quinta-feira, novembro 06, 2014

Das embaixadas

No seu IV volume de memórias, "Acta est fabula", há dias publicado, Eugénio Lisboa, que foi conselheiro cultural em Londres entre 1978 e 1995, e com quem coincidi naquela embaixada de 1990 a 1994, traça um singular retrato de uma certa estirpe. Respigo o extrato aqui, com a devida vénia:

"À volta das Embaixadas, gravita toda uma fauna peculiar, que vive dependente de ser vista nas recepções das Embaixadas, cujo estatuto social precisa da bênção e da aura das Embaixadas e para quem é vital "ser muito das Embaixadas" e saber o que lá se passa e "quem vai ser o novo embaixador". Intrigam, telefonam, pressionam, namoram, iriam para a cama, sendo necessário, para assegurarem que receberão o "convite". Recebido este, nada lhes dá mais prazer do que alardeá-lo por todo o lado, sobretudo junto daqueles que, quase de certeza, o não receberam. Não há nada como marcar a diferença: ir ou não ir à Embaixada, eis a questão. Depois, no dia miraculado da recepção, saltitam de pessoa em pessoa, repletos, garantindo o máximo de visibilidade às suas egrégias e assaz convidadas pessoas. Quando, por uma razão qualquer ou por nenhuma razão em particular, houve uma recepção para que não foram convidados ou convidadas, ficam num desespero de ave ferida na asa, não largam o telefone, a quererem saber porquê, numa voz um bocadinho histérica, de amante abandonada. Sim, porque, no passado, tinham estado sempre "na lista". Terão sido "riscados" ou "riscadas" da "lista"? Quem foi o intriguista responsável pela erradicação? Sim, porque houve de certeza alguém mal intencionado, invejoso, que esteve por detrás daquela "intriga"! Para estas pessoas, a "Embaixada" é um lugar mágico, "a charmed place". É um mundo de mil e uma noites, de maravilhas insuspeitadas... Quando um embaixador deixa o posto, entram logo numa grande ansiedade: "Quem será o novo?" Babam-se, literalmente, de uma expectativa quase lasciva. Quando lhes dizia que ainda se não sabia, olhavam para mim, com ar de dúvida: "Sabe, mas não pode dizer..." E este "segredo", não desvelado, tornava-se, para elas, um grande motivo de emoção, de quase acarinhada ternura... Quando, por fim, era conhecido o nome do novo ocupante do posto, derramavam-se, sôfregos, compreensivelmente impacientes: "Quando chega? Como é ele? De onde vem?" Desfaleciam, literalmente, de curiosidade mal saciada. Antecipavam, mentalmente, a "recepção" em que seriam, finalmente, apresentados a Sua Excelência! A alguns, mais atrevidos, parecia-lhes que talvez fosse a ocasião de sugerir ao "novo" a oportunidade, a conveniência, a justiça de uma apetecida condecoraçãozinha..."

Não ouso dizer-lhes se, na minha opinião, as coisas são mesmo assim. Tendo servido em quatro das maiores embaixadas portuguesas - Luanda, Londres, Brasília e Paris -, onde essas situações podem ser mais frequentes, sou forçado a repetir a expressão clássica de Urquhart, na versão inglesa (não conheço a americana) da série "House of Cards": "You might think that. I couldn't possibly comment"...

quarta-feira, novembro 05, 2014

O ocaso de Obama

Depois das eleições de ontem, nas quais perdeu o controlo das duas câmaras parlamentares, o presidente Obama parte para os dois últimos anos do seu mandato numa posição de grande fragilidade. Sem maioria na Câmara dos Representantes e no Senado, dirigir a América é, historicamente, uma tarefa muito difícil para um presidente, que é agora reduzido a uma agenda minimalista e forçado a uma negociação permanente, e quase sempre frustrante, que debilitarão a imagem final do seu mandato.

O sistema americano foi desenhado com grande sabedoria, porque permite ao eleitorado, no "midterm" de um mandato presidencial, como que compensar, por uma "retificação" de parte do Senado, os equilíbrios prevalecentes nos dois anteriores anos. É uma espécie de desafio ao presidente eleito (ou reeleito): se os dois primeiros anos desse seu mandato agradarem ao eleitorado, ele poderá "premiá-lo" com uma representação favorável no Senado; se a avaliação for menos boa, os dois últimos anos poderão transformar-se num "calvário". É este último o destino de Obama.

Depois de Kennedy, nenhum presidente americano tinha criado tantas expetativas, na América e no mundo. As desilusões são sempre maiores quando partem de ilusões que acabam frustradas. Obama era o presidente dos EUA pós-Bush, a figura predestinada a mudar a imagem de um país que, com o seu antecessor, mostrara, ainda mais do que no passado, que o respeito pela ordem institucional internacional parava à porta dos seus interesses.

Obama provou, uma vez mais, que um presidente americano, mesmo com a força da sua legitimidade eleitoral própria, tem sempre à sua volta um colete de interesses e compromissos que é obrigado a respeitar e que, a cada dia que passa, a sua capacidade de os enfrentar, quando existe essa vontade, diminui e se esvai. Contrariamente à ideia de que um presidente negro poderia apaziguar um país fortemente dividido, raramente as clivagens internas estiveram tão acesas e radicalização político-partidária foi tão forte. E tudo isto não obstante o crescimento pós-crise ter surgido, o défice do Estado ter diminuído e a América ter entretanto mostrado uma pujança económica notável, suportada por uma nova autonomia energética que é a inveja do planeta.

No plano externo - o único que verdadeiramente nos importa - a imagem de Obama ficará sempre ligada às promessas que não cumpriu na questão de Guantanamo e à peça retórica que foi o seu célebre discurso do Cairo, sinais de boa vontade que lhe valeram um prémio Nobel da Paz que teve tanto de prematuro como de caricato. Mas, apesar de tudo, temos de ser justos: a América que Obama nos vai deixar compara bem com aquela que ele havia herdado de Bush. Verdade seja que era difícil fazer pior. 

O leão de Maputo

 
Em princípio, não havia razão para preocupações, mas ser sujeita a uma operação stop na madrugada de Maputo é sempre algo que cria alguma ansiedade a uma cidadã estrangeira. Nunca se sabe bem o estado de espírito prevalecente, àquelas altas horas, no seio das forças policiais e, por essa razão, quando mais rapidamente pudesse sair dali melhor seria, pensava ela, intimamente. A condutora e os seus amigos aguardaram assim, com algum nervosismo, a chegada do agente encarregado da fiscalização do seu carro. O passaporte, conjuntamente com a carta de condução, foram passados para as mãos do polícia, que os olhou atentamente, com ar grave. Até que um largo sorriso se iluminou, deixando à vista os dentes bem brancos, na cara escura que a noite adensava:
 
- Então é do Sporting?!
 
A condutora ficou siderada. De facto, era do Sporting. Mas como é que, por aqueles documentos, ele tinha adivinhado?
 
- É simples! Está aqui escrito: nascida em Alvalade. Só pode ser do Sporting, não é? Eu também sou!
 
A condutora, sportinguista a sério, escusou-se a revelar que o "Alvalade" que estava no passaporte era a freguesia de Lisboa onde tinha nascido, por um acaso, numa clínica então na moda. Isso nada tinha a ver com o estádio José de Alvalade, local histórico da prestigiada agremiação pela qual partilhava, com o polícia maputense, o mesmo fervor clubista. Mas há momentos em que tudo isso é irrelevante e esse era um deles. O Sporting jogara nessa noite, ela revelou mesmo ao agente o resultado feliz do jogo e foi nessa alegria comum que a operação stop foi ultrapassada, sem mais perda de tempo.  

"O lugar de Portugal"


Pequeno video sobre o evento.

terça-feira, novembro 04, 2014

PT

A propósito de uma tomada de posição conjunta de várias personalidades, que reclamam uma ação estatal para manter controlo português na Portugal Telecom - o que está a levar à insanidade de qualificar de "marxistas" figuras como Bagão Felix e Silva Peneda -, procura-se colar o declínio da empresa a um "excesso" de influência política, naturalmente dirigindo as baterias ao alvo mais apetecido do ano político cuja contagem degressiva agora começa: Sócrates e o último governo socialista.

Gostava só de lembrar que muitos dos ganhos de grandes empresas portuguesas foram conseguidos nos anos 90 graças à "guidance" política de outro governo socialista*, neste caso de António Guterres, que liderou a entrada em força de empresas nacionais nas privatizações no Brasil, país onde viriam a ganhar escala e a terem fortes lucros, mantendo-se algumas por lá ainda hoje, com vantagens e sem queixas. Nessa altura, não vi ninguém reclamar do "excesso" de Estado.

* Faço uma declaração de interesses: integrei esse governo

Invernias

A algumas pessoas deprime. A outras só aborrece. Quando é demais, também cansa. Mas uma boa chuvada, puxada a ventania, com algum frio, induz na vida um desafio, é uma estimulante e saudável contrariedade. Saem as gabardines, os sobretudos, os cachecóis, notamos a vareta estragada no guarda-chuva. Descem dos armários as camisolas, os pullovers, as meias de inverno. Com frio, dá mais vontade ficar em casa, já não sentimos remorsos pelo facto de estar sol lá fora e termos um trabalho para acabar. É claro que há o "downside": as constipações, as gripes, os engarrafamentos, a condução difícil, as humidades em casa. Mas já era demais, o calor morno que aí andava. O Verão não foi lá grande coisa, mas foi longo e estentido até ao fim de outubro. Começava a não ter graça comprar castanhas sem frio. Além disso, há um tempo para tudo. E, em Novembro, tem de haver frio. A mim, desconcertam-me muito os caprichos do tempo. E ele tem-nos cada vez mais.

O não de Timor-Leste

Não conheço com exatidão o que passou com os técnicos portugueses que foram intimados a sair de Timor-Leste. Não quero incorrer em juízos de valor precipitados sobre uma questão que afeta seriamente a normalidade das relações de Portugal com aquele país. Não quero crer que as autoridades timorenses tivessem escondido, até ao último instante, o seu desagrado com a prestação da cooperação portuguesa naquele setor. Não acredito que esse desagrado não tenha chegado, atempadamente, ao conhecimento das autoridades portuguesas. Não me passa pela cabeça que, se acaso fosse conhecido esse mal-estar, não tivessem sido feitas diligências, pelos canais e meios adequados, com vista a encontrar uma solução que não colocasse em causa o relacionamento bilateral. Não quero sequer imaginar que tenha havido uma má leitura de sinais que eventualmente possam ter sido do conhecimento do lado português. Não agrada a ninguém que se tenha chegado ao ponto das autoridades portuguesas terem de vir a terreiro com uma tomada de posição como a que foi há poucas horas foi assumida. Não é aceitável que, a haver quaisquer culpas do nosso lado, elas possam morrer sem par conhecido. Não consigo compreender, mas espero que rapidamente isto seja bem esclarecido, como é que uma relação de cooperação tão forte como a que existia entre Lisboa e Dili se pode ter degradado, subitamente, sem qualquer aviso prévio e sem que uma discreta diplomacia preventiva de bastidores tenha sido atempadamente posta no terreno. Não sei, mas acho que o país tem de saber. 

segunda-feira, novembro 03, 2014

Poder e encenação

 Dia 4 de novembro | 19 horas |  Salão Nobre | Entrada Livre
com Eduardo Lourenço (escritor e ensaísta) e Francisco Seixas da Costa (Embaixador)
Moderador: António José Teixeira (Diretor da SIC Notícias)
 
Desde sempre o poder se encenou, sobretudo o poder político. Em todos os sistemas ao longo da História, com a ajuda de técnicas próximas das do teatro, têm sido ensaiadas diferentes formas de encenação, em função da estrutura das sociedades e da especificidade da conjuntura histórica. Como é que os sistemas políticos se apresentam? Que instrumentos e meios de comunicação utilizam os detentores de poder político e os grupos de interesses para influenciarem a opinião pública relativamente aos seus objetivos? Todos os sistemas desenvolvem as suas próprias iconografias, as revoluções também. As ditaduras do século XX constituem claros exemplos de encenação política com o objetivo de manipular a opinião pública. Atualmente a legitimidade da política passa cada vez mais por processos de comunicação, pelo que a política se torna cada vez mais suscetível de encenação, levando à marginalização da realidade fora dos media. Mesmo em democracia, é o poder das imagens que impera, não o dos cidadãos.
 

Margarida Gouveia Fernandes
(Programadora dos Encontros Garrett)

Condecorações

A propósito da condecoração hoje atribuída pelo presidente da República a Durão Barroso, veio à baila o facto de Cavaco Silva não ter ainda condecorado José Sócrates, num gesto idêntico àquele que foi tido para com todos os chefes de governo, durante o regime democrático.

A observância dos ritos da liturgia civil é essencial às instituições, à sua preservação e à sua marca na História. As condecorações são uma forma de reconhecimento público a pessoas ou entidades que exerceram certas funções ou se distinguiram em determinada atividade, tida como relevante para a sociedade. Raramente a atribuição de uma condecoração é um gesto neutro, automático, oficioso. Normalmente, há nele uma certa dose de subjetividade, o que, não raramente, o torna pasto de polémica. Mas, por vezes, o arbítrio do gesto é atenuado pelo facto dele se colar a práticas que, de certo modo, se tornaram consuetudinárias.

Condecorar um cidadão português que, durante uma década, exerceu um dos mais altos cargos internacionais parece-me um ato da mais flagrante obviedade. Não está em causa um juízo de valor sobre o trabalho executado por Durão Barroso à frente da Comissão europeia. Esse é outro julgamento - e, no meu caso, já aqui o deixei expresso Trata-se de o país de onde é originário o titular de um cargo dessa importância querer sublinhar, com uma comenda pública, que não é indiferente a essa circunstância. Seria estranho para a Europa, que escolheu uma determinada pessoa para chefiar a sua mais importante instituição, ver o país da nacionalidade desse cidadão alhear-se do facto.

Posso presumir o que diriam os agora críticos da decisão de Cavaco Silva se acaso, no momento oportuno, António Guterres, ao sair de Alto Comissário das NU para os Refugiados, não viesse a merecer uma distinção pelo Estado Português. Ou se Vitor Constâncio, quando abandonar as elevadas funções de vice-presidente do Banco Central Europeu, não tiver um gesto de reconhecimento das autoridades do seu país. Infelizmente, Portugal não dispõe de muitos nomes que hajam merecido uma consagração internacional. Um país tem de ter sempre a grandeza de se afastar das avaliações conjunturais neste tipo de questões. E aos seus dirigentes é exigível sentido de Estado na sua ponderação.

Resta o tema José Sócrates. É um caso claramente diferente do de Durão Barroso. A prática consagrou que a todos os primeiros-ministros da era democrática é concedida a mais alta condecoração que pode ser entregue a alguém por serviços prestados ao país - a grã-cruz da Ordem de Cristo. Não estabelece quando é que esse gesto, que a lei não impõe mas que a tradição consagrou, deve ser assumido. 

Curiosamente, Eanes foi quem condecorou Pinto Balsemão, mesmo depois de anos de tensa convivência. Mas devo dizer que percebi quando Jorge Sampaio, no seu tempo de presidente, decidiu não ser ele a distinguir Santana Lopes, com quem tinha tido um conflito político muito sério. Acabou por ser Cavaco Silva a fazê-lo. Agora, Cavaco Silva não parece inclinado a assumir o gesto de condecorar José Sócrates, com quem a conflitualidade foi ainda mais grave. Posso admitir que o não faça, até porque presumo que seria algo contrangedor para o próprio José Sócrates receber a comenda das mãos de Cavaco Silva. O sucessor deste o fará. A mim, a quem foi atribuída, há mais de uma década, precisamente essa mesma condecoração, não me é confortável a ideia de que um antigo primeiro-ministro do meu país a não possua.

Nações Unidas

Depois de uma bem sucedida e longa campanha que, há dias, permitiu a Portugal ser eleito para o Conselho de Direitos do Homem da ONU, chega a notícia de uma expressiva votação que leva agora o nosso país, uma vez mais, ao Comité Económico e Social (Ecosoc) da organização.

Volto a sublinhar o que, a propósito da primeira vitória, aqui disse há dias: uma presença ativa nas instâncias multilaterais faz ganhar ao nosso país margem de manobra em outros "tabuleiros" negociais. Se apoiados em linhas de orientação política que estejam em consonância com as grandes preocupações internacionais, os nossos experientes diplomatas saberão utilizar estas posições como factor de prestígio para Portugal.

Quero felicitar vivamente os diplomatas que organizaram e levaram a bom porto esta campanha e, muito em especial, o embaixador Álvaro Mendonça e Moura, um dos mais qualificados profissionais das Necessidades, nosso representante permanente em Nova Iorque, o qual, com o embaixador Pedro Nuno Bártolo, que nos representa junto das organizações internacionais, em Genebra, havia já tido um papel essencial na nossa eleição para o Conselho dos Direitos do Homem. Naturalmente, o ministro Rui Machete merece igualmente ser sinceramente saudado por esse novo sucesso do ministério que dirige.

domingo, novembro 02, 2014

Parceria transatlântica

Há dias, fiz aqui notar que o surgimento, pela calada, de um tropismo liberal radical dentro do governo estava a colocar Portugal no lado mais extremado da negociação da Parceria Transatlântica entre a União Europeia e os EUA, contribuindo para um agravamento do fosso esquerda-direita nesse debate, numa matéria cuja importância virá sempre a requerer um consenso político interno alargado. Tratava-se de propugnar por uma instância de arbitragem que pudesse ultrapassar a jurisdição dos tribunais comuns dos Estados subscritores, como o argumento do reforço dos direitos dos investidores. Uma posição que nem sequer a Alemanha apoia. Dizem-me que o alarido provocado pelo assunto terá, entretanto, obrigado a um discreto puxão de orelhas de bom-senso. Mas nunca fiando... 
 
Hoje, o "Público" dedica ao assunto um dossiê clarificador. A esse propósito, e de forma reveladora da leviandade da posição portuguesa, o jornal transcreve este extrato do "The Economist", uma revista que, sem deixar de ser liberal, não perde, por essa razão, o sentido de responsabilidade que por cá parece faltar:
 
“Se a intenção é convencer o público de que os acordos internacionais de comércio são uma forma de enriquecer as multinacionais à custa dos cidadãos comuns, eis o que deve ser feito: dar um direito especial às empresas para recorrerem a um tribunal secreto, gerido por advogados extremamente bem pagos pelas empresas, para pedir compensações sempre que um governo aprova uma lei que, por assim dizer, desencoraja o fumo, protege o ambiente ou previne uma catástrofe nuclear.”
 
É preciso dizer mais?

Östalgie

 
Vi lembrado, há pouco, o excelente conceito de "östalgie", uma "trouvaille" vocabular que simboliza o sentimento de nostalgia que atravessa alguns setores minoritários alemães pelos tempos da Alemanha de Leste, a RDA. Espero que a televisão, neste dia de celebração da queda do Muro de Berlim, se lembre de repor o magnífico "Goodbye Lenin", o filme onde isso é retratado de forma magistral.

Em casa do meu avô materno, que terá ficado marcado pela tensão berlinense e pela forçada divisão da cidade, era preservada, desde essa altura, uma garrafa (cujo conteúdo desconheci por muito tempo) que apenas deveria ser aberta quando o "muro de Berlim" caísse. O meu avô morreu poucos anos depois e a garrafa andou, desde então, em bolandas, tendo ido parar a casa dos meus pais. Quando, em 1980, atravessei pela primeira vez o "checkpoint Charlie", para ir a Berlim Leste, lembrei-me da "garrafa do Muro", perguntando-me se algum dia a veria finalmente aberta.

O muro caiu, faz agora 25 anos. Tenho bem viva uma conversa telefónica com o meu pai nesse mesmo dia. Não me pareceu então excessivamente feliz com a unificação alemã, não porque tivesse a menor simpatia pelo regime de Leste (longe disso!), mas porque, como "aliadófilo" ferrenho que havia sido e como eterno desconfiado da bondade do poder europeu da Alemanha que continuava a ser, brincava por vezes com o dito atribuído a Mitterrand: "gosto tanto da Alemanha que prefiro ter duas..." Tenho, contudo, a certeza que, lá no fundo, se congratulava com a reconciliação europeia. Mas morreu sem a menor simpatia pela senhora Merkel...

Nesse Natal de 1989, por iniciativa minha, fomos à procura da garrafa. Era, afinal, um "riesling", um vinho branco alemão facilmente perecível, que só o otimismo do meu avô havia considerado poder manter-se degustável, talvez porque o muro se manteve de pé muito mais tempo do que ele esperava. Abrimos a garrafa e o vinho estava, como era de esperar, uma zurrapa intocável.

Na memória, podemos guardar, como na "östalgie", apenas o melhor do passado. Na prática, o tempo, inexoravelmente, faz-nos perder as pessoas e tudo transforma. Às vezes, embora nem sempre, para pior.

Vantagens do Halloween

 
Por algum tempo, vivi num prédio de apartamentos em Nova Iorque. Era um edifício de gente muito rica. Alguma saía de casa para o heliporto, para ir trabalhar. Nos melhores fins de semana, muitos partiam para os Hamptons ou para Martha's Vineyard, destinos de vilegiatura preferidos pela mais afluente burguesia americana, novaiorquina e não só. O meu estatuto de embaixador era uma garantia para ser aceite, embora ser representante diplomático de um país como Portugal não fosse necessariamente um "label" de prestígio. Com a família do meu colega esloveno, creio que éramos os únicos (verdadeiros) estrangeiros naquele prédio do Upper East Side de Manhattan. Aceites, mas sempre estranhos.

O primeiro grande choque que sofri, habituado a um mundo normal e iludido com a ideia da cordialidade natural (e, às vezes, até intrusiva) dos americanos, foi a relutância com que a maioria dos vizinhos respondia a um simples "Good morning!", à entrada da casa ou nos elevadores. As mais das vezes, não se lhes conseguia arrancar mais do que um simples "Hi!" e um esforçado esgar. Com o tempo, lá fomos conquistando uns sorrisos e, aqui ou ali, íamos já trocando algumas palavras, sobre o tempo ou sobre a neve e o tráfico.

Um dia, chegou o Halloween. Pela entrada do prédio, junto ao batalhão rotativo de porteiros que, 24 sobre 24 horas, asseguravam a segurança e permitiam o acesso aos andares (nos elevadores, o botão do nosso andar não funcionava antes de ser desbloqueado pela portaria), andavam crianças mascaradas, numa algazarra que humanizava aquele espaço impessoal. Ao final do dia, creio que pelo telefone, recebemos um pedido da portaria para que essas crianças pudessem ir ao nosso andar, para receberem, como era tradicional, rebuçados, bolos e coisas assim. E lá nos surgiu, arvorando máscaras e trajes do período, um bando alegre de miúdos, regalado com as ofertas que lhes fizemos. Por umas horas, o ambiente do prédio mudou.

Nas semanas seguintes, essa miudagem, quando se cruzava connosco na entrada ou no elevador, enchia-nos de "Hi!' e de "Hello!", abrindo o fácies snobe de alguns dos pais, muitos dos quais passaram a trocar, de modo sorridente, os "Good morning!" e os "How are you today?", dando finalmente um ar da sua graça. Vantagens do Halloween!

sábado, novembro 01, 2014

Estado (quase) islâmico

Foi há pouco. Tinha o carro parado, com motor a trabalhar, janelas abertas, à espera de uma pessoa. Era uma avenida sem ninguém, em Lisboa.
 
A rádio estava ligada na Antena 2. Era um programa sobre poesia, aparentemente um espetáculo público, com apresentação de um brasileiro. A certo ponto, o apresentador convidou, em francês, outra pessoa a ler um poema em árabe, "não porque alguém vá perceber, mas para sentirem o caráter melodioso da língua". Achei graça ao exercício, aumentei um pouco o som e, durante dois ou três minutos, ouvi a "lenga-lenga", de facto sonoramente bela, do que seria o tal poema.
 
Estava eu nisto entretido quando, no passeio ao lado, surgiram duas senhoras, bem idosas. Notei-lhes o olhar grave, desconfiado, ao passarem junto ao carro, ao ouvirem uma litania em árabe, ainda por cima num tom enfático, quase de proclamação. Hum...! Um carro com o motor a trabalhar, sem quase ninguém por perto, num local deserto de Lisboa, de onde saía uma voz árabe! Não pode ser boa coisa! Vi-as subirem a rua, cochichando uma para a outra, deitando, a medo, miradas repetidas para trás, talvez levando os meus óculos escuros à conta de disfarce. Chegaram à esquina seguinte, pararam, deitaram um último olhar severo e desapareceram. Terão ido chamar a polícia?  

Público & privado

Na sequência de um comentário colocado pelo "Feliciano da Mata" no post sobre a corrupção, sinto-me tentado a aqui colocar algumas ideias em forma simples.
 
Parece-me incontroverso que, para a sua economia crescer, Portugal precisa de mais investimento produtivo. Português ou estrangeiro. Há duas espécies de investimento: o público e o privado. (Bom, também há o privado que, afinal, é público - o chinês -, mas essa é apenas uma originalidade). Nos próximos anos, por via da impossibilidade de recurso a mais défice do Estado, o investimento público que nos resta são, na prática, os fundos europeus. É muito pouco. Por isso, para o país crescer, é necessário captar mais investimento privado que induza produção (para poder exportar), mais empregos e que gere lucros que seja possível tributar, para ajudar à receita orçamental para a execução das políticas públicas. E, também, para ajudar a pagarmos a dívida, porque somos gente de bem.
 
Para captar esse investimento privado - e há um difícil "mercado" internacional nesta matéria -, Portugal necessita de se posicionar melhor em determinadas insuficiências em áreas em que, em geral, os investidores atentam: fiscalidade, burocracia, corrupção e um conjunto muito variado de outros custos de contexto que é forçoso diminuir, e que sempre condicionam o destino desse dinheiro que por aí anda e que todos querem ver investido nos seus países. Contrariamente ao que alguns julgam (e temem), não é no mercado de trabalho e na sua flexibilidade que está hoje o "calcanhar de aquiles" da economia portuguesa. Se há, por exemplo. uma importante variável que os investidores estrangeiros nos apontam como essencial que evolua, esse é o (mau) funcionamento da nossa Justiça. 
 
Quero com isto dizer que diabolizar, como por aí se vê todos os dias, a ação das empresas e dos empresários privados pode fazer muito bem a um certo exorcismo esquerdista, a uma espécie de vingança histórica sobre a derrota das ideias que propugnavam por uma sociedade maioritariamente assente na economia pública. Essa sociedade acabou, não é reconstituível e o que há que garantir é que, num contexto de economia privada que é hoje, por muito que alguns não gostem, "the name of the game", são plenamente respeitados os direitos sociais das pessoas (na presunção de que os restantes estão protegidos), é assegurada uma sólida "safety net" pública (e não caritativa) para os excluídos da roda da sorte, são garantidos sistemas de previdência, de saúde e de ensino públicos, universais e de qualidade, isto é, é mantida uma forte e solidária rede de políticas públicas, com forte pendor social. 
 
Dito isto, isto é, que a dimensão do setor público da economia não tem condições de prevalecer, já não concordo com quantos defendem uma redução do Estado a uma função minimalista, uma espécie de "regulador", na ideia (salvífica e falsa) de que o mercado resolverá tudo. Não resolve, como já se viu e bem. Como também não resolve a ideia de privatizar "a eito" tudo aquilo que for público, por preconceito ideológico e liberalismo cego, não atentando ao seu valor estratégico para os interesses comuns do país. Por muitos anos que viva, nunca vou esquecer a "garantia" dada por alguém responsável a um grupo de empresários estrangeiros interessado em investir em Portugal (e, naturalmente, só revelo isto porque foi dito em público e sem qualquer pedido de reserva): "no final do atual processo de privatizações, o Estado não ficará com nada que dê lucro". 

Sitemeter

Há mais de uma semana, o Sitemeter, o contador de visitantes que estava acoplado ao blogue desde a sua criação, em fevereiro de 2009, por um qualquer mistério, deixou de dar resultados. 
 
Apresentava, na altura, o número que se vê na foto. Desapareceu, fez desaparecer mesmo os dados do Blogómetro. Não que isso importe muito, mas às vezes era curioso perceber a evolução das leituras.
 
Com a vida, aprendi uma coisa: o que não tem remédio, remediado está. Passemos à frente. Já lá está outro contador de visitantes, enquanto não se repõe outro Sitemeter. 

Livros

Não está fácil a minha vida com os livros.
 
Anteontem tive de faltar, como aqui registei, ao lançamento de mais um volume das memórias de Eugénio Lisboa. Tive imensa pena. 
 
À mesma hora, um prezado colega, o embaixador José Costa Arsénio, lançava o seu livro "A Satrapia do Kosovo". Pela mesma razão, não pude aceitar o convite que me formulou para estar no lançamento.

 
No dia 6 de novembro, outro colega, o embaixador Francisco Henriques da Silva, lança às 18.00 horas, na Sociedade de Geografia, um livro de que é co-autor: "Da Guiné Portuguesa à Guiné Bissau: um roteiro". Nesse dia, estou fora de Lisboa.


Ontem mesmo, concluí a leitura (e a escrita do prefácio) de um livro onde o meu caríssimo Henrique Antunes Ferreira junta algumas das suas memórias. O Henrique quase que se zangou comigo pelo atraso com que lhe enviei o prefácio... Mal ele sabe a quantidade de textos inconclusos que tenho entre mãos, parte deles já devidos a quem os demandou há algum tempo. Aqui fica a capa:


 
Até lá, vou ler o livro que a Teresa Nogueira Pinto acaba de publicar, "Um Genocídio de proximidade: justiça, poder e sobrevivência no Ruanda", um texto que nos traz uma importante memória de uma das grandes tragédia contemporâneas, cujas lições a comunidade internacional talvez não tenha aprendido.
 
 
 
As minhas últimas noites têm, entretanto, sido preenchidas pelo curiosíssimo volume que o arquiteto A. Campos Matos, figura maior do queirozianismo, acaba de publicar. "Diário Íntimo de Carlos da Maia (1890-1930)", uma viagem pelo mundo que o "herói" de "Os Maias" poderia ter percorrido no mundo convulso do Portugal de então.
 
 


Os livros perseguem-me. Ainda bem, confesso.

sexta-feira, outubro 31, 2014

Aviso à navegação!

 
Pela presente, ficam desde já avisados os useiros e vezeiros (e só esses, claro!) de que o "VIII Jantar anual da Mesa Dois" do bar Procópio terá lugar, impreterivelmente, na sexta-feira, dia 19 de dezembro, pelas 20 horas, num restaurante sobre o qual será prestada posterior (e pessoal) informação.
 
O responsável por este blogue, que acumula com a responsabilidade de organizador oficial perpétuo do repasto, tem ainda a informar que a lista dos convidados permanece a mesma desde a primeira hora, embora com as baixas que o criador, tristemente e por razões que nos ultrapassam, foi determinando, ao longo dos anos. O organizador reserva-se, no entanto, a possibilidade de vir a admitir a inclusão de novos nomes, na ponderada consideração de eventuais propostas que lhe venham a ser submetidas. Estes, porém, deverão obrigatoriamente ter feito um razoável tirocínio líquido pelos bancos da "dois", para cuja certificação se recorrerá, se necessário, à memória do Luís ou do Carlos. Casos mais "bicudos" serão submetidos à decisão irrecorrível da "sedona" Alice e da tutela moral da mesa, o dr. Nuno Brederode Santos. 

Corrupção

Tenho o maior respeito por quem se preocupa sinceramente com a corrupção e o tráfico político de interesses, que constituem fatores de degradação da confiança dos cidadãos no sistema político e de justiça e, no âmbito externo, prejudicam a imagem do país e afetam a sua atratividade para os investidores. Não se pode estar a pedir sacrifícios aos cidadãos e, paralelamente, permitir que alguns acumulem fortunas através de "arranjinhos" e meios desonestos.
 
Por essa razão, sempre que vejo figuras como Marinho Pinto ou Paulo Morais a denunciarem a corrupção na sociedade portuguesa, a minha primeira e automática reação tende a ser positiva. Porém, olhando com algum cuidado e sentido de responsabilidade para aquilo que dizem, raramente encontro elementos verdadeiramente palpáveis e prováveis (usando a expressão, não no sentido de plausíveis, mas no de serem passíveis de provas). O que quase sempre vejo nessas declarações, infelizmente, é uma colagem, fácil e demagógica à "vox populi", a generalizações, ao "diz-se", ao "toda a gente sabe, mas não se pode provar", o que é o modo mais fácil, populista, perigoso e injusto de abordar estas questões. Aqui ou ali, agarram pedaços de verdade e, com isso, tentam dar foros de credibilidade ao resto - e, nesse resto, enlameiam muitas vezes, com insinuações e seguidismo de suspeições mediáticas, gente honesta.
 
Nos últimos anos, fruto da situação de urgência financeira e das imensas dificuldades que esta acarreta para vida de muitos, a imprensa e a voz corrente desenvolvem uma muito maior atenção para tudo quanto se prenda com questões de dinheiro - salários, fortunas, gastos, privilégios, etc. É perfeitamente compreensível que isso assim ocorra, mas, em consequência disso, o país desenvolveu uma inédita cultura de inveja, de rejeição do sucesso, punindo a riqueza, mesmo a mais legítima. Não se pode estar, constantemente, a apelar a maior investimento privado, como fonte quase única do crescimento de que o país necessita, e, simultaneamente, espalhar a ideia subliminar de que quem enriquece, por mais legítimos que sejam os meios de quem o faz, é uma espécie de potencial criminoso. Sem par num passado recente, está hoje gerado um ambiente de desconfiança na iniciativa privada que favorece todas as teorias conspiratórias e que, a cada esquina, deteta vigarices, ilegalidade e compadrios. Algumas existem, claro, mas o facto de se tender a vislumbrá-las em praticamente tudo acaba por infirmar o argumento.
 
É uma pena que a sociedade civil não seja mais exigente com os partidos políticos nesta matéria, que os não obrigue a uma atitude séria sobre as medidas a implementar para restaurar a confiança pública na vontade do Estado de pôr cobro a este flagelo. Como? Não seria preciso "descobrir a pólvora". Bastaria atentar em legislação análoga estrangeira, proibir certas acumulações de cargos políticos com ligações económicas, dar às estruturas de investigação meios especializados para melhor lutar contra este tipo de crimes. Sem entrarmos numa "caça às bruxas", seria perfeitamente possível estruturar uma nova e mais exigente malha legal e regulatória. 
 
Porém, se o sistema político vier a demonstrar-se incapaz de afirmar determinação nesta matéria, o caminho fica aberto para que a demagogia populista faça entretanto o seu caminho. Os dois próximos atos eleitorais, tudo assim o indica, serão terreno privilegiado para a glória desse "justicialismo" que, sendo embora "de trazer por casa", pode vir a revelar-se muito deletério para a sociedade e para a democracia portuguesas.  

As curvas do mundo


Começam no dia 4 de Novembro, prolongando-se até 16 de dezembro, sempre às terças-feiras, as conversas "Falemos dos outros", organizadas por Fátima Pinheiro, que têm lugar, pelas 21.30 horas, na Casa-Museu Medeiros e Almeida, junto à rua Barata Salgueiro, próximo da Cinemateca Nacional e da Sociedade Nacional de Belas Artes.
 
No dia 25 de novembro (juro que a data não foi por acaso...), estarei por lá a discutir com Jaime Nogueira Pinto "As curvas do mundo". Antes e depois de nós há diálogos que prometem, como podem ler aqui.
 
Apareçam!
 
 

São três e meia da manhã...

... e eu vou deitar-me com as coisas assim. Logo veremos!