O que se está a passar nos Estados Unidos, com a emergência de uma forte resistência às propostas do presidente Obama para garantir uma cobertura em matéria de saúde para alguns milhões de deserdados da fortuna, é um forte sintoma político. A ideologia americana enraizou um culto extremo do individualismo, que continua a ser incompatível com políticas de solidariedade colectiva assumidas pelo Estado. Nada, aliás, que seja de espantar: uma modesta proposta no mesmo sentido havia já constituído a primeira derrota da administração Clinton.
Não deixa de ser chocante ver hoje alguns chamar a Obama "nazi" ou "socialista", por querer titular uma reforma social moderada. Trata-se, contudo, de uma reacção que tem, atrás de si, algo mais. É um sinal claro de que, afinal, a sua eleição, essa fantástica ruptura que o mundo saudou como símbolo de que outra América era possível, havia provocado um quase inédito mal-estar em muitos sectores do seu país, que calaram por algum tempo o preconceito, mas cuja raiva silenciosa durou pouco. A crise e o desemprego terão feito o resto e transformado, em poucos meses, uma onda de esperança num mar de dúvidas.
Resta o campo internacional. Obama e a sua equipa tiveram a coragem de colocar em causa a política seguida, num passado recente, em várias frentes, algumas das quais tradicionalmente delicadas. Com o Afeganistão a revelar-se um atoleiro complexo, sem saída à vista, com a "bomba-relógio" do Paquistão escondida momentaneamente sob o tapete, com o Iraque a mostrar-se um falso sucesso, com o não surgimento imediato de êxitos claros como resultado da notável moderação com que os EUA estão a lidar com a Rússia, o Irão, a Coreia do Norte ou Cuba, o grande teste, uma vez mais, acabará por ser Israel. É por aí que vai ser medido o grau de coragem final desta nova administração em termos externos, porque essa é também uma questão interna americana.
O rápido desencanto de uma certa América face ao seu presidente, que já o vê como fragilizante da imagem que tem de si própria e do seu destino como potência à escala global, poderá, rapidamente, acelerar-se se, por um infeliz acaso, uma qualquer nova ameaça à segurança dos EUA vier a ter lugar. Nesse caso, Obama correria o risco de ser colado à imagem de um Jimmy Carter e esse, como se sabe, foi em Washington o início de mais um insuportável ciclo de arrogância.
Compete à Europa aliar-se a Obama. A Europa, que não existe ainda como entidade política, atravessada como está por uma indefinição do seu projecto colectivo e com a crise económica a potenciar a emergência de soluções nacionais ou de potencial "directório", bem como a fragilização das suas instituições colectivas, deveria mostrar, à sua medida, que consegue ser capaz de ajudar a nova administração americana a ter sucesso nalguns dossiês internacionais importantes.
É que, como já se percebeu, um eventual êxito de Obama iria muito para além das fronteiras americanas: significaria um tempo novo para o multilateralismo e para a possibilidade de prevalência de certos valores que também estão na matriz constitutiva do projecto europeu. E esse projecto, gostem alguns europeus ou não, só tem condições de se implantar com projecção na ordem externa, com sustentabilidade, credibilidade e capacidade de influência, se e quando conseguir garantir um sólido e são diálogo com o seu parceiro do outro lado do Atlântico.
Uma versão sintetizada deste texto foi publicada no "Semanário Económico", de hoje, podendo ser lida aqui.