quinta-feira, maio 18, 2017

Photo opportunity

Um dia, num aeroporto do Brasil, cruzei-me com uma figura ligada a um derminado setor da Justiça daquele país, com quem me tinha encontrado em diversas ocasiões oficiais e com a qual mantinha uma relação cordial. Em tom casual, perguntou-se se eu conhecia uma determinada pessoa, um cidadão brasileiro. O nome nada me dizia. A figura da Justiça sorriu e disse-me que essa pessoa estava presa e que, no seu processo, constava uma fotografia tirada comigo.

Já não sei como, cheguei à conclusão de que coincidira com essa pessoa, mais de um ano antes, num jantar com uma vintena de pessoas, em casa de uma amiga comum. Puxando mais pela memória, recordei-me que, a certa altura, essa pessoa quis tirar uma fotografia com o embaixador de Portugal, provavelmente para recordação. Não tinha nenhum motivo para recusar fazê-lo e, verdadeiramente, esqueci tudo no instante seguinte.

A personagem ligada à Justiça brasileira disse-me que o assunto não tinha a menor importância, mas deu-me um conselho: quando alguém que eu não conhecesse me pedisse para tirar uma fotografia comigo, deveria tomar a iniciativa de pedir a mais alguém, que estivesse perto, para se juntar ao retrato. Isso evitaria dar a ideia de uma excessiva intimidade com o parceiro desconhecido registado na imagem. Tomei boa nota da técnica, embora depois tivesse aprendido que há outra, também eficaz, que é ter fotografias, mesmo a dois, com quase toda a gente, como faz o nosso presidente da República...

Lembrei-me disso há pouco, ao receber tristes notícias políticas do Brasil. É que, se olhar os meus arquivos fotográficos, não são poucas as fotografias que tenho com figuras políticas, brasileiras e não só, que entraram em desgraça, algumas delas presas, outras, aparentemente, com fortes probabilidades de o virem a ser.

Saudades de Américo Tomás

Aquele amigo, quando me viu chegar, um tanto afogueado, com um atraso de cinco minutos, a uma palestra em que eu ia intervir, ao final da tarde de ontem, no Palácio da Independência, ali junto ao Rossio ficou surpreendido quando, de raspão, dirigindo-me à mesa, lhe deixei um críptico "Que saudades tenho do Américo Tomás!". Esse amigo conhece-me bem, politicamente, e claro, imagino que ficou desconcertado com a minha saída.

O dia de ontem foi muito complicado. Uma reunião de manhã, um almoço a trabalhar, um encontro logo a seguir, conclusão de um parecer de consultoria para uma empresa, preparação de uma aula, a palestra acima referida e, finalmente, sem tempo para jantar, duas horas de aula, terminadas às 23.30. Só ao virar do dia, tive tempo para uma sandwich e uma cerveja, no balcão do Procópio. Os dois dias anteriores não tinham sido muito diferentes e os de amanhã e sexta-feira vão também ser de alguma correria.

O grande problema de reuniões e trabalhos em sítios diferentes de Lisboa (e arredores), como é o meu caso, é a dificuldade de me deslocar, de arranjar lugar para o carro, de fazer telefonemas a meio do percurso. assim, vivo em cima da hora de tudo. E as obras do meu amigo Fernando Medina, somadas às surpresas no trânsito, não ajudam nada.

A saída da palestra no Palácio da Independência, quando eu já "voava" dali para o compromisso seguinte, o meu amigo que tinha encontrado à entrada, inquiriu, ainda perplexo: "O que é que tu querias dizer com aquilo do Américo Tomás?".

Expliquei-lhe que, com uma vida destas, o que me dava uma "jeitaça" era ter um motorista, que me levasse aos locais, esperasse por mim à saída e me ajudasse a relaxar, sem conduzir, entre os eventos, dando-me tempo para telefonar e consultar emails. Porém, ele continuava sem perceber a "saudade" personalizada a que eu aludira. Foi então que lhe expliquei que, desde há alguns anos, deixara de ter motorista, porque acabaram entretanto os cargos oficiais que antes tinha e, do meu contrato com as várias entidades privadas com quem trabalho, não faz parte essa "mordomia". Ora o último motorista que tive, de quem agora sentia "saudades" práticas, chamava-se (e chama-se) precisamente... Américo Tomás!

(Um abraço para si, Américo!).

quarta-feira, maio 17, 2017

O arroz do padre

Ao ler na imprensa de hoje que um padre italiano, conluiado com a Mafia, desviava alimentação destinada a imigrantes, a expressão "arroz do padre" veio-me à memória.

Foi há mais de 60 anos, lá por Vila Real. Eu era muito miúdo mas recordo bem uma conversa em torno de um arroz que um dia foi servido na casa onde então vivia, com os meus pais e os meus avôs. Louvava-se a qualidade ímpar de um arroz que estava a ser servido - de uma textura que nunca ninguém tinha experimentado até então (agora, depois de uma vida como "arroseiro" militante, imagino que tivesse sido o primeiro arroz agulha que nos fora dado a provar). À volta da mesa, as pessoas perguntaram-se de onde tinha surgido aquela maravilha. Foi chamada a criada (o termo "empregada" é bem mais tardio, nesse tempo em que também não havia "colaboradores" nas empresas), inquirida sobre se aquela "especialidade" (um termo muito usado à época, para qualificar algo de muito bom) fora comprado no Mário Miranda ou no Sarreiro, tradicionais provedores alimentares da casa.

A senhora surpreendeu toda a gente: "Não, esse é arroz do padre", e passou a explicar. Uma colega de uma casa vizinha alertara-a para o facto de, na sacristia de uma igreja da cidade (que não refiro, para evitar especulações dos vilarrealenses com boa memória), vendia-se arroz ao quilo, que vinha depois naqueles cartuchos de papel grosso, acinzentado. "É muito mais barato!", esclarecia a criada, ufana com a poupança introduzida no rol das compras.

Arroz à venda numa sacristia era, no mínimo um mistério, a que a sua extraordinária qualidade somava uma interrogação mais! 

Horas depois, o enigma escareceu-se: o tal padre estava a vender ao público, a granel, imagina-se que para crédito das contas da paróquia (numa versão otimista), arroz de origem americana que tinha chegado pela Caritas, para ser distribuído pelos pobres. O "desvio" era para dos os adultos da casa um tanto obsceno, numa casa por onde chegou a "circular" a "sagrada família" e onde existia um mealheiro de cartão, de cor azul clara, distribuído pela paróquia, com a inscrição rimada "um tostão por dia para os padres da freguesia".

Não sei quantos quilos de "arroz do padre" tinham sido adquiridos, não tenho registo se o prazer em consumir aquela delícia compensou o remorso de estar dela a privar os seus naturais destinatários. Só sei que o conceito de "arroz do padre" passou a ser um "benchmark" referencial, quase inatingível, para qualificar um arroz  excecional. 

Um dia, na Noruega, confrontado com um prato acompanhado de um belo "Uncle Ben's" (um notável arroz americano), lembro-me do meu pai suspirar: "É muito bom, mas nada que se compare com o arroz do padre..." 

terça-feira, maio 16, 2017

Não!


Não, não vou falar aqui dos 2,8% de crescimento. Porquê? Porque quero ser simpático para com os meus amigos "conservadores" (que é outro eufemismo que alguma comunicação social usa para evitar falar de "direita" ou chamar isso a amigalhaços dela e meus). Por isso, só para lhes poupar um desgosto, optei por ficar, hoje, completamente calado, em sepulcral e respeitoso silêncio. Bem gostava eu de poder mandar um forte abraço de parabéns a António Costa, de fazer "mea culpa" por todos os alertas contra a "geringonça" que lhe transmiti. Mas não, não posso fazer isso, porque os meus amigos do "centro-direita" (a maioria gosta de ser chamada assim - façamos-lhe pois a vontade!) não me perdoariam. Já lhes basta a realidade que hoje, mais uma vez, lhes caiu em cima, coitados! E, por isso, não me passa pela cabeça atirar-lhes à cara, uma cara agora com um sorriso amarelo, que a governação "troika"/PSD e (às vezes) CDS foi um rotundo fracasso, titular de uma cruel insensibilidade, somada a uma clamorosa incompetência. E nem sequer vou lembrar-lhes que o país não os esquece - e, por isso, quer vê-los "com dono" por muitos e bons. Apetecia-me tanto dizer-lhes isto, bem alto, mas não, optei por não aborrecê-los. Até porque alguns se queixam (às vezes por interpostos conhecidos) de que eu ando sempre a "dar-lhes pancada". Assim, hoje não farei isso! Nem a eles nem a um amigo deles de quem deixo uma imagem, tirada há quase um ano, quando então exibia, como dizia Camões, aquilo que viria a ser um ridículo "contentamento descontente".

segunda-feira, maio 15, 2017

"Eixos da Política Externa Portuguesa"


É já amanhã, 3ª feira, pelas 18 horas, que terá lugar a primeira das conferências, organizadas pela Universidade Autónoma e pelo jornal "Público", que abordarão o tema comum dos Interesses de Portugal no Mundo.
Falarei na ocasião sobre os Eixos da Política Externa Portuguesa.

domingo, maio 14, 2017

O tal canal

Recordo-me bem desses tempos, no auge do cavaquismo, em que, pelo país, os padres recolhiam donativos para dar "um canal à igreja católica". Sei de gente humilde que foi às suas economias buscar dinheiro para concretizar esse sonho de ter uma "Renascença com imagem". Lembro-me de debates sobre a natureza particular que a sua programação iria ter, que se pretendia assente em valores diferentes daqueles que eram seguidos pelos outros canais.

Onde tudo isso vai! A TVI acabou, enfim, por ser o que hoje é, depois de passada "a patacos" a quem deu mais por ela. 

Há pouco, ao acompanhar uma ácida "crónica" de Vitor Moura-Pinto no jornal da TVI, satirizando a visita do papa a Fátima, num modelo que nenhuma outra televisão entendeu seguir, perguntei-me o que pensarão hoje alguns dos sacrificados desse tempo, ao constatar os insondáveis caminhos dos senhores em cujas mãos o "canal da igreja" entretanto caiu.

"Ai Portugal, Portugal!"

Roubei o título a uma canção de Jorge Palma, neste dia de alegria e boa música, com a consciência de que a letra conclui pela questão "... de que é que tu estás à espera?". A um país fazem falta momentos como estes, uma difusa ideia de que tudo está a correr bem, de que os astros se conjugaram para fazer sorrir as pessoas, de que Portugal está na moda. E, na verdade, está, de uma certa forma, e isso é bom e deve ser aproveitado - no plano material e naquilo que isso possa induzir no bem-estar das pessoas que por cá vivem. Nestes tempos de alguma euforia, parecerá quase sacrílego (e em coro com malévolos e ácidos cultores da desgraça) alertar, conta o vento dominante, para o facto de que tudo isto são boas ondas passageiras, que a realidade de fundo permanece, neste que é, de há muito, o país mais pobre da Europa ocidental, emissor de gente para o mundo, fruto da incapacidade de lhe proporcionar um futuro decente na terra onde nasceu. Gozemos bem estes dias, embora o passado nos venha ensinando, desde há séculos, que temos uma endémica incapacidade para sustentar os nossos episódios de sucesso e uma insuperável dificuldade em cavalgá-los para construir um futuro sereno, próspero, que venha a evitar novos ciclos de depressão e angústia, como os que, ainda há pouco, atravessámos. O melhor serviço que poderíamos prestar a nós mesmos, nestes dias de euforia e de otimismo, seria a tomada coletiva de decisão de nos organizarmos definitivamente para a mudança, para o rigor, para a disciplina, para a não perda de tempo, para a pontualidade, para o respeito pelos outros, para o fim do xicoespertismo, para que esta não fosse mais uma "alegria breve", para usar o termo cunhado, para outra realidade, por Vergílio Ferreira. Mas, se calhar, se viéssemos um dia a mudar, não seríamos nós, dirão alguns. Provavelmente, é neste eterno ser ou não ser - glórias e derrotas, euforias e depressões, do "agora é que é!" ao "não vale a pena!" - que, afinal, está a graça (e a desgraça) deste país.

Só faltava!


"Foi o Euro 2016, depois o défice, resolveu o diabo dos bancos, isto rebenta de turistas, lá elegeu o Guterres, veio o papa, tem o Marcelo no bolso, o Benfica dele ganhou, daqui a dias os tipos de Bruxelas abençoam o fim do procedimento e, agora, até o Salvador lhe saiu em rifa - que sorte a do Costa! Ao menos - bem, isso é dinheiro em caixa! - a Teresa Coelho lá vai ganhar a Câmara de Lisboa!"‬

sábado, maio 13, 2017

Para que não digam que não falei de futebol


Segundo se sabe, o papa é um fanático do San Lorenzo de Almagro.

Na minha infância, o nome de San Lorenzo de Almagro era sinónimo de perfeição em futebol. Ao que o meu pai me contava, com admiração, aquela equipa argentina teria feito, em 1946, uma temporada de exibição pela Europa e o seu jogo, marcado por passes curtos e uma apurada técnica individual, surpreendeu e venceu todos os adversários que defrontou. Popularizado então como o "Ciclone", o San Lorenzo infligiu mesmo uma derrota pesada a uma seleção nacional portuguesa. Antes disso, no estádio do Lima, no Porto, o San Lorenzo deu uma "abada" ao Futebol Clube do Porto.

Uma noite, no final dos anos 60, num jantar no Pedro dos Leitões, na Bairrada, tive o privilégio de assistir a uma rememoração dessa partida, feita por Gomes da Costa, que fora "avançado-centro" dos portistas nesse jogo e era médico em Vila Pouca de Aguiar, e o meu pai, testemunha de bancada.

Que fique claro que, aconteça o que acontecer, este é o meu único post sobre futebol neste fim de semana. E é porque o papa anda por cá.

sexta-feira, maio 12, 2017

GNR




Depois de uma palestra em que participei, em Mangualde, na noite de ontem, perdi-me na cidade... Passava da meia-noite, não se via vivalma, andei de carro às voltas, a tentar descobrir o hotel, sem o GPS à mão.

A certo passo, cruzei-me com uma viatura da GNR, pedindo indicações. Iniciaram uma explicação mas, de súbito, disseram: "Siga-nos!" E, com imensa simpatia, conduziram-me até ao hotel, uns quilómetros adiante.

Há meses, falei aqui da experiência de um tratamento impecável por parte dos Bombeiros e da PSP, em Vila Real.

Ontem, a GNR de Mangualde confirmou-me que há, nos dias de hoje, um Portugal muito diferente, em matéria de serviço público. Para bem melhor.

As luzinhas do presidente


São contraditórias as notícias que chegam de Angola, sobre o real estado de saúde do presidente José Eduardo dos Santos. Num país cujo quotidiano, desde há décadas, está marcado por aquele que é o mais resiliente líder de África, é normal que alguma ansiedade atravesse quantos, mais cedo ou mais tarde, para o seu bem ou para o seu mal, vão ter de encarar o futuro sem ele.

Lembrei-me há pouco dos tempos em que vivi em Luanda, com Angola em guerra civil, no início dos anos 80, a cidade de certo modo sitiada, com fortes precauções de segurança e recolher obrigatório durante a noite.

Eu tinha um cozinheiro chamado Alberto, uma figura curiosa que herdara do meu antecessor na embaixada. Nunca lhe consegui extrair uma palavra de simpatia para com o MPLA e o seu regime, apenas algumas ironias crípticas sobre figuras políticas mais em voga. No fundo, sempre desconfiei que fosse simpatizante da Unita.

Um dia, fui com o Alberto buscar já não sei o quê à Corimba, no caminho para o Futungo de Belas, o complexo onde então vivia o presidente. A certo passo, ao longe, em nossa direção, vimos surgir um grande movimento de viaturas. A Luanda dessa época era muito diferente da de hoje, sem o tráfego rodoviário infernal que é o seu atual quotidiano. Um reboliço desse género era, à época, muito pouco comum.

Vi então Alberto, em geral seráfico, ficar muito agitado e dizer: "Doutor, cuidado!, são as luzinhas do presidente!" Eu estava há poucos meses em Luanda, pelo que demorei uns instantes a perceber o que ele queria dizer. O Alberto referia-se, percebi então, às dezenas de luzes, bem visíveis naquele fim de tarde com o sol a pôr-se, que se destacavam das motos dos batedores e dos carros da segurança, que precediam o cortejo de viaturas negras onde, com plausível certeza, viajava José Eduardo dos Santos.

A aproximação das "luzinhas do presidente" significava, muito simplesmente, a necessidade de qualquer viatura com que aquele aparato se cruzasse ter de encostar à berma e, mais do que isso, que o condutor colocasse as mãos sobre o volante, na posição "dez-e-dez", por forma a não criar a mais leve dúvida sobre a sua inocuidade para a segurança do líder do país. Vim a saber, mais tarde, que um cidadão português, menos atento a esta indispensável coreografia, teria sido morto, tempos antes, com disparos de uma das viaturas da segurança do cortejo.

Por que é que me lembrei disto? Porque estou numa área de serviço da autoestrada, perto da base de Monte Real, onde o papa aterrará daqui a pouco, e, embora em faixas diferentes, vislumbrei já algumas viaturas oficiais, precedidas de batedores, cheias de "luzinhas". 

E senti que é muito bom viver num país onde, felizmente, não somos obrigados a ter calafrios sempre que nos cruzamos com as "luzinhas do presidente".

O papa


Sendo nós um país cuja população se assume maioritariamente como católica, é natural que por cá seja sempre acolhido com gosto o chefe da respetiva igreja, cuja relação histórica com Portugal data da fundação da nossa nacionalidade.
Acresce que o atual papa é uma figura simpática, que projeta uma imagem de humanismo que passa muito para além das fronteiras religiosas.
Por tudo isso, e pelo que me toca, seja muito bem vindo a Portugal, papa Francisco!

Informações


Os serviços de informações são indispensáveis para a defesa dos interesses dos países, na ordem interna e externa. Nenhum Estado passa sem eles, porque as ameaças à sua segurança são permanentes e há que habilitar quem tem responsabilidades políticas com dados que permitam tomar decisões para a proteção desses interesses. Pela sua natureza, os serviços – que não são polícias - têm de ser discretos no seu trabalho de pesquisa, o que induz frequentemente suspeições e alimenta teorias conspirativas. E têm de ser independentes, desde logo dos meios económicos e, tanto quanto a razoabilidade e as leis da vida o permitem, dos meios políticos, para que a ciclicidade democrática não comprometa a sua funcionalidade. 

A "intelligence" tem sempre dois problemas a superar. O primeiro é não ter a possibilidade de se louvar publicamente da eficácia da sua ação, o que faria com que os cidadãos os aceitassem melhor. As ameaças evitadas raramente são notícia - na luta contra o terrorismo, a criminalidade organizada ou o extremismo inconstitucional. O segundo problema, é, por tradição, bastante mais complexo de resolver e, por essa razão, regular objeto de um controlo parlamentar, sobre cuja real eficácia entre nós sempre alimentei imensas dúvidas: trata-se da garantia de que os serviços funcionam num rigorosíssimo cumprimento da lei, em particular daquela que protege os direitos e liberdades individuais dos cidadãos.

Tal como em muitos outros países, em Portugal há dois serviços distintos: um para recolha de informações internas e combate à espionagem estrangeira e outro dedicado às questões externas, quase sempre em articulação com serviços “amigos”, que partilham idênticas ameaças. É vulgar esta separação, porque os objetos de pesquisa são diferentes e as culturas comportamentais nem sempre coincidem. Sinto, contudo, que começa a prevalecer uma tendência para a unificação dos serviços, através do reforço da respetiva coordenação. Confesso preferir o modelo dual.

Para a coordenação dos serviços de informação acaba de ser nomeado o embaixador José Júlio Pereira Gomes, uma excelente escolha do governo, avalizada pela oposição. Trata-se de um qualificadíssimo diplomata, do melhor que existe nas Necessidades, sereno, culto, com imensa experiência em matérias de Estado. Os diplomatas estão longe de ter o monopólio da ética pública, mas foram habituados, ao longo da sua vida profissional, a cultivar um sentido de patriotismo e de serviço que os ajuda a evitar a tentação de cair em certas derivas, como aquelas que, por mais de uma vez, atingiram o prestígio dos nossos serviços de informação em tempo democrático, afetando a sua imagem perante os pares.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 11, 2017

Fátima

Como ateu, tenho a minha opinião formada, desde há muito e em definitivo, sobre Fátima - a qual creio ser fácil de presumir. Essa leitura (certa ou errada) tem a montante um esforço de racionalidade, que é natural em quem não foi "tocado pela fé". Não me recordo de alguma vez ter discutido o tema de Fátima com crentes, porque sempre entendi que me situava num plano diverso, e irreconciliável, no tocante à interpretação do fenómeno. Mas que fique claro: respeito sinceramente quem acredita no "milagre" de Fátima, como matéria de fé.

Serve isto para dizer que, sendo embora "de outra freguesia", acho de uma grande insensatez o debate, envolvendo figuras da igreja, sobre se o que se passou há um século, em Fátima, foi uma "visão" ou uma "aparição". São reflexões sobre os factos que, em alguns casos, relevam da procura de uma certa racionalidade. Ora Fátima ou é uma matéria estrita de fé ou não é - e aqui tudo muda de figura. Posso estar enganado, mas ao enveredar por estas "technicalities", a igreja católica abre um caminho fácil à contestação de Fátima. Se segue por esta via, com facilidade podem ser trazidos à colação textos de Tomás da Fonseca, de Mário de Oliveira e até de Fina da Armada, entre muitos outros. É isso que querem? Eu aconselharia a que, quem acredita, continuasse no registo cândido da Virgem que apareceu aos pastorinhos sobre uma azinheira. E ponto.

"Talent de rien faire?"


O infante dom Henrique tinha por lema "talant de bien faire".

As embaixadas e consulados portugueses no estrangeiro vão estar encerradas, por "tolerância de ponto", no dia em que o papa vai a Fátima? O pessoal vai a Fátima, é? Estão a gozar connosco, lá nas Necessidades?

"Talent de rien faire?" Depois queixem-se sobre a imagem que as representações portuguesas no estrangeiro projetam...

quarta-feira, maio 10, 2017

O laço

Com a morte de Baptista-Bastos, o facho do porte do "papillon" passa, entre nós, a ser mais reduzido.

Na primeira linha, estarão João Carlos Espada, Nicolau Santos, Rui Vieira Nery, Francisco George e Miguel Esteves Cardoso (pelo menos, no passado), atendendo a que o professor Fernando Pádua tem sido pouco visto.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, o "papillon" tem uma certa tradição. Usava-o, em permanência, o desaparecido embaixador Humberto Morgado, figura referencial que, por muitos anos, foi diretor-geral da Administração. O ar algo aristocrático de Morgado escondia a sua sabida ligação, durante a ditadura, ao "Socorro Vermelho", uma estrutura dependente do PCP, em especial dedicada a apoiar as famílias dos presos políticos.

Mas Morgado deixou os seus seguidores. João de Vallera, hoje o "Mr. Brexit" das Necessidades, depois de ter deixado a chefia da embaixada em Londres, usa o laço intermitentemente (ontem, num almoço comigo, tinha-o trocado por uma bela gravata). Já o meu sucessor em Paris, José Filipe Moraes Cabral, não dispensa nunca o adereço, que funciona já como a sua "imagem de marca". Resta-me a dúvida sobre outro colega que, no passado, era regular portador de vistosos "papillons": Paulo Tiago Jerónimo da Silva. Já o não vejo há muito, pelo que não sei se ainda segue esse hábito. Ah! E o Luís Barreiros, outro embaixador, também é useiro e vezeiro no laço.

O laço, sejamos claros, nunca ameaçou a preponderância esmagadora da gravata. Porquê? Talvez porque muito o veem como um adereço "light", menos formal, um tanto excêntrico. Nunca esquecerei que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiro da Áustria, Wolfgang Schussel, a partir do dia em que passou a ser primeiro-ministro do seu país, largou o laço e engravatou-se para sempre. Sinal de mudança de estatuto? A gravata consagrou o "upgrading".

A verdade é que, no meu caso, sempre que "me deu na veneta" de usar laço, foi em ocasiões bastante "soltas", pouco formais, ciente de que quem me conhece notaria e estranharia a mudança de registo "pescoçal". Daí a minha admiração sincera por quem usa o "papillon" em todas as ocasiões.

terça-feira, maio 09, 2017

Baptista-Bastos


Morreu Armando Baptista-Bastos, um dos mais geniais cronistas do jornalismo português, uma figura marcante da nossa literatura. BB ou "O Bastos", como era conhecido nos meios da imprensa, transportava para os seus livros uma leveza da construção e uma riqueza vocabular que tornavam imperdíveis os seus textos nos jornais. A idade - tinha 83 anos - nunca afetou a frescura da sua escrita, da qual transparecia muita leitura e uma cultura excecional.

Conheci-o pessoalmente há mais de quatro décadas, quando, nos finais de tarde, nos encontrávamos num café e bar no topo da então livraria Opinião, na rua da Trindade - eu saído do meu emprego na Caixa, ao Calhariz, ele acabado o seu trabalho no "Diário Popular", também por ali perto. Esse era então um espaço aberto de conversa onde eu me imiscuíra, por via de amigos comuns. Por lá paravam jornalistas, escritores e outros que, como eu, eram então meros espetadores atentos da vida intelectual de Lisboa. Com a sua voz bem caraterística, não abandonando a marca pessoal que era o seu laço, Baptista Bastos confirmava, em pessoa, a frontalidade opinativa a que sempre nos viria a habituar no futuro e que muitos, mais tarde, vieram a conhecer nas entrevistas que fazia na SIC, onde tinha a pergunta que ficou clássica: "Onde é que você estava no 25 de abril?". 

Li Baptista-Bastos com regularidade e, à distância, apreciei sempre o seu sentido crítico e a sua postura ética, muito em especial a independência com que sempre preservou as amizades, por cima das ideologias a que se mantinha fiel. 

Há uns anos, com um amigo comum, João Paulo Guerra, tive um divertido almoço com Baptista-Bastos, num restaurante popular de Carnide, Foram umas belas horas de conversa, que guardo para sempre. Vai-se um nome grande do nosso jornalismo, uma figura cimeira da nossa literatura e uma respeitável personalidade cívica.

Realismo impopular


“Que negativo! Em lugar de saudares, com júbilo, a vitória de Macron, vi-te numa atitude reticente, augurando males para a sua governação, destacando mais o resultado de Le Pen”. Vários amigos comentaram desta forma o que disse ou escrevi no dia final das eleições presidenciais.

Vamos a ver se nos entendemos. Para a esmagadora maioria dos franceses, o candidato Emmanuel Macron, de que alguns nunca tinham ouvido falar até há muito pouco tempo, representou o escudo de proteção para um assalto ao poder de uma candidata que personalizava uma política de ódio, discriminação e autoritarismo, cavalgando medos e inseguranças, na base de um programa cheio de mentiras, simplificações da realidade e caricatura de soluções.

O voto “efetivo” em Macron foi o da primeira volta: 24,1%. Foi um resultado que beneficiou, desde logo, do candidato socialista ser Benoît Hamon e não Manuel Valls (que teria deslocado muito voto socialista moderado que foi para Macron) e da circunstância conjuntural, muito particular, que foram as “trapalhadas” de François Fillon, o candidato da direita clássica.

Convém que não nos esqueçamos de uma realidade muito evidente: se o “Canard Enchainé” não tivesse revelado as improbidades do casal Fillon, no dia de ontem a sua cara estaria em todos os jornais do mundo como novo ocupante do Eliseu. Sem a mais leve das dúvidas.

Desses 24,1%, Macron passou, no domingo, para 66,1%. Recebeu assim 42% a mais de “voto útil” de pessoas que, na primeira volta, tinham votado noutros candidatos e que, postos perante uma opção entre ele e Le Pen, não hesitaram em escolhê-lo. 

Mas Macron não tem mérito? Claro que tem e muito. Soube aproveitar o “nicho de mercado” político que se abriu com a exaustão dos partidos clássicos, em especial o fracasso rotundo dos socialistas, propondo uma ansiada e sempre adiada modernização da França, sem deixar cair esta ideia numa agenda puramente conservadora. Foi uma cara nova, num mundo de rostos desgastados por aquilo a que os franceses chamam a “politique politicienne” (que poderíamos traduzir por “política politiqueira”).

Macron tinha contra si o facto de, enquanto Ministro da Economia, ter proposto medidas fortemente liberais, que o alienaram de muitos setores socialistas. Mas essa mesma postura foi, no polo oposto, aquilo que o credibilizou junto de uma certa direita. Os seus 24,1% nascem assim de uma conjugação favorável de fatores, que soube aproveitar com um ambíguo discurso, nem-de-esquerda-nem-de-direita, fórmula que a História sempre revelou ser insustentável no tempo, mas que já alimentou no passado algumas outras aventuras políticas. Mas “a sorte protege os audazes” e Macron soube ousar e é premiado por isso.

O novo presidente tem, perante si, um imenso desafio, que começa com a necessidade de organizar uma nova maioria que lhe permita governar. A História mostra que um presidente que não tenha atrás de si uma maioria coerente, num país onde as coligações não são habituais, tem grande dificuldade em dar expressão prática ao seu programa.

Nas próximas eleições legislativas, a grande maioria dos 42% de votos a mais, face à primeira volta, que deram a vitória a Macron, regressarão com naturalidade aos candidatos a deputados que representam as forças políticas em quem esses eleitores tinham votado nesse primeiro turno. O mesmo acontecerá, com toda a certeza, com os cerca de três milhões de votos a mais que Marine Le Pen recolheu nesta segunda volta. É claro que não deveremos descontar que alguns dos “novos” eleitores de Macron, pelas sinergias que uma dinâmica presidencial não deixará de induzir, poderão ser tentados a confortá-lo com um crédito de confiança, votando agora  “En Marche!”. Mas eu aposto, singelo contra dobrado, em como, no final do dia 11 de junho, esse partido não irá ter muitos mais votos do que aqueles que o seu inspirador obteve na primeira volta das presidenciais. 

A grande dificuldade com que Macron se vai defrontar, nas seis semanas que se seguem, é transformar um movimento de apoio a uma candidatura num partido capaz de apresentar candidatos, credíveis e com hipóteses de serem eleitos, num número significativo de circunscrições, dentre as 577 existentes. O “efeito PRD” que experimentámos em Portugal em 1987, é reproduzível na França da V República? Tenho dúvidas.

A ingovernabiidade, ainda que relativa, da França de Macron nunca será uma boa notícia para Portugal. Com a expectável saída do Reino Unido da UE, Paris tem uma oportunidade soberana para recuperar algum terreno perdido no plano europeu, como contraponto cooperativo a Berlim. Uma França forte seria um importante fator de equilíbrio na Europa do futuro. Por isso, o êxito de Macron é desejável e só nos poderemos vir a regozijar se ele vier a ter lugar. O que não nos impede de dever ter a responsabilidade de afirmar que as condições para tal vir a ocorrer são ainda muito questionáveis.

segunda-feira, maio 08, 2017

De trincheira em trincheira


Em 2000, a Europa chocou-se com a ascenção minoritária ao poder, na Áustria, de um partido de extrema-direita. Viena foi posta de “quarentena” e o episódio parecia ter funcionado como uma vacina para garantir que essa sombra negra não mais regressaria.

Dois anos mais tarde, Jean-Marie Le Pen, o negacionista desculpabilizador do colaboracionismo, chegou à segunda volta presidencial em França. A “frente republicana” ergueu-se, chocada, e votou Chirac. A Europa regressou ao “business as usual”.

Ontem, um candidato atípico, com o pé e a gravata dentro do sistema, mas contestando os representantes tradicionais deste, derrotou um “remake” edulcorado do pai Le Pen, em quem bem mais do que um em cada três franceses já hoje confiam.

Vamos recuando, de vitória em vitória, até à trincheira da derrota final? Ou alguém tem dúvidas de que, se tudo continuar na mesma, a agenda populista mantem todas as condições para crescer, tendo mesmo como farol os EUA, onde uma política de extrema-direita (não tenhamos medo às palavras) faz o seu imperial caminho?

Derrotar Le Pen ou Wilders, travar o AfD e fazer frente a Orbán, contestar Trump ou denunciar o primarismo por detrás do Brexit, tudo são passos necessários mas insuficientes. Se a Europa - porque as respostas ou são europeias ou não serão verdadeiras soluções – não for capaz de apaziguar o mal-estar das pessoas, acalmar os seus medos, atenuar as suas múltiplas inseguranças, gerando confiança no futuro e nas lideranças de turno, daqui a meses regressaremos a uma nova trincheira.

Será Macron capaz de impulsionar diferentes políticas europeias? Mas que autoridade externa pode vir a ter alguém que passa a liderar um país em evidente perda de velocidade competitiva, um dos “doentes” mais notórios da Europa, atravessado gravemente pela “malaise” que aduba os extremismos, de esquerda ou de direita? Até que ponto Angela Merkel estará disposta, na iminência do abismo europeu, a ajudar a França a com ela pilotar soluções diferentes para o futuro imediato?

Dentro de seis semanas, ver-se-á com que maioria parlamentar Emmanuel Macron poderá vir a governar. Se o seu movimento “En marche” não vier a ter um espetacular e pouco provável sucesso maioritário no sufrágio, terá que constituir uma coligação heteróclita que dificultará a colocação em prática do seu programa. Na oposição, terá um Front National que tem condições de sair desse mesmo sufrágio como o maior partido de França e uma esquerda que pode vir a ter mais força nas ruas do que no parlamento.

Macron terá assim meses difíceis à sua frente. Por um lado, procurará potenciar as hipóteses do “En Marche”, dramatizando a crise de governabilidade que pode aí vir. Contudo, terá de fazê-lo não hostilizando demasiado o “Les Republicains” de Sarkozy, bem como alguma esquerda mais moderada, de cuja boa vontade pode vir a necessitar para não ficar refém exclusivo da direita. É um caminho muito estreito que não se pode excluir que venha a conduzir, no fim de contas, a uma maioria pouco coerente, titulada por um primeiro ministro que, dependendo do sentido ideológico prevalecente, poderia ser (da direita para a esquerda) François Baroin, François Bayrou ou Gérard Collomb.

Mas tudo isto não passa de especulações de um analista que só tem uma certeza: um fracasso de Macron e uma crise política em França, a curto prazo, seria uma péssima notícia para a Europa. E, claro, para Portugal

domingo, maio 07, 2017

Rui Moreira

Terminou o namoro entre Rui Moreira e o PS, no Porto. Nada que não fosse expectável e que, a meu ver, só tinha sido evitado, até hoje, graças ao génio do relacionamento que se chama Manuel Pizarro, um "gentleman" e um homem de bem que os socialistas têm a sorte de ter no Porto.

Rui Moreira, pessoa por quem tenho simpatia, fez da Câmara uma via de afirmação muito pessoal, que se liga mal com a lógica das formações partidárias tradicionais que, goste-se ou não, constituem o eixo central da representação cívica em Portugal. Não há vida política para além dos partidos? Há, no microcosmo das pequenas autarquias ou por uma conjuntura temporalmente limitada, que pode suportar uma certa fulanização.

Os partidos tentam, pela normalidade das coisas, aproveitar em seu favor aquilo com que se comprometem. O PS, que colocou os seus simpatizantes ao lado de Moreira, considerou necessário tirar vantagens disso. Rui Moreira não gostou? É uma opção. A meu ver, deveria ter compreendido uma coisa que, a prazo, lhe pode ser fatal: é muito difícil, na "alta política" em Portugal, sobreviver de forma sustentada sem uma aliança, expressa ou subliminar, com um dos dois grandes partidos portugueses. Ora, ao alienar agora o PS, estando de costas voltadas para o PSD que existe, Moreira pode acabar por ficar sozinho na praia... da Foz.

O Nuno e o MAR

O Nuno Brederode dos Santos foi militante do MAR, o Movimento de Ação Revolucionária.

O MAR nasceu no início dos anos 60, tempo de grande agitação política e académica, muito marcado pela experiência cubana e por várias outras vivências revolucionárias. Não se confundia com o PCP, nem tão pouco com a extrema-esquerda maoísta que então borbulhava. Tanto quanto julgo saber, o MAR reuniu apenas algumas figuras da intelectualidade, em especial lisboeta. Nuno de Bragança, Manuel de Lucena, João Cravinho, Bénard da Costa e alguns outros integraram essa estrutura clandestina de cuja ação prática e concreta a História acabou por não recolher grandes notas. O MAR, contudo, viria a integrar a FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), criada em Argel. 

Ouvi uma história (terá sido ao Nuno?) segundo a qual, numa ocasião de alarme por iminente repressão policial, João Bénard da Costa terá enterrado umas caixas metálicas, contendo documentação sensível do MAR, numa certa zona da serra de Sintra. A precipitação com que essa ocultação foi feita, durante a noite, fez com que, tempos mais tarde, ao procurar esses arquivos, nunca mais tivesse conseguido descortinar o local do esconderijo. Assim, só o futuro trará um dia ao mundo essa prova documental sobre a robusta ação do MAR.

Um dia, o Nuno contou-me que foi destacado pelo Movimento para ir a Roma para um encontro clandestino com uma pessoa, uma mulher, que ele devia procurar numa determinada direção. Ela chamava-se "Raquel" - nome da clandestinidade, claro - e ele devia identificar-se como "Norberto" (inventei agora estes nomes, porque não fixei os que o Nuno me disse).

O Nuno bateu à porta, surgiu uma mulher muito bonita a quem perguntou: "É a Raquel?" Ela disse que sim, inquirindo: "Você é o Norberto". Estabelecido o contacto, passaram a uma sala, para tratar dos graves assuntos políticos que tinham motivado a deslocação.

E agora ficam as palavras do Nuno: "Ao final de cinco minutos de conversa, usando o "Raquel" e o "Norberto", demo-nos conta do ridículo da situação. Ali estávamos nós, sozinhos numa sala de Roma, a utilizar pseudónimos revolucionários, quando ambos nos conhecíamos de Lisboa. Ela era a Maria Bello... Acabámos numa risada!"

(Uma explicação. Este texto já teve um parágrafo final diferente. Nele se dizia que a pessoa que o Nuno tinha encontrado em Roma tinha sido, não Maria Bello, mas Maria Carrilho. Seguramente por lapso meu, ao ouvir, do Nuno, a história, fiz essa confusão. E ela iria ter consequências. Por ocasião da morte do Nuno telefonei à Maria Carrilho, dizendo-lhe que ia publicar este episódio, que me parecia inócuo mas interessante, para explicar “l’air du temps”. A Maria tinha acabado de desembarcar de um avião, chegada de Nova Iorque. A reação que me transmitiu, além da surpresa e tristeza pela morte do Nuno, foi bastante vaga quanto ao episódio, que lhe referi em termos largos: não o negou mas, manifestamente, não lhe dizia muito. Mesmo assim, dei por boa a sua associação ao evento e assim o publiquei. Como nunca me disse nada, acreditei ter sido fiel aos factos. Alguém, anónimo, num comentário, fez-me ver que era eu quem estava errado. Quis dar esta explicação por uma circunstância importante para mim: eu não deturpo deliberadamente factos.)

sábado, maio 06, 2017

Trocos

"Não acredito!" A jovem da loja dos sumos da rua Nova do Almada olhou para mim, incrédula.

Duas horas antes, eu tinha entrado (não muito, porque aquilo é esconso) pela porta dentro, com uma nota na mão, a pedir trocos, para estacionamento. Não obstante a situação da caixa registadora, neste domínio, não ser brilhante, a jovem havia sido de uma grande simpatia e lá me arranjou um par de moedas.

Agora, duas horas e tal passadas, aí estava eu, com o dobro dos trocos na mão, a "devolver-lhe" a gentileza, pedindo uma nota "em troca". A jovem estava siderada com o meu gesto. Sorrimos - e ela era bonita - e eu fui à minha vida.

O meu carro, parcado em frente, lá estava, dentro da hora do estacionamento, naquele dia em que a app da Emel "não dava". Tudo perfeito!

Foi então que vi o pequeno envelope vermelho no pára-brisas, Dentro, a fatídica multa. Era uma zona para residentes! 60 euros a pagar! Afinal não eram trocos...

sexta-feira, maio 05, 2017

Grau zero


“O senhor não tem o monopólio do coração”, lançou Giscard d’Estaing a François Mitterrand, com maestria, no debate presidencial de 1974. Qualificado de “candidato do passado”, Mitterrand retorquiria a Giscard, em 1981, que ele era “o candidato do passivo”. Mais um septanato decorrido, o mesmo Mitterrand, presidente recandidato, calaria o seu “challenger”, o primeiro ministro da maioria hostil, Jacques Chirac, quando este sublinhou que ali não estavam um presidente e... um primeiro-ministro, mas apenas duas pessoas com estatuto idêntico, com o soberbo: “Tem toda a razão, senhor primeiro-ministro”. Chirac começaria a cair aqui.

Alguns desengravatados na linguagem argumentarão que os tempos já não estão para “punhos de renda”, que a linguagem franca é a regra do jogo, que os dias que correm convocam outro tipo de discurso. Imagino que sejam as mesmas pessoas que não se escandalizam com as javardices insultuosas ditas pelo presidentes dos clubes, que assim ditam o tom à turbamulta alarve das claques, com as violências consequentes.

Pode ser que sim, e as ruas da amargura em que se transforma, em certas tardes, o nosso debate parlamentar parece dar-lhes razão. É claro que o tempo do “olhe que não, olhe que não”, entre Soares e Cunhal, já lá vai há muito, que a elegância do confronto político parece francamente perdida.

Mas o bom senso, e até o sentido prático de deixar abertas algumas portas para o diálogo, talvez recomendasse que se preservasse uma reserva de urbanidade. É que a política também se faz à porta fechada e o que se diz em público, se passar determinados limiares, pode condicionar certas pontes que o futuro pode revelar necessárias.

Tenho vindo a pensar mais nisto desde que testemunhei, um pouco atónito, o nível verbal das trocas entre Donald Trump e Hillary Clinton. E, na passada quarta-feira, ao constatar o “grau zero” a que chegou o confronto de Marine Le Pen com Emmanuel Macron, interroguei-me sobre o efeito que este tipo de linguagem poderá vir a ter junto dos respetivos eleitorados.

Mas depois, pensando melhor, cheguei a conclusão de que estamos perante um fenómeno bi-unívoco, isto é, os líderes cada vez mais refletem o nível do eleitorado que os apoia e o seu êxito parece ser proporcional à simbiose que demonstram com essa base. Só assim se explica que passem impunes atentados flagrantes à verdade dos factos – como Trump ousa todos os dias e Le Pen deixou patentes no debate.

Este é um tempo político perigoso, feito de caricaturas, de simplismos, de linguagem primária, que subordina a razão à emoção. Se a isto somarmos a dispensa da ética, a legitimação dos egoísmos e da discriminação e a ausência de respeito pelos outros, está criado um caldo de cultura que, no passado, deu no que deu.

Cri de coeur


Uma vitória de Marine Le Pen "significaria o fim da União Europeia porque a UE, sem a França, não faz sentido. E significaria o colapso do euro e a crise financeira, com consequências através do mundo". Quem disse isto não foi uma pessoa qualquer, foi Gérard Araud, embaixador francês em Washington. Acabo de ler na Newsletter diária do Washington Post. 

Pode um embaixador ter propósitos destes, hostilizando abertamente uma candidata que a vontade popular francesa poderá conduzir à chefia do seu país? 

Araud, um excelente profissional, que conheço bem (era diretor político do Quai d'Orsay quando eu era embaixador em Paris), tem, com certeza, a plena consciência de que está a ultrapassar a "linha vermelha" da neutralidade que aos servidores públicos incumbe ter perante as escolhas democráticas. As eleições em França decorrem em total liberdade, sem o menor condicionamento, pelo que não há a menor dúvida de que a resultante final do sufrágio, qualquer que ela seja, corresponderá à livre vontade do povo francês. Por isso, Araud prevaricou, de acordo com as regras estabelecidas e que lhe cumpria cumprir.

Mas eu percebo Gérard Araud. Um diplomata não é um eunuco político, é um cidadão que sente os problemas do seu país e, provavelmente, tem mesmo uma leitura mais qualificada do efeito externo das escolhas internas. E ele pressente que, se a França viesse a escolher Le Pen, isso teria um impacto muito negativo para a imagem e prestígio do seu país. E escolhe dizê-lo.

Ao tomar esta atitude, Araud sabe que, em caso de vitória de Le Pen, a sua "cabeça" rolaria e, muito provavelmente, teria de deixar o serviço diplomático. Por isso, pelo facto de um dos mais prestigiados diplomatas franceses ter ousado abandonar a neutralidade a que a função o obriga, dando este "cri de coeur", pondo em risco a sua carreira, pode ter-se uma ideia mais clara da gravidade da escolha que os franceses serão chamados a fazer no domingo.

Segunda-feira


Emmanuel Macron ganhou o debate televisivo contra Marine le Pen? Confesso que, depois do Brexit e de Trump, sou bem mais cuidadoso nas opiniões que emito sobre realidades estrangeiras e, em especial, nas avaliações prospetivas sobre o sentido desses eleitorados. Porquê? É muito simples: o referencial de análise que cada um de nós utiliza é sempre desenhado à luz daquilo que pensamos ser o eleitor comum, do qual, implicitamente, tendemos a não nos afastar muito em termos pessoais (embora possamos fazer um esforço interior para tal). Ora isso não leva suficientemente em conta a circunstância desse mesmo eleitor "médio" poder ter, entretanto, mudado bastante, fruto de situações conjunturais que podemos não conseguir medir convenientemente, de ele ser hoje menos sensível a sentimentos e realidades que, no passado, sabíamos que estavam mais presentes nas suas escolhas. Quero com isto dizer que fatores emocionais, que somos levados a considerar como primários e simplistas, podem afinal ter um papel central na decisão de cada um. Por exemplo, o rigor factual nas propostas ou comentários dos candidatos, que sempre tendemos a considerar qualificadores do seu discurso, podem dizer muito pouco a eleitores que se deixem tentar pelo "vale tudo" e que considerem isso um preciosismo dispensável. Viu-se nos os debates entre Clinton e Trump.

Repito: Macron ganhou o debate? Para mim, ganhou, mas tenho a certeza de que um "enragé" (para utilizar a clássica expressão do maio de 1968), que deteste um tipo engravatado com ar "certinho", a lembrar a alta finança e o "sistema" que ele acha que lhe põe em causa o seu emprego, que lhe abriu as fronteiras por onde entra a “diferença” que ameaça a imagem que tem da sua identidade nacional, que o não protege dos terroristas e dos "voyous" que lhe assombram a segurança das ruas no HLM onde vive, que, para ele, representa tudo aquilo que mobiliza a sua raiva, essa pessoa não pensa exatamente como eu. E pode, afinal, sentir-se representada pelo escárnio (que eu acho alarve, mas ele talvez não) presente nas atitudes de Le Pen durante o debate, indiferente ao facto de ela não saber quando foi introduzido o euro ou o seu visível desconhecimento da máquina europeia. O eleitorado, dirá o leitor, não são só "enragés"? Claro que não. Mas o eleitor "médio" sereno, que oscilava entre o centro-direita e a social-democracia, por muitos anos o fiel da balança do sistema, por onde andará hoje, com as estruturas políticas da direita clássica e dos socialistas destroçadas? Hoje, está visto, é tão “enragé” o operário vítima das deslocalizações como o é o estudante sem emprego à vista que votou Mélenchon ou o idoso burguês do XVIème que se assusta ao cruzar-se nas ruas com as “burkas” e que até tinha perdoado os pecadilhos a Fillon para ter um “genérico” de Sarkozy no Eliseu.

Logo veremos. Mas, seja qual for o resultado, o mundo irá mudar com esta eleição francesa.

Se, numa hipótese que não espero, Marine le Pen entrasse no Eliseu, a disrupção e a instabilidade que isso provocaria no projeto europeu seriam imensos e imediatos. Se for Macron a ganhar, como me parece mais provável, será sempre mais um presidente “by default” do que uma escolha pela positiva.

Em qualquer dos cenários, vai ser necessário esperar pelas eleições legislativas de junho, de cujo resultado dependerão as condições de governabilidade de qualquer presidente. Uma coisa é clara: uma forte “onda” Le Pen trará impactos determinantes sobre esse mesmo sufrágio, atenta a “balcanização” do voto dos seus múltiplos opositores.

A França será muito diferente a partir de segunda-feira. A outra má notícia é que, muito provavelmente, a Europa também, e para pior.

quinta-feira, maio 04, 2017

O adeus de Philip


Foi hoje anunciado que o príncipe Philip, duqie de Edimburgo, vai deixar de surgir em cerimónias públicas. A sua fragilidade física justificará que deixemos de o ver ao lado da raínha Isabel II. Enfim, ao lado não, porque há uma arte que ninguém como ele domina: estar sempre dois passos atrás da soberana, garantindo, não obstante, um lugar com suficiente proeminência na cena, a que a sua estatura também ajudava. Do príncipe, a História não reteve grandes tiradas e, bem pelo contrário, fixou mesmo algumas "gaffes". Não deve ser fácil ser príncipe consorte, mas, jogando o trocadilho, ele tem, no entanto, a sorte de sê-lo de uma raínha que é uma excelente profissional na função que exerce.

Há já uns bons anos, na Noruega, tive uma simpática amiga, diplomata equatoriana, de seu nome Marta Dueñas. Era casada com um norueguês "muito norueguês", daqueles que construíam (não sei se ainda constroem) as próprias casas familiares de madeira, ao longo de vários meses ou mesmo anos. Chamava-se Erik e recordo-me que tinha um humor já algo "sulista", por virtude do convívio com os colegas da mulher, como era o nosso caso.

Um dia, o Erik contou-me uma troca de palavras que teve com o príncipe Philip, durante uma visita de Estado da soberana britânica à Noruega. Como era de regra, após o jantar oficial, o protocolo ia convidando os diplomatas, por uma ordem vagamente próxima da respetiva antiguidade, para se aproximarem do rei norueguês - à época Olav V - e da sua convidada. Numa linha mais atrás, o príncipe Philip exibia o seu sorriso e deixava cair alguns comentários.

Quando a diplomata equatoriana e o seu marido foram apresentados aos reis, o duque de Edimburgo acercou-se de Erik e, num aparte só ouvido pelo dois, comentou: "você e eu temos uma coisa em comum: são as nossas mulheres que trabalham!" Erik não sabia o que dizer: ele próprio tinha uma exigente profissão e vir a ser toda a vida "consorte" da mulher era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Mas não quis desiludir o príncipe e deixou escapar: "De facto, é um privilégio estar na nossa posição..." Não contava com a reação de Philip: "Privilégio?! Isto às vezes é muito aborrecido, pode crer! Para si não é?". O norueguês, que detestava cocktails e jantares oficiais, a que só assistia por virtude da profissão da mulher, achou que tinha ganho espaço para uma graça: "Ao menos, bebemos uns copos!" Ao que Philip, sorrindo, respondeu: "Pois hoje, a mim, de nada me valeu ainda ser marido da raínha! Ainda não consegui que me servissem um scotch..."   

quarta-feira, maio 03, 2017

Refugiados

A tradicional auto-flagelação lusitana, essa endémica mania de desqualificar o que alguém faz em nome do país, tem vindo a "desfazer" no acolhimento dado aos refugiados, destacando que muitos "fogem" de Portugal, após precariamente instalados.

A ver se nos entendemos: cumprindo bem a sua história como país recetor de deserdados da sorte, Portugal foi dos primeiros Estados a abrir portas, à sua medida, à recente vaga de refugiados do Médio Oriente. Fê-lo através de uma notável mobilização do Estado e da sociedade civil, da igreja e dos municípios. Como cidadão, fiquei orgulhoso com o modo generoso como o nosso país se mobilizou.

Portugal fez a sua obrigação, fê-la bem e à medida das suas possibilidades - que são as do país mais pobre da Europa ocidental, como alguns teimam em esquecer que há muito somos. Houve, com certeza, falhas, mas, genericamente, as avaliações feitas são muito positivas e reconfortantes.

Arguir com a posterior saída dos refugiados é não entender que, na sua condição, é de todo natural que procurem ir em busca das melhores oportunidades, que essas são as que países mais ricos proporcionam, onde as possibilidades são em maior número, em que os apoios sociais são mais amplos, onde porventura há comunidades da mesma origem, mesmo familiares e amigos já integrados.

Há que ser rigoroso na avaliação do que eventualmente possa ter corrido mal, aprendendo todas as lições daí decorrentes. Mas não deixemos que a árvore nos tape a floresta e que a acidez agrave as úlceras alimentadas pelo eterno discurso da verrina. 

Isabel Mota

(fotografia de João Paulo Dias)

Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian. E aproveito também para, neste momento, deixar um abraço de grande amizade a Artur Santos Silva, que abandona a chefia da instituição, depois de um exigente mas muito bem sucedido mandato, num período que, como é sabido, não terá sido nada fácil para a gestão dos recursos que sustentam a atividade daquela casa.

terça-feira, maio 02, 2017

Uma história do Nuno


Era àquela hora despovoada em que o Procópio tem escassas almas, imediatamente antes do jantar. Às vezes, há por lá uns canastrões a "fazer a folha" a secretárias em busca de ascensão, ou um tête-à-tête de negócios. O Nuno Brederode Santos tinha chegado, depois das seis, fazia horas para ir jantar ao "Mãe de Água". Eu estava por lá por um mero acaso, muito longe do meu turno. 

Vimo-lo entrar e sentar-se ao balcão. Trazia a marca indelével dos chatos. Saudou-nos na "mesa dois", à distância. O Nuno sabia quem era. A certo passo, com o resto da sala deserta, copo na mão, o cavalheiro aproximou-se da "dois", perguntou se se podia sentar. Saí um pouco da conversa, com ele a inquirir do Nuno sobre umas coisas que não me diziam o menor respeito. Com generosidade inclusiva, o tipo voltou-se então para mim: "Sabe, eu e o Nuno conhecemo-nos do tempo do Ertilas, aquele café de Campo de Ourique. Grandes noitadas por lá, não era, Nuno?". O Nuno, complacente, dizia que sim. Comentei então que o Luís, o magnífico empregado do Procópio que nos aguenta nas últimas décadas, havia trabalhado nesse café. O "Ah! Sim?" (versão lusa do anglo-saxónico "really?!") foi a única coisa que lhe saiu.

Esgotados os minutos em que nos encharcou de conversa, o cavalheiro preparou-se para sair. Nostálgico, comentou, de novo íntimo, com o Nuno: "Grande Ertilas! Belo café! Grandes tempos! O nome do café é grego, não é?". O Nuno, grave, acenando que sim com a cabeça, confirmou. Era um nome grego, da mitologia, claro.

O tipo saiu. Eu tinha de fazer o mesmo. O Nuno ia para o restaurante. Perguntei: "Conhecias bem o tipo?". "Mais ou menos, mas nunca o vi no Ertilas..." Riamo-nos, já fora, pelas escadas, quando comentei: "Não fazia ideia de que Ertilas era um nome grego!" "Grego?" O Nuno deu uma gargalhada das dele: "Ertilas é Salitre ao contrário"...

Ontem, não pude ir aos Prazeres, despedir-me do Nuno. Lá por Campo de Ourique, como o Ertilas, o bairro onde o Nuno nasceu.

segunda-feira, maio 01, 2017

A hora do aeroporto



O cavalheiro estava bem disposto, não obstante já ter passado mais de meia hora, sem que as bagagens surgissem na passadeira, depois do voo que nos trouxe de Paris.

A mulher, cansada, acabara de dizer que estavam ali a "perder tempo". Ele não se mostrou de acordo:

- Estás enganada! Quando vimos de Paris para Lisboa, chegamos com uma hora de diferença, não é? Ora muito bem: essa hora existe precisamente para compensar os atrasos da TAP e para permitir que haja tempo para entregar as malas.

Bem visto!

Primeiro de maio

Tinha uma "Légion d'Honneur", discreta, gasta, como deve ser. Quase 90 anos. Estava sentado ao nosso lado, nas mesas do fundo da sala de baixo, hoje, no almoço do Stella. "Cabillaud" e uma "carafe" de vinho da casa. De repente, a língua diferente aproximou-nos. Ao saber-nos portugueses, do "cabillaud" passou-se ao bacalhau. E depois a Salazar ("un homme remarquable") e aos "oeillets rouges" dos comunistas. Quando enveredou pelas "concierges portugaises", concentrei-me de vez no "fillet de boeuf saignant, sauce bernaise". Intervalo. A certa altura, entre nós, falou-se do Trocadéro, ali perto. Ouvida a palavra, não resistiu: "J'y étais, l'autre jour, avec Fillon", esclareceu, sem necessidade, para o nativo do "XVIème" que era. Claro que estivera no comício de Fillon, onde Juppé foi tido como "le candidat de la gauche". Tentei, por uma última vez, evitar a atualidade, fugir à controvérsia. Falei-lhe, admirativo, da condecoração que tinha ao peito: "Le Général! C'est lui qui me l'a donnée." Mas derivou, de novo, para a política dos dias. "Tout ça c'est la faute de Mitterrand". Animado pelo Bourgogne, lancei: "Quand même, avec lui, les chars soviètiques n'ont pas descendu à la Concorde!", recordando o que dizia a direita assustada, nesses anos 80. Não topou. "Hollande c'était un imense désastre! Un salaud! Et l'autre, ce Macron c'est bonnet blanc, blanc bonnet". Lembrei-lhe que Macron vinha do Banco Rothschild... como Pompidou. O imenso Baba au Rhum que comia ("soyez généreux" com o rum vertido, havia ele pedido ao empregado, rindo) tremeu com a pequena provocação. "Il faut le stopper, Monsieur!" Disse-lhe que era turista, que não tinha nada a ver com o que se passava, mas que tinha uma curiosidade: "Et le Géneral? Qu'est-ce qu'il penserait de la possibilité de voir une Le Pen à l'Elysée?". "Cher Monsieur, tout ça c'est trop serieux pour des plaisanteries". "Mes hommages, madame", disse ele para o outro lado da minha mesa. E saiu, com a bengala cheia de tentações. Que raio de 1° de maio em Paris!

O Hubert

Ao final de uns minutos, eu já estava arrependido de ter puxado conversa. Ele era do Haiti, negro, vivia em França desde os anos 90, tinha aquele francês caribenho macarrónico. Comecei por perguntar-lhe pelo seu país, pelo terramoto, pelas vagas migratórias para a América, Canadá e França. Vieram também os Duvalier à baila - do pai ao "baby Doc" e aos "tonton macoute" -, falámos da desilusão que foi o Aristide. Ele era democrata, contra a ditadura, falou do desvio de verbas para a reconstrução, da escassa esperança na nova solução governativa. A certo passo, dei comigo a cometer o lapso de lhe perguntar quem é que ele achava que ia ganhar a eleição francesa do dia 7. O homem começou a responder relativamente sereno, equilibrado, quase diplomático. Depois, subitamente, confessou, excitado, que ia votar Marine Le Pen. Não contestei, não disse nada, ouvi a sua litania sobre a necessidade da França sair do euro, regressar ao franco, travar a entrada de estrangeiros (!). "Com um franco comprava-se uma baguette, agora é preciso o equivalente a seis francos", sem que eu lhe perguntasse quanto ganhava então. E, de um momento para o outro, Macron passou a ser o objeto de todas as críticas. Ainda estive para perguntar-lhe se, por acaso, já tinha refletido no que poderia vir a acontecer, em caso de vitória de Le Pen, aos estrangeiros, mesmo aos que, como ele, já estavam há muito em França. Contive-me, para não atiçar ainda mais a conversa que ele empolgara. E, praticamente, "desliguei". A certa altura ouvi-o denunciar a aliança de Macron e com o Hubert. Conheço relativamente bem as figuras políticas, e outras, francesas, mas não consegui chegar à personagem a quem ele se referia. O tal Hubert surgir-lhe-ia umas vezes mais no discurso, que agora era contra a "globalização", o "neo-liberalismo" e clichés assim. Eu já tinha deixado para trás a conversa. Saí do carro. Paguei. E, um segundo depois, como dizem os brasileiros, "caiu a ficha": o Hubert, esse maroto conluiado com Macron, que eu não identificava, era afinal o Uber. Muito por causa dele, o taxista haitiano de Paris vai votar Le Pen. Que lhe faça bom proveito, é o que não lhe desejo.

A face exterior da América

Comecemos pelo óbvio. Os americanos, nas suas escolhas eleitorais, mobilizam-se essencialmente pela agenda do seu quotidiano interno. Nestes...