sábado, abril 05, 2014

Isto anda tudo ligado

"Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade."

(Excerto de "Isto anda tudo ligado" (Lisboa, 1970), do poeta e flaviense Eduardo Guerra Carneiro, que dedico ao comentador ARD)

sexta-feira, abril 04, 2014

Kumba Ialá

Morreu Kumba Ialá, antigo presidente da Guiné-Bissau.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do grupo "amigos da Guiné-Bissau". O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca (atual cônsul-geral do seu país no Porto), e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua expressiva vontade de mudança. Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas com as reticências face à sustentabilidade das políticas que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou entretanto a sensível questão da corrupção. Notei que Kumba Ialá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ele não rouba, não! - e dizia isto, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Ialá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com estas palavras, creio que só a intérprete que ia traduzindo as intervenções do presidente se inteirara do teor da comprometedora declaração. Contudo, a coreografia e o tom de Ialá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam a tradução.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as embaraçantes frases do presidente. E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government".

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

Em tempo: quando escrevi esta historieta, estava longe de pensar que me encontraria, logo dois dias depois, num almoço, com o meu querido amigo Gelson Fonseca, com quem me ri do episódio.

Educação diplomática

O "jet lag" não ajudava nada. Naquele primeiro dia em Seul, mais do que seguir o calendário de eventos daquele seminário, eu morria de cansaço. Mas o "dever" chamava-me: cabia-me co-presidir a um exercício que pretendia retirar, da experiência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, lições para a gestão das tensões na península da Coreia. Coordenava uma delegação multinacional ida de Viena, tendo como meu contraparte o secretário de Estado coreano dos Negócios Estrangeiros, velho amigo de outros postos.

O programa de uma das noites incluía assistir uma peça de teatro coreano, a que se seguia um jantar num restaurante típico. Estafado como estava, passei "pelas brasas" no espetáculo, aproveitando a redução das luzes. Chegados ao restaurante, um espaço tradicional, percebi que nos íamos sentar "à coreana", em almofadas e com as pernas cruzadas sob uma mesa baixa, o que iria pôr à prova os meus sacrificados joelhos. Mas, pronto!, era serviço!

Por feitio, não sou muito dado a experiências gastronómicas radicais e, muito em especial, sou habitualmente avesso a culinárias étnicas. Por isso, à vista dos pratos locais, fui fazendo uma seleção criteriosa sobre aquilo que neles me apetecia comer. Até que chegou o prato principal. Nunca consigo recordar o que era; só sei que era algo "sinistro", pelo cheiro e pela prova. Com alguma arte, fui afastando a comida pelo prato, enquanto alimentava a conversa com o meu contraparte, sentado à minha frente. A certo passo, notando que eu já não comia e muito do que fora servido já estava disperso, o anfitrião coreano perguntou, preocupado:

- Não gosta da comida? 

Senti-me culpado pelo facto de não estar a corresponder à sua gentileza, pelo que me saiu qualquer coisa como isto:

- De forma nenhuma! Estava muito bom! Gostei imenso, mas já acabei.

O que eu fui dizer! O meu amigo coreano, temeroso que eu não tivesse ficado saciado, e apoiado no meu pronto elogio à sua comida nacional, logo mandou vir para mim uma nova dose, idêntica àquela que eu tinha dispersado com tanto cuidado pelo prato. E lá tive eu que comer aquela mistela, desta vez com escassa capacidade de disfarce. Foi uma noite bem penosa, confesso! A educação diplomática, às vezes, tem um elevado preço.

quinta-feira, abril 03, 2014

Novo governo francês

Não vou aqui entrar numa análise personalizada do novo executivo francês, chefiado por Manuel Valls, há pouco anunciado. Seria desinteressante para a maioria dos leitores deste blogue. Mas sempre direi que, tal como o anterior, ele representa uma calibrada representação das várias tendências e "baronatos", num modelo de "apaisement" que vai muito com o sentimento de François Hollande. Afinal de contas, não devemos esquecer que, na ordem constitucional francesa, é o presidente da República quem preside aos Conselhos de ministros, pelo que o governo é "o dele".

Valls não vai ter tarefa fácil, com os Ecologistas fora do executivo, ainda mais livres para o criticarem como vem sendo habitual, com a ala esquerda reforçada ou confirmada em algumas posições importantes (Economia, Educação, Justiça). Os "hollandais" de raíz garantem ou reforçam terrenos decisivos (Finanças, Defesa, Agricultura, Interior, Trabalho), com Ségolène Royale a obter uma pasta importante mas complexa (Ambiente e Energia) e duas suas antigas colaboradoras a preservarem áreas socialmente relevantes (Igualdade e Cultura). Resta alguma continuidade e a fusão de pastas, bem como certas promoções. 

"Much ado about nothing", apetece-me dizer, citando Shakespeare, ao verificar a composição deste novo governo. Por razões óbvias, não ouso traduzir o título da obra anglosaxónica por "a montanha pariu um rato"...

quarta-feira, abril 02, 2014

Escolher

Aqui na Polónia, fiz hoje parte de um pequeno painel de seleção para emprego de jovens com idade inferior a 26 anos, todos com elevadas qualificações académicas, na esmagadora maioria dos casos já com alguma experiência, obtida através de estágios profissionais ou de outro tipo de atividade pós-académica. Era um grupo de escassas dezenas de pessoas, que representavam menos de 1% dos candidatos originais a ingressar na empresa em que trabalho. Dominavam as mulheres. A seleção durou um dia completo e não foi nada fácil. No final, o grupo ficou naturalmente reduzido.

Sinto sempre um sentimento estranho quando intervenho neste tipo de seleção - e isso já me aconteceu no passado, noutros contextos. As coisas são relativamente fáceis quando se trata dos melhores candidatos ou daqueles cuja reprovação não suscita grandes dúvidas. Há apenas que saber descontar o efeito "show off" e as limitações provocadas por um conjuntural stresse. Os problemas situam-se na "zona cinzenta", que abrange quantos nos "dividem". Por mais questões que coloquemos, por muito que os ouçamos, individualmente ou interagindo em grupo, ficamos na incerteza se contribuir para o seu recrutamento é um erro nosso que a empresa vai ter de pagar ou se, ao invés, não será injusto estarmos a arruinar todo o seu esforço. É que um simples "não" de qualquer membro do júri é, neste contexto, suficiente para afastar um candidato.

O que de fascinante teve este exercício foi a possibilidade de conversar, por horas, com pessoas que representam uma nova geração, que nos ajudam a perceber melhor o que é a Polónia de hoje e os anseios daqueles que irão integrar as suas elites. Foi muito interessante verificar a matriz cosmopolita destes jovens, desde logo traduzida no inglês em que os exames se processaram, a importância que para eles teve o programa Erasmus, a leitura diversa que fazem dos vários mundos exteriores com que contactaram e, muito em especial, o modo como olham a construção das suas carreiras, a grande aposta que fazem na sua valorização pessoal, a qual é, para muitos deles, bem mais relevante que a obtenção de um mero emprego. No final, ficamos felizes pelos que escolhemos, mas acabamos sempre o exercício com alguma dúvida relativamente a quantos mandámos de volta para o mercado de trabalho.

terça-feira, abril 01, 2014

As Europas

No "lounge" da Lufthansa onde me encontro, no aeroporto de Munique, estamos, à vontade, mais de meia centena de pessoas. Não se ouve uma mosca, ou melhor, poder-se-ia ouvir alguma, se acaso as houvesse por aqui. O ruído das rodas das malas, toques de talheres ou de loiça, passos no soalho de madeira e o folhear de jornais é quase tudo o que surge como fundo. Estou aqui há quase uma hora e, acreditem!, nem um único telemóvel tocou alto. A esmagadora maioria dos olhos não encara os outros, concentra-se nos laptop, nos tablet ou no visor dos smartphones. Quem fala, fala baixo, como se estivesse numa biblioteca, condicionando os outros a proceder de forma idêntica. Até duas crianças se silenciam em frente de dois iPads. Há minutos, uma japonesa deu uma leve gargalhada e logo suscitou teutónicos sobrolhos. Não sei se gosto disto, mas imagino que quem gosta dificilmente deve aceitar o que nós somos.

Viagem


Paulo Barbosa (1945-2014)

Quando somos novos, a diferença de idades conta muito. Lembro-me do Paulo Barbosa, nos tempos de juventude em que Viana do Castelo era destino invariável dos meus agostos. Mas nunca falámos, por essa época, separados pela lógica etária dos grupos de amigos.

Só vim a conhecer o Paulo já na "carreira", para onde havia entrado sete anos antes de mim. A geografia nunca nos aproximou muito, mas tínhamos uma relação pessoal muito agradável. O Paulo era um homem sereno, elegante, com uma ironia fina, decantada de uma leitura amena da vida, que compatibilizou com um percurso profissional seguro e de mérito. 

O Paulo Barbosa morreu no passado sábado. Sabia-o bastante doente, mas não esperava vê-lo desaparecer tão cedo. 

A escolha de Valls

Há um novo tempo na política francesa. A nomeação de Manuel Valls, o enérgico ministro do Interior, que vinha a seduzir alguns setores da direita pela frontalidade do seu discurso securitário, traz para a linha dianteira da ação governativa um "outro" Partido Socialista. Alguns lembrarão, nos próximos dias, que Valls chegou a propôr a mudança do nome do partido, por considerar que o rótulo "socialista" podia ser inconveniente...

Desde logo, fica confirmada, com esta designação, a recente mudança de direção levada a cabo por François Hollande, ao escolher o empresariado como o seu parceiro para o relançamento da economia francesa. Valls tem um pendor liberal (embora estas coisas, em França, devam ser contextualizadas) e sentir-se-á seguramente confortável com esta linha de ação. Assim, na economia, não deve esperar-se muito de novo.

Mas se esta escolha pode "cair bem" num eleitorado mais conservador, ela também poderá vir a ter efeitos divisivos no seio do PSF, cuja ala esquerda já tinha reagido com desagrado ao pacote de medidas anunciado, tido como demasiado "social-democrata" e que, de certo modo, confronta a memória socialista tradicional. Por isso, vai ser interessante perceber que "compensações" estarão preparadas para a esquerda do partido, de que a composição do novo governo será a resposta. Havia a sensação de que Valls tinha feito com algumas figuras deste setor uma aliança tática para a aproximação de uma nova geração ao poder. Veremos como este passo sobrevive. A questão do "nacionalismo económico", que inclui a temática europeia, vai estar, com certeza, em alguma evidência. Valls pode encontrar por aqui um terreno para uma certa ligação à esquerda, tanto mais que o seu entusiasmo pelo tema europeu nunca foi excessivo. Curiosamente, isto está longe de ser contraditório com a prioridade a dar ao mundo das empresas, dada a matriz protecionista do país.

Resta saber qual o futuro papel de Hollande. Com a saída de Ayrault e a nomeação de um primeiro-ministro "a pedido" do país, o presidente perde muito do pouco espaço de manobra que já tinha. Valls vai ser um primeiro-ministro enérgico e visível, o que quase sempre se tem mostrado menos compatível com o presidencialismo da V República. Se tiver sucesso, será ele, com toda a certeza, a tentar a ascensão ao Eliseu em 2017, em nome dos socialistas. Se falhar, depois de experimentada esta que era a cartada mais à direita que os socialistas tinham na mão, o caminho para o regresso ao poder dos conservadores franceses fica definitivamente aberto.

Meu Caro

Longe vão esses dias de 2010 em que você, aqui por Paris, me revelava, entre duas “demi”, a angústia matinal que sentia ao verificar, no Financial Times, o contínuo alargamento dos “spreads” dos “bonds” portugueses. Conhecemo-nos numa operação de “charme” que as suas autoridades por essa época organizaram, para explicar as medidas que tomavam para controlar os indicadores macro-económicos. Para si, eu fazia parte dos “mercados” que era necessário convencer. Para mim, você era o embaixador de um país simpático que lutava para se manter à tona, numa tormenta que não controlava e que revelava cruelmente algumas das suas fragilidades endémicas. Passámos a ver-nos com alguma regularidade.

As coisas complicaram-se, entretanto. A “troika” chegou aí e vi o seu lamento em face da “injustiça” das agências de notação, quando elas “puniam” Portugal porque fazia exatamente aquilo que lhe tinham pedido para fazer. Recordo-me de lhe ter dito que os diabolizados “mercados” não eram uma entidade a que fosse possível exigir racionalidade, muito menos justiça, porque a sua lógica era apenas fazer ganhar dinheiro.

Portugal passou, entretanto, por uma cura de rigor financeiro nunca antes vista. Lembro-me de lhe ter dito da minha admiração pelo caráter estoico do seu povo. Você fornecia-me números sobre o ajustamento já feito, na secreta esperança que eles pudessem animar a perspetiva dos “mercados” sobre o seu país. Pelas conversas que então teve comigo, imagino o que outros seus colegas devem ter feito pelo mundo, para mostrar o vosso esforço nacional.

Antes da sua partida de Paris, e quando lhe notei, a uma mesa do Flore, que ia regressar à “cidade branca”, nome que Alain Tanner chamara a Lisboa, você reagiu: Tanner estava errado, Lisboa era a cidade das cores e eu teria oportunidade de verificar isso, quando o fosse visitar. Tinha razão. Confirmei-o consigo, na semana passada, entre duas “imperiais”, na esplanada “cliché” da Brasileira, sob um sol quase obsceno em Março. Frente a uma loja simbolicamente chamada “Paris em Lisboa”, dei-lhe nota da leitura que, pela Europa, se vai fazendo do vosso processo de ajustamento, das perplexidades que subsistem quanto à sustentabilidade do “retrato” que hoje apresentam e quanto tudo dependerá, no essencial, da estabilização de uma resposta europeia institucionalizada.

Você falou-me, preocupado, da quase impossibilidade de manter o país, por muito mais tempo, sob o peso sobre-humano de austeridade. A propósito, pediu a minha opinião – ironizou, a opinião “dos mercados” – sobre um “manifesto”, que entre vós tinha tido grande impacto, subscrito por gente relevante, que ia desde a direita à extrema- esquerda, sobre a necessidade de encontrar meios de aligeirar o modo de pagamento da vossa dívida pública. Traduziu-me mesmo o essencial do texto.

Agora, de volta a Paris, tendo refletido sobre o assunto, quero felicitá-lo: o “manifesto” é “música” para os ouvidos dos mercados. Quando muitos esperariam que a esquerda portuguesa, e eventualmente alguma direita soberanista, defendessem, pura e simplesmente, o não pagamento de parte da dívida, conseguir juntar todos esses setores numa solene posição comum, que apenas disputa as taxas de juro e as maturidades, constitui um ato de grande responsabilidade. Parabéns! Eu não posso falar pelos “mercados”, mas posso garantir-lhe que eles estarão agora muito mais serenos sobre o que poderão ser as consequências de uma mudança política em Portugal. Ou uma mudança de “cores”, como você diria!

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Hermano Sanches Ruivo

Hermano Sanches Ruivo foi reeleito Conselheiro na "Mairie" de Paris. Conheci-o em 1996, quando Eduardo Prado Coelho me convenceu a ir a Paris para apoiar uma iniciativa da "Cap Magellan", uma estrutura de jovens portugueses que dava os primeiros passos no complexo mundo do associativismo em França, que Hermano já então liderava.

Com uma forte determinação, Hermano Sanches Ruivo tem feito um caminho muito interessante na defesa da especificidade portuguesa no quadro do sistema político francês. É hoje a mais relevante figura dentre os cidadãos de origem portuguesa envolvidos na política francesa. 

Um forte abraço, Hermano!

França

Manuel Valls foi ontem nomeado primeiro-ministro de França. Recordo um texto que aqui publiquei há cerca de ano e meio:

Ontem, com um grupo de colegas, almocei com o novo ministro do Interior francês, Manuel Valls. Nasceu em Barcelona há 50 anos e tinha já 20 anos quando adquiriu, por naturalização, a nacionalidade francesa. Ocupa hoje um dos postos mais delicados do executivo da França, precisamente aquele que tem a seu cargo a questão dos direitos dos estrangeiros e a gestão dos fluxos migratórios.

Dei comigo a pensar se isto seria possível entre nós, se um estrangeiro que se tivesse naturalizado português no fim da adolescência seria aceite para ocupar um cargo de ministro, em especial numa pasta com esta sensibilidade específica. Como, já há meses, me tinha interrogado quando à facilidade com que a França conviveu com a candidatura à presidência da República de Eva Joly, uma norueguesa que, com 18 anos, veio trabalhar como "au pair" para Paris. Ou como os franceses acham natural que um cidadão como Daniel Cohn-Bendit, nascido em França mas apátrida até aos 14 anos, que, depois, optou pela nacionalidade alemã, deliberadamente para não cumprir o serviço militar neste país, tendo posteriormente dirigido a subversão estudantil no maio de 1968, seja hoje deputado europeu eleito nas listas francesas e uma das figuras cimeiras do partido ecologista.

Esta abertura da França àqueles que enriquecem a sua diversidade é uma das mais nobres marcas desta sociedade.

segunda-feira, março 31, 2014

Coisas de casal

Tinhamos convidado o casal para jantar. Ele era bastante mais velho do que ela, mas ambos eram muitos divertidos. Tinham feito um simpático jantar quando chegámos àquele posto diplomático, que nos permitiu conhecer, numa só ocasião, uma imensidão de gente interessante. Tinham uma moradia deslumbrante e recordarei para sempre as dezenas de convidados à volta de uma piscina interior iluminada, com uma vista magnífica sobre a cidade. Eram gente desafogada na vida, ambos profissionais com carreiras estabilizadas, cada um vindo de anteriores casamentos.

Para o jantar de retribuição que organizámos convidámos alguns amigos que sabíamos comuns e outros que com eles eram compatíveis. Mas a ocasião era em honra desse casal. Por isso, não foi sem alguma insatisfação que, na antevéspera, recebemos a indicação de que ele viria sozinho ao jantar. Mas, como há muito aprendi, "o que não tem remédio remediado está".

À hora do jantar, o convidado de honra não aparecia. Não era o estilo habitual dele, homem rigoroso, educado e muito atento a pormenores. Chegou, finalmente, com mais de meia hora de atraso.

- Então, já sei que a sua mulher não pôde vir, lancei eu para início de conversa, quando o fui receber à porta.

- Pois é! Aliás, é precisamente por causa dela que chego atrasado, pelo que lhe peço desculpa.

E, antes que eu lhe dissesse que isso não tinha a menor importância, "deixou cair", em tom de nota lateral, secundária:

- É que me atrasei a assinar os papéis de divórcio, papeladas, você sabe como é...

Não sei, mas imagino. 

domingo, março 30, 2014

Os encontros da política

Ontem, passei grande parte do dia em "trabalhos" de uma estimável Confraria de enófilos e gastrónomos. Como sempre acontece nestas ocasiões, na mesa onde abanquei fiz conhecimento com pessoas que nunca antes tinha cruzado. A conversa foi solta, como não podia deixar de ser, mas teve a saudável caraterística de fugirmos, com naturalidade, às temáticas potencialmente mais conflituais: não se falou de política. 

Evitar abordar temas de política e de religião - noutros meios acrescentar-se-ia à lista a saúde, questões de dinheiro e opinar sobre pessoas ausentes - é um ato de bom senso a qualquer mesa, quando na presença de gente que não conhecemos ou conhecemos menos bem. Há pessoas mais sensíveis face às suas convicções e uma ocasião pode ficar estragada se não soubermos preservar o respeito estrito pelo que os outros pensam. Já assisti a cenas bem desagradáveis neste domínio e, em duas ou três ocasiões, eu próprio cometi erros de que me arrependo.

Outras ocasiões, contudo, convocam precisamente a identificação social da opinião politica. Imediatamente após o 25 de abril, cruzei, numa rua de Vila Real, um colega de liceu que já não via há muitos anos. Demos fortes abraços, lembrámos algumas histórias antigas e perguntámos por conhecidos comuns. Foi uma daquelas conversas típicas destes reencontros, que têm substância para os primeiros 10 a 15 minutos, mas que se esgotam depois rapidamente, por falta de temas, devido ao facto dos mundos de cada um terem quase sempre limitados pontos de contacto.

Convém lembrar que se viviam, por esses dias, tempos ideológicos muito intensos. Muitos portugueses tinham despertado subitamente para a coisa política, assumindo-se face ao vasto leque de opções partidárias que a Revolução abrira. Esse meu amigo não escondeu a sua curiosidade sobre o lugar ideológico onde eu "estaria" e perguntou:

- Olha lá! E nas políticas, por onde andas? Mais às esquerdas ou mais às direitas?

Achei divertida a "fórmula" utilizada, tendo respondido com a verdade. De facto, logo concluímos que não andávamos pelas mesmas lateralizações ideológicas. Mas continuámos bons amigos.

sexta-feira, março 28, 2014

Tua

Há poucas horas, ao passar pelas obras da barragem na foz do rio Tua, que tanta controvérsia provocaram há cerca de dois anos, lembrei-me de um episódio comigo ocorrido em São Petersburgo, em Julho de 2012, aquando da reunião do Comité do Património Mundial encarregado de discutir a compatibilidade do prosseguimento daquela obra com o estatuto de "património mundial" do Alto Douro Vinhateiro. 

A mim, como embaixador junto da UNESCO, cabia-me defender naquela reunião, com base nas instruções recebidas, a continuidade da construção da barragem. Para tal, muni-me de todos os elementos técnicos disponíveis, tendo solicitado à empresa proprietária da barragem que enviasse à reunião um especialista qualificado, que me pudesse apoiar nas "alegações", durante o longo debate que então teve lugar. Era importante podermos ser totalmente transparentes sobre os trabalhos a executar.

Na altura em que a questão começou a ser discutida, pedi a esse técnico para se sentar a meu lado. Ao longo das minhas intervenções, solicitei-lhe esclarecimentos que me permitissem responder a questões colocadas, algumas delas de elevada tecnicidade. O ambiente era tenso, nada estava adquirido à partida, a posição de algumas entidades da UNESCO, bem como de certas delegações nacionais, por mais de uma vez ameaçou levar o sentido final da decisão para áreas distintas daquelas que eu tinha a obrigação de preservar. 

É nessas ocasiões negociais que o bom humor nos ajuda a "dessetressar". A certo ponto, uma das questões suscitadas prendia-se com o impacto visual da barragem. As alternativas não eram muitas, para além da possível modulação da cor da barragem. Foi então que, com um ar sério, e como se quisesse jogar essa hipótese no terreno negocial, me voltei para o qualificado técnico que me acompanhava e perguntei:

- Diga-me uma coisa, senhor engenheiro: e se avançássemos com a hipótese da barragem ser em vidro grosso, transparente, com a possibilidade de se verem os peixes?

O engenheiro achou que eu tinha ensandecido, arregalou os olhos, temeroso que a minha "loucura" se transformasse em proposta, e balbuciou:

- Em vidro, senhor embaixador?! Isso não pode ser! O vidro não aguenta a pressão da água, a barragem tem de ser em cimento!

Lá expliquei que não falava a sério... Com a graça, diminuí a tensão que nos atravessava e continuei a "batalha", que acabou por "sorrir às nossas cores", como se diz na bola.

A verdade mutável

Quantas pessoas, ao ouvirem ontem o ministro da Presidência afirmar que "não haverá reduções adicionais do rendimento dos reformados em Portugal", acreditaram, por um segundo, que isso pudesse corresponder à realidade? 

A palavra do Estado está hoje gasta, como nunca esteve, em Portugal. Ninguém, com um mínimo de bom senso, concede o menor crédito a uma garantia dada pelo primeiro-ministro ou por qualquer ministro, porque o justificativo da urgência financeira tem as costas largas para os transformar, dia após dia, em seguidores fiéis de Pimenta Machado, o antigo presidente do Vitória de Guimarães, que consagrou a expressão "o que é verdade hoje pode ser mentira amanhã".

Não sei se este governo se dá conta de quanto isso prejudica a imagem de seriedade do Estado, que lhe cumpre gerir. Podemos imaginar que isso lhe importe pouco, porquanto tem dado mostras de que a integridade da palavra pública não lhe interessa muito. Mas os efeitos deste comportamento, a prazo, são altamente danosos na relação de confiança que é essencial existir entre o Estado e os cidadãos. Hoje, todos nos "defendemos" do Estado, que sentimos ocupado por pessoas que detestam a máquina pública e, por essa razão, não têm o menor pejo em contribuir para o seu desprestígio.

Se pensarmos bem, chegou-se ao cúmulo de uma relação contratual entre dois privados, tutelada pela lei e gerida pela força dos tribunais, ser hoje bem mais sólida do que a relação que o Estado, suposto defensor do interesse comum, mantém com os seus cidadãos. Se há um objetivo que uma qualquer alternativa política deve impor a si mesma será tentar restituir aos cidadãos um mínimo de seriedade, de respeito pela palavra dada, enfim, de ética pública.

Diplomacia irónica

A discussão ia tensa, naquela reunião na União Europeia, nos anos 90. O embaixador belga, colocado em minoria numa questão que considerava essencial, reagiu com firmeza:

- Tant que la Belgique soit la Belgique, on n'acceptera pas ça!

O sorriso com que aquele seu colega, de um país vizinho, useiro da mesma língua, ouviu a frase, prenunciava uma resposta à altura. E ela veio, mordaz, jogando implicitamente com a conflitualidade interna belga, que ciclicamente ameaça a unidade do país:

- Alors, c'est pas grave, ça va pas prendre beaucoup de temps...

quinta-feira, março 27, 2014

A notação das agências

Há pouco, enquanto redigia um texto para um jornal, lembrei-me de uma história, que tinha esquecida na minha memória. Ela aí vai.

Estávamos em julho de 2011. O novo governo português havia tomado posse há cerca de duas semanas. O "memorando de entendimento" com a "troika" estava no início do seu processo de implementação. As agências de notação, reagindo ao anúncio das primeiras medidas, haviam, umas após as outras, e para surpresa de muitos, levado a cabo um "downgrading" de Portugal.

Um dia, na minha qualidade de embaixador em Paris, "puxei da pena" e decidi publicar no mais importante diário económico francês, o "Les Echos", um artigo (leia aqui a versão original e aqui a tradução) em que contestava as agências e procurava, entre outras coisas, sublinhar o que me parecia ser a contradição entre o início do processo de ajustamento e a sua decisão de, nesse momento, baixar a classificação do país, precisamente na véspera de uma ida aos mercados para "reciclar" a nossa dívida. Era uma época algo angustiante, em que eu ia dizendo mais ou menos o mesmo a todas as televisões e rádios a que conseguia fazer chegar a voz oficial portuguesa em França. Sem pedir quaisquer instruções a Lisboa, diga-se.

Num desses dias, fui desafiado a debater numa importante rádio e televisão noticiosa - já não sei se foi a BFM ou a LCI - com um representante da "Standards & Poor's". Por um instante, hesitei em aceitar o convite, dada a dúvida de estar à altura da tecnicidade do debate. Mas aceitei o risco, porque temia que a "falta de comparência" deixasse o homem da agência sem contraditório. O debate acabou por ser sereno e civilizado. A certo passo, confrontado por mim com a questão do facto de Portugal estar a cumprir precisamente aquilo que a comunidade internacional lhe pedira e a estranha atitude das agências de notação, o meu interlocutor foi muito claro: "É evidente que nós achamos positivo que Portugal esteja a corresponder, desde a primeira hora, àquilo que o memorando exige. Mas não nos compete avaliar a vossa vontade política e mesmo os eventuais efeitos, a prazo, da "receita" que vai ser aplicada ao longo dos próximos três anos. Nós avaliamos as consequências imediatas das medidas que agora vão ser postas em prática na vossa economia. E essas medidas, indo ou não no caminho certo, têm agora um efeito recessivo, porque contraem o mercado interno e afetam o crescimento económico. Esse é o mercado que avaliamos".

A partir desse dia, passei a perceber melhor as agências de notação e a fazer uma leitura um pouco mais sofisticada dos seus "humores".

quarta-feira, março 26, 2014

A diplomacia do Brasil

O "Público" insere hoje um artigo de Adriana Erthal Abdnur sobre a política externa brasileira, que julgo deveria merecer alguma reflexão. Nesse texto, é sublinhado que o Brasil se afasta cada vez mais de uma agenda "ocidental", de que o caso mais recente é a sua rejeição das sanções à Rússia, por virtude da intervenção na Crimeia. Essa posição, na perspetiva da articulista, culminaria uma deriva "sulista" que, cada vez mais, marca a agenda do Itamaraty.

Há muitos anos que reflito sobre isto e digo aos meus amigos brasileiros que eles estão a cumular dois obstáculos à sua mais do que justa reivindicação para acederem a um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

O primeiro obstáculo vem dos países do Norte. O alargamento do CSNU a novos países do Sul (consideremos "do Sul" a China e a Rússia) só poderá ter lugar se e quando tal inclusão se fizer de molde a não desequilibrar o atual sentido tendencial de voto no seio do Conselho. Para ser mais claro: só entrará para o CSNU um país do Sul que, no limite, dê garantias sólidas de que manterá uma orientação pelo menos neutral face à conjugação "ocidental" de interesses representada pelos EUA, Reino Unido e França. É injusto? É, mas é assim. Ora, a "excessiva" coreografia da diplomacia brasileira, que já deu sinais "negativos" quanto à questão nuclear no Irão e agora se indicia crítica na sensível questão ucraniana, funciona em claro desfavor das ambições do Brasil.

Mas o Brasil tem também "amigos de Peniche" nos restantes membros do Conselho. Rússia e China estão muito pouco interessados em deixar de ser os únicos a "representar" o Sul neste âmbito, com tudo o que significa de influência junto do "grupo dos 77" - para simplificar, os antigos "países não alinhados". Moscovo pode ter ficado grata com o gesto de Brasília, mas isso nem sequer lhe garante a boa vontade de Pequim. Talvez antes pelo contrário.

Não obstante o esforço voluntarista feito na elevação da sua voz diplomática um pouco por todo o mundo, o trabalho notável na Organização Mundial de Comércio e outras agências multilaterais, a sua constante atenção às operações de paz da ONU, o seu cuidado com as diversas agendas regionais (América do Sul, mas também Médio Oriente e outras), creio que o Brasil tem hoje à sua frente alguns obstáculos sérios nesse seu objetivo de ganhar a consagração institucional suprema à escala global. 

Um amigo diplomata brasileiro, muito crítico da atual linha política, dizia-me, já há anos, que o Brasil mantinha uma "diplomacia adolescente" - pela sua excessiva ambição, pela sua frequente precipitação, pela ânsia de pretender "ir a todas". Ele era capaz de ter alguma razão, embora eu considere que a "juventude" não é nada que se não cure com o tempo.

E, já agora, uma nota de sentido egoísta: Portugal tem tudo a ganhar e nada a perder com uma "subida" do Brasil na escala global das nações. Um dia posso explicar isto com mais pormenor, mas parece-me uma evidência.

Um debate europeu?

Em tese, percebe-se a ideia há dias adiantada pelo presidente da República no sentido da campanha para o Parlamento europeu dever ser aproveitada para um debate sereno sobre os caminhos futuros da Europa. Num mundo ideal, assim seria. Mas o chefe do Estado não desconhecerá que a temática europeia, em muitos aspetos, faz já hoje parte da política "interna" e que há uma imbricação quase inevitável entre aquilo que é do debate europeu e aquilo que releva da nossa política nacional. Eu diria mesmo mais: nunca como hoje as duas coisas estiveram tão ligadas e, entre nós, o processo de ajustamento ajudou a "meter tudo no mesmo saco". Se acaso os partidos da oposição à atual maioria se resignassem a seguir o conselho do presidente, estariam a desperdiçar um ensejo para contestar, precisamente, o que tem sido a atitude (e reparem que eu não digo "a política") dessa mesma maioria no terreno europeu, com consequências de grande monta no plano das políticas públicas internas. Ora isto é impensável, pelo que a campanha para as eleições europeias não pode senão ser um capítulo mais da luta política interna, tentando dar ao eleitorado uma primeira perspetiva daquilo que terá de ser decidido em 2015. Ou mesmo antes desse ano, se o chefe de Estado quiser entender dever tirar ilações, também elas extensivas mas porventura clarificadoras, daquilo que se vai passar no dia 25 de maio. O país do pós-troika ficaria bem melhor servido se os nossos credores externos pudessem beneficiar, desde já, de uma clarificação, que se torna urgente, do nosso quadro político. Para ser mais claro: deveria haver eleições legislativas tão cedo quanto possível. Recorde-se que o argumento da importância do cumprimento da legislatura foi quebrado pelo próprio presidente em julho do ano passado, quando estimulou a patética "semana do consenso", com a ideia de eleições antecipadas em meados deste ano. Se os resultados de 25 de maio mostrarem que há uma inversão clara na vontade dos portugueses, a atitude mais saudável seria a convocação de eleições legislativas. Digo eu, não sei!, como se diz na minha terra.

... e logo se vai ver!

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