terá levado a este quase milagre político, que se anuncia muito conjuntural.

Em Portugal, a experiência do Bloco Central (1983/1985), uma coligação governamental entre os dois maiores partidos que a democracia havia feito emergir uma década antes, acabou por se revelar uma solução positiva para garantir uma expressão de vontade política maioritária, capaz de enfrentar uma situação de grave emergência nacional.

A prazo, sabe-se que os modelos de "unidade nacional" têm os seus limites, em particular temporais, porque juntam "água e azeite", porque são contra-natura face à normal canalização individualizada de diferente projetos políticos e, muito em especial, porque têm como inevitável consequência fazer crescer as oposições que deles ficam fora, as quais sempre aproveitam para federar o descontentamento que a implementação de políticas impopulares sempre gera.

segunda-feira, junho 18, 2012

Ironias

Há ironias que só o destino sabe desenhar. Ver a Grécia a defrontar a Alemanha no Euro (com todos os trocadilhos a que isso vai levar) é uma dessas deliciosas ocasiões.

No que nos toca, aconteceu o que já estava nas cartas: fazendo o trabalho a que nos tínhamos comprometido, poderíamos acabar por ser ajudados pela Alemanha...

domingo, junho 17, 2012

As Europas

Hoje, há eleições legislativas em França e na Grécia. Se, nas primeiras, poucas incertezas há quando ao respetivo desfecho e às suas consequências em termos de orientação política do país, já ninguém tem dúvidas que, do que emergir das segundas, resultarão consequências muito importantes, e imprevisíveis, não apenas para a Grécia mas igualmente para todo o resto da Europa comunitária.

Uma das grandes fragilidades do projeto europeu continua a ser a sua dependência do curso da História em cada um dos países que o integram, dos diferentes calendários eleitorais, da força muito diversa dos governos que resultam desses mesmos processos internos, para além das naturais divergências entre os programas políticos sufragados pelos votantes nacionais, mobilizados por agendas de preocupações frequentemente muito afastadas entre si. Dir-se-á que não há muito que se possa fazer para obviar a isto: cada país tem a sua tradição constitucional própria, nalguns casos resultante de processos políticos bem anteriores à criação das próprias instituições europeias. Estas, aliás, quando foram instituídas, estavam muito longe de ter uma ambição, em termos de projeto político e económico, como aquela que marca a União Europeia de hoje. E, salvo em pormenores, as ordens constitucionais nacionais pouco se alteraram, por virtude da pertença ao projeto continental.

Desde há muito, todos temos vindo a dizer que a Europa deve aprender a viver com a sua diversidade, que é, indiscutivelmente, a sua grande riqueza. Mas se é verdade que os países não estão preparados para ceder no essencial das suas tradições constitucionais - e sendo isso verdade para um, sê-lo-á para todos -, deixando-se marcar por uma espécie de "template" europeu, criado em torno dos seus tratados, também não deixa de ser evidente que, cada vez mais, se torna difícil tomar decisões importantes no seio dessa mesma diversidade.

Que se há-de fazer? Ninguém sabe e, por isso, vamos andando, um pouco numa "navegação à vista", que dá aos cidadãos uma imagem de uma Europa à deriva, zigzagueando num insolúvel labirinto, imagem que naturalmente também os não mobiliza para entregarem ao projeto europeu o essencial do seu destino.

Isto não está fácil! 

sábado, junho 16, 2012

A nova emigração

Foi para mim muito interessante, nesta manhã de sábado, participar no debate organizado no Consulado-Geral, pela Santa Casa da Misericórdia de Paris, sobre os novos fluxos migratórios portugueses para França. Entre outros, ouvimos testemunhos de cidadãos que procuraram recentemente este país como destino de vida, de empresários que têm acolhidos alguns compatriotas, de dirigentes associativos e sindicais com experiência de casos concretos, bem como de responsáveis de apoio social na estrutura consular.

De todas essas intervenções começa a resultar uma imagem mais clara dessa realidade complexa, marcada por uma nova tipologia migratória, feita, em geral de pessoas mais qualificadas academicamente e que, talvez por essa razão, denotam uma maior dificuldade em se adaptarem às ofertas de emprego disponíveis, situadas muitas vezes abaixo das suas expetativas profissionais.

Também se falou da situação social específica de Portugal, da crise europeia, dos frequentes atos de solidariedade, da exploração oportunista de pessoas em dificuldade por empresários desonestos, dos problemas de comunicação e de uma multiplicidade de outras realidades. Evidente ficou a necessidade de um grande esforço de informação aos potenciais ou novos migrantes dos riscos que têm que ter em conta, mas igualmente dos direitos que lhes assistem e dos recursos que lhes estão disponíveis.

Na intervenção com que concluí uma das sessões, deixei clara a minha perspetiva de que a emigração por motivos económicos é sempre trágica, porque não é mais do que a constatação da incapacidade do país de proporcionar condições de vida decente a quem nele nasceu. O normal é um cidadão poder realizar-se, em pleno, sem ter de sair do seu país. Às vezes, fica a impressão de que os portugueses têm uma espécie de tropismo identitário para emigrarem, que isso já faz parte da sua natureza. Não nos iludamos e não confundamos os impulsos de aventura e de legítima ambição pessoal ou profissional com as rotas tristes da necessidade e da miséria. O que é uma evidência indiscutível é o facto de que, nos últimos dois séculos, o nosso país foi incapaz de sustentar um processo de progresso interno que desse oportunidade a muitos dos nossos compatriotas de, se assim o quisessem, se realizarem plenamente no seu seio. E, por isso, muitos foram obrigados a saír, por vezes em condições dramáticas, com percursos de vida frequentemente heróicos, dos quais o país se deve orgulhar muito, por tudo quanto esses compatriotas conseguiram fazer por si próprios e pela imagem de Portugal. Mas que, simultaneamente, Portugal também se deve envergonhar bastante, por aquilo que infelizmente lhes não soube proporcionar. Por muito que isso possa não ajudar ao nosso ego, Portugal foi e continua a ser, desde há muito, o país mais pobre da Europa ocidental. E, enquanto isso assim acontecer e não conseguirmos gerar, para todos, soluções decentes de vida, dentro das nossas fronteiras, uma parte de Portugal andará sempre numa viagem forçada pelo mundo.

sexta-feira, junho 15, 2012

Garaudy

Quando, num final de tarde de 1969, entrei na Moraes, o único cliente presente naquela livraria lisboeta, que falava com o livreiro, voltou-se e encarou-me ostensivamente, com cara de poucos amigos, como que incomodado pela minha presença. Eu conhecia-o, ele não fazia a mínima ideia de quem eu era. Ele chamava-se Francisco de Sousa Tavares, era advogado e um conhecido membro da oposição. O livreiro, distendeu o ambiente: "Não há nenhum problema", disse para Sousa Tavares, sorrindo. E acrescentou: "É um amigo"...

A situação era curiosa. Ambos íamos à procura de um livro, acabado de sair em França, que tínhamos encomendado semanas antes e que nos fora dito que chegaria naquele dia. O livro era "Le grand tournant du socialisme" e o seu autor, Roger Garaudy, era um intelectual dissidente do PC francês.

Ao tempo, obter alguns livros, portugueses ou estrangeiros, menos conformes com os gostos do regime, era uma tarefa que implicava conhecimentos "de confiança" em algumas escassas livrarias. A Moraes, tal como a Barata na Avenida de Roma, proporcionava-nos essa cumplicidade. No caso da Moraes, dava-se mesmo a curiosidade da livraria se situar no mesmo quarteirão onde estava a PIDE... Por isso, todos os cuidados eram poucos.

Garaudy era, à época (e já perceberão porque escrevo "à época"), uma espécie de precursor daquilo que se iria chamar o "eurocomunismo", isto é, uma evolução, tendencialmente democrática, dentro do comunismo na Europa. Fazia parte daqueles a quem os ortodoxos, em especial os maoístas, chamavam "revisionistas", por advogarem uma linha política que começava a colocar em causa as premissas da orientação moscovita, então ainda dominante na generalidade dos partidos comunistas ocidentais. Antigo resistente e prisioneiro durante a ocupação alemã, Roger Garaudy integrou o comité central do PC francês, tendo sido eleito deputado e, mais tarde, senador.

Mas o percurso de Garaudy não iria ser linear. Opositor da invasão russa da Checoslováquia, foi expulso do PCF, passou a atacar o ateísmo, fez uma deriva pelo catolicismo, converteu-se ao Islão, tornou-se anti-sionista feroz para, finalmente, contestar a própria existência das câmaras de gaz no nazismo. Um percurso, pelo menos, bem singular.

No que me respeita, confesso que já quase me não lembrava dele. A sua morte, hoje conhecida, acabou por ajudar a recordá-lo e, também, a recordar o tempo em que o que ele escrevia era interessante para alguns de nós. E talvez não seja por acaso que a sua desaparição foi anunciada por um "site" de extrema-direita... 

quinta-feira, junho 14, 2012

Armamento

Estive hoje à tarde numa grande exposição internacional de material de defesa, perto de Paris. Portugal tem lá uma empresa, fabricante de veículos de elevada qualidade, já com contratos em curso com alguns países. Esta é uma área da nossa indústria que, ao que apurei, muito deve já à aprendizagem feita pela tropas portuguesas que têm estado envolvidas em operações de paz de natureza internacional, com grande honra para as nossas Forças armadas e com grande prestígio paralelo para o nosso país - muito em especial para a nossa política externa, convirá sublinhar.

Ao atravessar os imensos espaços onde se publicitam as vantagens de uma incrível gama de produtos para uso militar e em áreas de segurança, desde carros blindados a armas ligeiras e pesadas, numa impressionante parafernália de meios sofisticados de combate, dei comigo, subitamente, algo chocado ao olhar um video, repetido num écran, no qual se via o efeito fortemente destruidor de um míssil sobre um edifício. 

Estou longe de ser um pacifista radical, sei respeitar e defender as "guerras justas" e a necessidade do uso da força para impor os valores que consideramos fundamentais a uma ordem internacional mais justa, mas devo confessar que, por um instante, senti-me menos bem ao ver aquele filme laudatório de uma arma terrivelmente letal, quiçá idêntica às que, nos dias de hoje, liquidam a fome de liberdade dos cidadãos da Síria.

O mundo é o que é, mas isso não nos impede a que, por vezes, sintamos mais fundo as suas (e as nossas) contradições.  

quarta-feira, junho 13, 2012

O passaporte

O adido técnico entrou com um ar um tanto comprometido, no meu gabinete daquela embaixada, algures no mundo. Vinha expor-me o que disse ser "um problema", relacionado com o passaporte diplomático da sua mulher. Aparentemente, o excesso de carimbos tinha acabado por ocupar todas as páginas do passaporte, o que tornava difícil a sua utilização. Já não havia espaço para mais carimbos ou vistos.

Eu era então um jovem diplomata e tinha a meu cargo, na embaixada, a emissão e a renovação dos passaportes diplomáticos, nesse tempo longínquo em que isso era feito nos postos, totalmente à mão, sem os preciosismos de segurança que hoje existem. Por isso, sosseguei-o, dizendo que, em poucos minutos, faria um novo passaporte, anulando o anterior. Não via nenhum problema.

- Pois é! Mas há, de facto, um problema, disse-me o adido. É que a minha mulher quer manter este mesmo passaporte, não quer que lhe seja emitido um novo.

Fiquei banzado: por que diabo queria ela o mesmo passaporte? Foi então que o adido, homem agradabilíssimo e excelente colega, algo "encavacado", me explicou:

- Sabe, a minha mulher tem, no passaporte, uma fotografia muito antiga, de que gosta muito e da qual já não tem mais exemplares. Para se fazer um novo passaporte, seria necessário tirar novas fotografias e ela tem a certeza de que não vai ficar muito bem nelas... 

Pedi para ver o passaporte e percebi tudo: a fotografia correspondia a uma jovem belíssima, que a mulher do adido devia ter sido, mas já em tempos idos... Porque a idade não perdoa, a senhora que eu conhecia era bem diferente da jovem da fotografia. Aliás, pensei cá para mim, era de admirar que ainda a deixassem passar nas fronteiras, com uma fotografia tão distante da realidade.

Às vezes, sou um sentimental. E lá inventei (espero que ninguém do SEF leia isto) uma folha suplementar que fiz acrescer ao passaporte, dando mais algum tempo àquele título de viagem e, dessa forma, contribuindo para prolongar também a nostalgia estética da sua titular, ao olhar-se ao espelho.

segunda-feira, junho 11, 2012

Lusofonia

Ontem, ao falar com os promotores do festival cultural que, em Toulouse, é este ano dedicado à Lusofonia, dei comigo a pensar que este conceito, sendo hoje banal, era muito pouco utilizado há umas décadas atrás. Porquê? Porque afirmar um conceito se sugerisse como federador de realidades culturais suportadas, simultaneamente, pela antiga "potência" colonial e pelos novos países emergentes da descolonização era um risco que muito poucos arriscavam então assumir. 

Foi o 25 de abril, aliado ao bom-senso e à posterior "desmarxização" que levou à atenuação de uma agenda radical anti-portuguesa em alguns desses recentes Estados, que foi gerando este descomplexado sentimento comum que faz com que, nos dias de hoje, um cantor angolano, um escritor moçambicano, um cineasta português, uma bailarina brasileira ou sei lá quem mais de Cabo Verde, de Timor, de Macau, de S. Tomé, da Guiné ou das várias diásporas possam encontrar-se, e sentir-se bem, em conjunto. 

Se os outros, os estrangeiros, nos qualificam como lusófonos, quem somos nós para recusar esse epíteto? Viva a lusofonia, esse fundo de riqueza de países de onde sempre se vê o mar, com culturas saudavelmente diferentes e muitas vezes distantes mas que, no essencial, se reúnem, com uma cada vez maior naturalidade, à volta de uma língua - mas também de uma bacalhauzada bem regada ou de um pastel-de-nata.

domingo, junho 10, 2012

Toulouse e o Concorde

Uma história ligada ao Concorde - avião em que, infelizmente, nunca viajei - persegue-me, há anos.

Numa tarde do final do mês de julho de 1969, andava eu pelas ruas de Toulouse e, olhando para o ar, vi passar um Concorde. Até aí, nada de particular: perto de Toulouse ficavam as instalações da Aerospatiale onde se sabia que o avião supersónico estava a ser preparado. O primeiro e bem famoso voo de teste do primeiro protótipo do Concorde havia tido lugar em 2 de março desse ano, também sob os céus de Toulouse, sabendo-se que várias outras viagens experimentais tiveram lugar, a partir daí. Ao longo dos anos, em conversas, sempre referi a curiosidade de, naquela que fora a minha primeira visita a Toulouse, ter avistado o novo avião supersónico, bem antes ainda da sua entrada ao serviço comercial, que apenas ocorreu em 1976.

Mas a que propósito escrevo hoje isto? Por duas razões.

A primeira é porque temo que a história que me habituei a contar não seja verdadeira. Porquê? Porque, nessa deslocação, eu ia acompanhado de várias pessoas que, casualmente inquiridas mais tarde por mim, não têm a mais leve ideia de terem visto o Concorde, na ocasião. Pior do que isso, todas juram a pés juntos que, na altura, eu não terei feito a mais leve referência a esse facto. Terei sonhado? Como sabemos, há coisas que nos convencemos que ocorreram sem que tal tenha acontecido (Talvez um dia, como tira-teimas comigo mesmo, me disponha a tentar obter um calendário dos voos de teste do Concorde, cruzando-os com as datas dessa viagem. E mesmo assim...).

A segunda razão é mais simples, é de mera oportunidade. É que hoje e amanhã vou estar em Toulouse, primeiro para uma cerimónia na "Mairie" com a comunidade portuguesa e, depois, para um espetáculo por ocasião do lançamento do festival cultural "Rio Loco", que este ano a cidade dedica à Lusofonia. Só tenho uma certeza: não verei o Concorde nos céus de Toulouse, porque o avião deixou de voar desde 2003.

Eu, a Alemanha e a bola

Portugal perdeu com a Alemanha. Todas as pessoas que entretanto encontrei, desde essa hora, foram unânimes: podíamos ter empatado. Melhor!: com alguma sorte, até podíamos ter ganho. Pois é, mas, no final, perdemos. E, quando se perde - mesmo que estivéssemos "à bica" de ter empatado ou, mesmo, de ter ganho -, a verdade é que... perdemos.  Podia ter sido diferente, pois podia!, mas não foi.

Claro!, mas, c'os diabos!, perdemos contra a Alemanha da senhora Merkel, a Alemanha do velho marco (de que o euro é um mero pseudónimo em europês), a Alemanha onde fica o BCE e quem nele manda, a Alemanha que nos faz ver os eurobonds por um canudo! Todos sabemos que ganhar à Alemanha seria sempre muito difícil, que empatar até seria bem bom e perder (vá lá!) até já é quase normal. Não fica mal perder contra Alemanha em futebol (alguns, historicamente, teimam em não perder com a Alemanha noutros campeonatos), em especial quando, em "jogo jogado" (que saudades tenho do Gabriel Alves, que nos dizia isto tão bem, num futebolês suave, sem o MBA do inenarrável Rui Santos, a quem só falta usar o "alavancar" do léxico dos gestores espertalhotes), "não ficámos atrás". É verdade, saímos "de cabeça levantada", jogámos "taco-a-taco", aquela bola na trave esteve "quase lá"! Pois é. mas, desculpem estar sempre a lembrar isto, no final, perdemos!

Provavelmente, um embaixador português não deveria dizer este tipo de coisas, devia estar aqui "puxar" pelo ânimo do país, a ser tão otimista como um espanhol até ontem, até à véspera do pedido de resgate. Mas, confesso, já não tenho paciência - deve ser da idade, embora eu suspeite que é também por outras razões - para edulcorar os meus sentimentos profundos: enquanto nos não libertarmos desta miserável, e também miserabilista, linguagem "sportinguista", das "vitórias morais" e do "quase", não vamos lá. No futebol, aliás, como no resto.

Isto é Portugal, não no seu melhor, mas no seu real que, infelizmente, parece ser, de facto, o seu melhor. Um Portugal que é tão verdadeiro como o daquele "patriota" que, na assistência, exibia meio garrafão de vinho na cabeça, pintado a verde e a vermelho, "representando" o seu país. Significava um país que, não por acaso, também é o meu. Mas não havia no estádio alemães com cornos e capacetes ridículos? Claro que havia! Mas com o ridículo dos alemães posso eu bem... Porquê? Não percebem? Porque ganharam, caramba! Como o diria o Ricardo Araújo Pereira: "estou chateado? É claro que estou chateado!". Ainda não tinham percebido?

sábado, junho 09, 2012

Dia de Portugal


DN

O "provedor do leitor" do "Diário de Notícias", o jornalista Óscar Mascarenhas, respondeu no seu jornal ao meu anterior post, no qual eu havia criticado o modo como havia sido reportada a atribuição do estatuto de persona non grata à embaixadora síria acreditada em Portugal. Fê-lo, devo notar, com grande elevação e sentido objetivo, que só posso saudar. Porque a questão merecia uma explicação complementar da minha parte, enviei-lhe a carta seguinte:

Meu Caro Óscar Mascarenhas

Registo, com agrado, o “fair play” com que o DN, por seu intermédio, aceitou a minha irritada nota sobre a questão da embaixadora síria. Entendo bem a dificuldade jornalística de “traduzir”, para um público não especializado, temáticas mais complexas. Mas a arte do jornalismo consiste, precisamente, em conseguir não perder o rigor, nesse esforço de simplificação.

Vamos à notícia:

  1.  “Portugal decidiu cortar as poucas relações diplomáticas que tinha com a Síria”. A relação diplomática entre dois países é como a gravidez de uma mulher: ou existe ou não existe, não é “muita” ou “pouca”. Pode haver mais ou menos trocas comerciais, mais ou menos relações culturais, mais ou menos visitas bilaterais, de natureza técnica ou política. Mas o vínculo diplomático entre dois países é sempre um mero reconhecimento mútuo de duas soberanias. Dois Estados podem estabelecer entre si relações diplomáticas e nem sequer terem embaixadores acreditados nas respetivas capitais. Não era esse o caso de Portugal e da Síria, que, desde há muitos anos, trocavam representantes diplomáticos mútuos. Quanto ao facto dos embaixadores serem ou não residentes nas capitais onde estão acreditados, deve notar-se que, não tendo nenhum país meios ou interesses para assegurar a abertura de missões diplomáticas por todo o mundo, a esmagadora maioria opta por acreditar embaixadores que são residentes noutras capitais (às vezes, mesmo, diplomatas que permanecem na capital do próprio país que representam). Em todo o mundo diplomático, há muitos mais embaixadores não-residentes do que residentes. Só em Paris, residem cerca de 50 embaixadores que, estando acreditados em França, representam simultaneamente os seus Estados em Portugal. E noto que há Estados com representação física em Lisboa cujas relações económicas, culturais ou outras com Portugal são bem menos relevantes do que as existentes com alguns dessoutros países.
  2. Portugal “declarou 'persona non grata' a embaixadora síria junto da Unesco, a qual representava os interesses sírios também em Portugal”. Não era a delegada permanente da Síria junto da UNESCO que estava acreditada em Portugal. Quem tinha apresentado cartas credenciais no nosso país era a embaixadora da Síria em França, que, por acaso (como é hoje o meu caso), acumulava funções como delegada permanente junto da UNESCO. Foi na primeira qualidade, e não na segunda, que a acreditação da senhora foi concedida pelo nosso país. Alguns países designam um embaixador específico para chefiar a sua missão junto da UNESCO, mas não conheço nenhum caso em que esse diplomata seja, a partir dessa qualidade, acreditado na capital de qualquer país. Pelo que foi a França, e não a UNESCO, que decidiu considerá-la “persona non grata”, precisamente pelas mesmas razões pelas quais Portugal o fez.
  3. “A declaração de 'persona non grata' de Lamia Chakkour foi decidida porque em Portugal não havia embaixador sírio acreditado”. Esta frase inserida na notícia não tem o menor sentido. A Sra. Lamia Chakkour estava acreditada em Portugal e foi precisamente por esse facto que Portugal pôde declará-la “persona non grata”. O contrário é que não seria verdade: se acaso ela não estivesse acreditada (por qualquer atraso no processo de acreditação), esse nosso gesto não poderia ter sido assumido. Se, com o texto escrito, se pretende, de forma ambígua, aludir ao facto de não haver hoje, fisicamente, uma Embaixada síria em Lisboa, então a frase torna-se ainda pior: dá ideia de que, se acaso a senhora vivesse em Portugal, o governo português não tomaria o gesto que tomou...
  4. O facto de Portugal não ter grandes relações diplomáticas com a Síria foi precisamente o que levou a diplomacia portuguesa a aceitar, em 2009, dois ex-detidos sírios de Guantánamo”. Volto a dizer que é muito pouco rigoroso utilizar o conceito de “grandes”  (ou “pequenas”) relações diplomáticas. As razões da “escolha” dos dois cidadãos sírios para serem acolhidos em Portugal são mais complexas do que a frase deixa intuir, pelo que o jornal não deveria ter enveredado por esse caminho especulativo, sem dispor de uma base informativa sólida sobre a questão. Digo isto porque foi por meu intermédio que Portugal contactou as autoridades sírias, sobre a nossa decisão de acolher dois antigos prisioneiros de Guantanamo. Não obstante as diferenças políticas que mantínhamos entre os dois países sobre algumas grandes temáticas internacionais, as relações formais com o regime de Damasco eram, à época, perfeitamente normais. E, mais importante do que isso, não tem qualquer sentido pensar-se que Portugal é um país que assume, em política externa, um cinismo como aquele que a notícia deixa pressupor.
  5. Finalmente, uma nota sobre a “elegância” do título da notícia: “Portugal corta com a embaixadora síria na UNESCO”. Com todo o respeito, parece-me uma expressão mais própria para certos certos tablóides, mas o DN é que sabe... A fórmula usada ficaria bem melhor para “Luciana Abreu corta com Djaló”.
Com toda a cordialidade
Francisco Seixas da Costa
Embaixador em França (e também no Mónaco e delegado permanente junto da UNESCO...)

sexta-feira, junho 08, 2012

Ainda o Jubileu

É excelente o número duplo que o "The Spectator" dedica ao Jubileu da raínha Isabel II. 

A revista conservadora britânica, que sempre tem colaboradores que, com imensa piada, arriscam o reacionarismo pedante e combatem, sem temor, o "politicamente correto", consegue ter uma vitalidade intelectual que deveria fazer pensar muita gente, daquele e do outro lado do espetro ideológico. 

Em Portugal, este tipo de publicações, mal surgem, enchem-se logo de façanhudos artigos doutrinários que laudam o liberalismo, incensam o atlantismo radical e se furibundam contra outros ismos. Depois, a "mão invisível" do ingrato mercado, que tanto lhes excita os espíritos mas os exclui das bancas, fá-los cair na expectável indiferença pública, (re)canalizando os respetivos escribas para alguma sisuda e quase sempre indignada blogosfera "da política" ou para o colunismo jornalístico sentencioso, de retratinho ao canto, onde quem não os conhecer que os compre. 

Grande "Spectator"!

quinta-feira, junho 07, 2012

Banho de bola

As próximas semanas prometem muito, em matéria de futebol. Conhecendo-me a mim próprio, já imagino as noitadas que vou ter de fazer para recuperar os jogos perdidos durante o dia, com as correspondentes olheiras matinais seguintes e reações irritadas no trabalho, por falta de sono.

Como estou em fase de intenso lóbi para alguns interesses portugueses na UNESCO, com vários encontros por dia com colegas e estruturas da organização, vou ter de estar atento aos respetivos resultados nacionais, para poder ganhar algum coeficiente acrescido de boa vontade. Não chegarei à hipocrisia de me mostrar contente com as suas eventuais vitórias, mas garanto a simpatia de os felicitar por elas.

Contrariamente à esmagadora maioria das pessoas que conheço, não sou dado à mais leve preferência em termos de países, com natural exceção da seleção portuguesa e dos Estados que falam a nossa língua. A minha atitude na observação dos jogos, para além do simples disfrute do bom futebol, é sempre a mesma, desde há muito: não consigo ter simpatia por seleções de países com regimes ditatoriais ou autoritários e desejo a vitória da equipa tida por menos favorita e por mais fraca. Às vezes, a conjugação de todos estes critérios leva a inevitáveis contradições, mas consigo resolvê-las na minha irrevelável diplomacia íntima. Raramente me desviei desta linha, que, como há tempos me dizia um velho amigo, é "a mais política maneira de ver futebol que alguma vez conheci".

Só que a vida diária de um embaixador é complicada. Como exemplo que julgo significativo, por compromissos simultâneos, não vou poder assistir, em direto, a nenhum dos jogos da seleção nacional portuguesa, na primeira fase. Nem sei se isto é bom ou mau. Logo se verá, "com toda a tranquilidade".

Em tempo: ... e "puxarei"pela Grécia, que nos derrotou na final do Europeu 2004, por todas as razões de atualidade e também pelo facto do português Fernando Santos ser o treinador da equipa.

quarta-feira, junho 06, 2012

Pierre Bourguignon

Desde que cheguei a Paris, percebi que tinha um amigo (desconhecido) na Assembleia Nacional francesa. Chamava-se Pierre Bourguignon e era presidente do grupo de amizade França-Portugal, criado entre os deputados franceses. Com total disponibilidade, já usufruída pelos meus antecessores, Pierre foi a nossa "porta" aberta no Palais Bourbon, ajudando a decifrar as coisas mais complexas, sempre de braços abertos para mobilizar os deputados franceses para as questões portuguesas. Graças a ele pude dar conta aos eleitos franceses, com alguma regularidade, daquilo que era a nossa situação económica e política, das nossas opções externas e, muito em particular, daquilo que esperávamos da França, quer em termos europeus, quer em matéria de apoio ao ensino da língua portuguesa. Graças a ele, pude, assim, ajudar muitos deputados a melhor conhecerem um país que muito tem dado à França.

Pierre Bourguignon não será candidato nas próximas eleições legislativas. Hoje veio ver-me, para me dar um abraço de despedida, de regresso a Sotteville-lès-Rouen, onde é "maire". Terra onde há portugueses, por cujos interesses me disse que continuará a bater-se. Sei que o fará. Pierre Bourguignon é um amigo de Portugal. E tornou-se meu amigo para o resto da vida.  

Sem agenda

Um dia, António Guterres explicou-me que "numa entrevista, a nossa pior frase será sempre o título". Sei isso bem, e, em geral, tenho-me precavido. Só não consigo evitar que títulos que se tornam deliberamente enganosos possam desvirtuar o que digo.

Hoje, leio na net: "Embaixador em Paris: Portugal sem agenda para a política francesa". Ó diabo, dirá qualquer leitor, particularmente aquele que nem chega a ler o texto. Então não temos "agenda"? Isso deve ser uma coisa má! Afinal, o que é que o embaixador anda a fazer por lá, sem "agenda"?

Vai-se ao texto e o que é que eu digo à Lusa: que Portugal não tem uma agenda nacional para projetar na política francesa. O que quer isto dizer? Quer dizer que a defesa dos interesses portugueses em França não passa pela afirmação de quaisquer reivindicações em matéria de execução de políticas que se reflita na ação legislativa das estruturas parlamentares que vão sair das eleições para a Assembleia Nacional, cuja primeira volta tem lugar no próximo domingo. No que eu disse, deixei uma única exceção: o nosso interesses em procurar sensibilizar o governo francês com vista a ver aumentados os lugares de professores de português no ensino oficial, por forma a garantir linhas de continuidade ao tratamento da língua portuguesa nos diversos patamares desse mesmo ensino.

Mas que se há-de fazer! Vender jornais obriga a estes jogos ilusionistas de palavras, a estas "jongleries" circenses para captar as atenções. Vale tudo!

terça-feira, junho 05, 2012

Jubileu

Eu devia ter aí uns 6 anos e, com uma tia-avó, recordo-me de mim num camarote do antigo Teatro-Circo, de Vila Real, a ver o filme da ascensão ao trono de Isabel II. Algumas imagens de infância não nos abandonam e aquelas fazem parte do meu património de memória. A da jovem raínha a ser coroada pelo arcebispo de Cantuária ficou-me para sempre.

Na meia dúzia de vezes em que tive a ocasião de trocar umas palavras de circunstância com a soberana britânica, devo dizer que tentei sempre, sem o menor sucesso, perceber o que estava por detrás daquela postura formal, daqueles olhos atentos, daquele leve sorriso com que cumpria, aparentemente sem falhas, o seu papel institucional. Para mim, Isabel II foi e será sempre uma figura enigmática.

Não tem sido dito que a esmagadora maioria dos problemas que testaram a capacidade de gestão da raínha britânica acabaram por não ser de pura natureza política, interna ou externa. Eles decorreram, maioritariamente, das derrapagens de integrantes da própria casa real britânica, passando daí, com frequência, para preocupações com dimensões de Estado. As grandes questões que o Estado britânico teve de enfrentar nestas seis décadas, da guerra do Suez à das Falkland/Malvinas, das temáticas da guerra fria às aventuras com o "amigo americano" no Golfo e adjacências, das greves de dimensão histórica à barbárie dos atentados terroristas, tiveram na raínha o patriótico notário que o seu papel institucional exigia. Sempre leal ao governo legítimo, mesmo quando se sabia que o detestava, escrupulosa leitora dos discursos do trono, mesmo quando estes apontavam para políticas contrastantes. Era essa a sua função e foi a consciência de que dela se não deveria desviar um milímetro que lhe garantiu o prestígio de que disfruta. Para bem do seu país, diga-se.

Ontem, ao ver, por uns minutos na televisão, as carruagens a passar pelo Mall, e não obstante o caráter entusiástico com que a locução da BBC procurava descrever a dimensão dos aplausos, não terá escapado a ninguém, a começar pela própria raínha, que as multidões que a saúdam já não são o que eram, que o magnetismo da coroa, seis décadas passadas, pode estar a erodir-se, que a sociedade britânica mudou imenso na sua atitude face aos ocupantes de Buckingham. Mas é uma indiscutível evidência que, se esse "appeal" ainda se mantém no nível em que está, isso se deve a essa grande profissional do Estado que é a raínha Isabel II.   

Síria

Este blogue tem mais de três anos. Tinha sido visitado por internautas de 168 países ou territórios com "label" informático internacional próprio. Nunca da Síria.

Ontem, chegou o primeiro visitante oriundo da Síria. Será um sinal de esperança? 

انتم مدعوون الى الحرية

Menos de 20 horas em Lisboa

1. Que calor! Parece Marraquexe!

2. É dos meus olhos ou a cidade está bem mais suja?

3. Não é dos meus olhos: há um claro declínio do trânsito em Lisboa.

4. Encontrei um taxista com uma solução para resolver a questão do "gangsterismo" de alguns dos seus pares no aeroporto de Lisboa. Só que "a Antral não quer", disse-me.

5. "Às vezes, os seus textos são longos demais para um blogue. E saem melhor quando se afastam da atualidade". Tomei nota, mas não prometo nada.

6. Assumi funções como membro da comissão para a revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Senti a falta de alguém que, infelizmente, não pode lá estar: Ernâni Lopes.

7. Somos o país do ouro. Trouxemo-lo do Brasil para o derreter em patetices, entesourámo-lo com Salazar (com barras de origem duvidosa, com a suástica inscrita, ainda nos fundos do Banco de Portugal) e, agora, nestes tempos em que nos troikam as voltas da vida, os agiotas de banca montada por todos as ruas de Lisboa (até na minha) arrancam-no à miséria das famílias. 

8. No aeroporto, nas partidas, fazem-nos agora passar pelo meio do "free shop". "Good try!", mas já ando nisto há muito tempo e só compro o que me faz falta.

segunda-feira, junho 04, 2012

Esquizofrenia

Sinto haver algum esquizofrenia no discurso da nossa comunicação social, quando se trata de abordar a questão do investimento estrangeiro em Portugal.

Por um lado, clama-se pela necessidade de ser criado um ambiente para o bom acolhimento dos capitais externos, como forma de carrear para a economia portuguesa fundos e massa crítica que permitam induzir crescimento e competitividade. Nessa perspetiva, diz-se ser imperioso adequar o nosso quadro legal laboral, por forma a flexibilizar o mercado de trabalho, garantindo, ao mesmo tempo, ganhos de eficácia no sistema judicial, na administração pública e em outros setores nos quais os investidores estrangeiros detetam ainda fragilidades, reduzindo-lhes a apetência para aqui operarem.

Porém, com estranha frequência, às vezes nos mesmíssimos jornais onde o que acima refiro é defendido com ardor e zelo liberal, encontro alertas e até algum pânico sobre os efeitos que a entrada maciça de capital exterior pode trazer para a economia nacional, pela perda dos centros de decisão, pelas consequências deletérias que a expansão de certos investidores estrangeiros no tecido empresarial português pode vir ter, com consequências mesmo nos equilíbrios do nosso sistema político. A tudo isto se aliam, não raramente, algumas teorias conspirativas, muitas vezes ligadas a preconceitos face aos regimes e países de onde esses capitais são originários.

Quando se disputa um jogo, aceitam-se todas as suas regras. Ou, então, não se vai a jogo. E as regras da economia liberal, boas ou más, são as que são. Podemos estar em desacordo com elas e recusá-las, cabendo então colocar sobre a mesa as alternativas que devem ser seguidas. O que não se pode é querer ter "sol na eira e chuva no nabal".

domingo, junho 03, 2012

Os diplomatas e as "secretas"

"Vê lá no que te metes!", prevenia-me, há dias, um amigo quando lhe disse que tencionava escrever um post sobre as "secretas" portuguesas. O facto das pessoas sempre falarem dos serviços de informações "com luvas" prova bem a sensibilidade histórica que a questão tem entre nós. Por muito que alguns possam tentar negá-lo, a verdade é que, no imaginário português, o conceito está ainda ligado aos tempos da PIDE, o que provoca uma reação de imediata prudência. O conselho do meu amigo também tinha a ver com episódios da política recente - embora eu lhe assegurasse que o tratamento do tema não iria nada por aí.

Os serviços de recolha de informações são um instrumento absolutamente indispensável para a defesa dos interesses dos países, na ordem interna e externa. Nenhum Estado passa sem eles, porque as ameaças à sua segurança são permanentes e há que habilitar quem tem responsabilidades políticas com dados que lhes permitam tomar decisões para a proteção desses mesmos interesses. Para serem eficazes, os serviços têm de ser discretos, pelo que têm de ter um caráter "secreto", quer nas suas análises da informação "aberta", quer quando recorrem a outras fontes mais oblíquas para sustentarem a sua pesquisa. E têm de ser independentes, desde logo dos meios económicos e, tanto quanto a razoabilidade e as leis da vida o permitem, dos meios políticos, para que a ciclicidade destes não comprometa a sua funcionalidade.

Os serviços de "intelligence" têm sempre, pelo menos, dois grandes problemas a superar. O primeiro é que não têm a possibilidade de se louvar publicamente na eficácia da sua ação, o que faria com que os cidadãos os aceitassem melhor: a prevenção de uma infiltração potencialmente terrorista, a deteção atempada de redes de criminalidade organizada, o alerta precoce para o surgimento de movimentos extremistas anti-constitucionais, etc. O segundo problema, é, por tradição, bastante mais complexo de resolver e, por essa razão, regular objeto de um controlo parlamentar, sobre cuja real eficácia sempre alimentei imensas dúvidas: trata-se da garantia de que os serviços funcionam num rigorosíssimo cumprimento da lei, em particular daquela que protege os direitos e liberdades individuais dos cidadãos.

Em Portugal, como em muitos outros países, há dois serviços distintos: um para recolha de informações internas e outro dedicado às questões externas. É vulgar esta separação, porque se considera que os objetos de pesquisa são diferentes e porque muitos acham perigosa a mistura das duas culturas. Contrariamente a outras pessoas que muito respeito, cada vez mais sou dessa opinião. Ah! convém também que se diga, subsiste sempre uma tradicional conflitualidade entre os dois serviços, fruto de egos em confronto e de zonas cinzentas, a qual, na realidade, não é mau de todo que continue a existir...

Como se chegou até aqui? "To make a long story short", diga-se que, com a democracia, com o fim da PIDE (que concentrava as informações internas e externas e cujo "esforço de pesquisa" era facilitado pela "dispensada" intromissão da justiça, pelas escutas sem controlo, pelas prisões arbitrárias e pelas torturas, como potenciadores de eficácia funcional...), as informações caíram, com naturalidade, nas mãos dos militares. A reentrada dos civis na "intelligence" far-se-ia mais tarde, primeiro sob a tutela dos militares, depois por processos de concurso e de cooptação, a que se somou uma estranha cultura comum com certas zonas policiais (os serviços secretos não são polícias). Até que se chegou àquilo que hoje são o SIS e o SIED, respetivamente ligados à parte interna e externa das informações. Pelo meio, diga-se, andou sempre a política, como não podia deixar de ser.

Onde quero eu chegar com este arrazoado? Quero, de forma assumidamente corporativa, chamar a atenção para o facto de que, durante os muitos anos em que os serviços de "intelligence" externa tiveram nas suas chefias funcionários oriundos da diplomacia, nunca foram eles os fautores das conflitualidades públicas em que esses serviços se envolveram. E que foi a partir da decisão, tomada em 2006, de escolher para a chefia da ação externa uma figura alheia à diplomacia que se iniciou a triste polémica que hoje atravessa esses serviços. Os diplomatas não têm o monopólio da ética, longe disso, mas, tal como os militares, têm uma vida profissional exterior para onde sempre podem regressar, cujo "esprit de corps" lhes induz um forte sentido de patriotismo e de serviço público, que lhes evita a fácil tentação de cair em certas derivas. É esta, pelo menos, a minha profunda convicção.

É proibido ter saudades...

... mas não é proibido ter orgulho numa bela ideia. Tive-a em 2004, há precisamente 20 anos.  Eu estava de saída da Áustria e quase de parti...