domingo, junho 03, 2012

Os diplomatas e as "secretas"

"Vê lá no que te metes!", prevenia-me, há dias, um amigo quando lhe disse que tencionava escrever um post sobre as "secretas" portuguesas. O facto das pessoas sempre falarem dos serviços de informações "com luvas" prova bem a sensibilidade histórica que a questão tem entre nós. Por muito que alguns possam tentar negá-lo, a verdade é que, no imaginário português, o conceito está ainda ligado aos tempos da PIDE, o que provoca uma reação de imediata prudência. O conselho do meu amigo também tinha a ver com episódios da política recente - embora eu lhe assegurasse que o tratamento do tema não iria nada por aí.

Os serviços de recolha de informações são um instrumento absolutamente indispensável para a defesa dos interesses dos países, na ordem interna e externa. Nenhum Estado passa sem eles, porque as ameaças à sua segurança são permanentes e há que habilitar quem tem responsabilidades políticas com dados que lhes permitam tomar decisões para a proteção desses mesmos interesses. Para serem eficazes, os serviços têm de ser discretos, pelo que têm de ter um caráter "secreto", quer nas suas análises da informação "aberta", quer quando recorrem a outras fontes mais oblíquas para sustentarem a sua pesquisa. E têm de ser independentes, desde logo dos meios económicos e, tanto quanto a razoabilidade e as leis da vida o permitem, dos meios políticos, para que a ciclicidade destes não comprometa a sua funcionalidade.

Os serviços de "intelligence" têm sempre, pelo menos, dois grandes problemas a superar. O primeiro é que não têm a possibilidade de se louvar publicamente na eficácia da sua ação, o que faria com que os cidadãos os aceitassem melhor: a prevenção de uma infiltração potencialmente terrorista, a deteção atempada de redes de criminalidade organizada, o alerta precoce para o surgimento de movimentos extremistas anti-constitucionais, etc. O segundo problema, é, por tradição, bastante mais complexo de resolver e, por essa razão, regular objeto de um controlo parlamentar, sobre cuja real eficácia sempre alimentei imensas dúvidas: trata-se da garantia de que os serviços funcionam num rigorosíssimo cumprimento da lei, em particular daquela que protege os direitos e liberdades individuais dos cidadãos.

Em Portugal, como em muitos outros países, há dois serviços distintos: um para recolha de informações internas e outro dedicado às questões externas. É vulgar esta separação, porque se considera que os objetos de pesquisa são diferentes e porque muitos acham perigosa a mistura das duas culturas. Contrariamente a outras pessoas que muito respeito, cada vez mais sou dessa opinião. Ah! convém também que se diga, subsiste sempre uma tradicional conflitualidade entre os dois serviços, fruto de egos em confronto e de zonas cinzentas, a qual, na realidade, não é mau de todo que continue a existir...

Como se chegou até aqui? "To make a long story short", diga-se que, com a democracia, com o fim da PIDE (que concentrava as informações internas e externas e cujo "esforço de pesquisa" era facilitado pela "dispensada" intromissão da justiça, pelas escutas sem controlo, pelas prisões arbitrárias e pelas torturas, como potenciadores de eficácia funcional...), as informações caíram, com naturalidade, nas mãos dos militares. A reentrada dos civis na "intelligence" far-se-ia mais tarde, primeiro sob a tutela dos militares, depois por processos de concurso e de cooptação, a que se somou uma estranha cultura comum com certas zonas policiais (os serviços secretos não são polícias). Até que se chegou àquilo que hoje são o SIS e o SIED, respetivamente ligados à parte interna e externa das informações. Pelo meio, diga-se, andou sempre a política, como não podia deixar de ser.

Onde quero eu chegar com este arrazoado? Quero, de forma assumidamente corporativa, chamar a atenção para o facto de que, durante os muitos anos em que os serviços de "intelligence" externa tiveram nas suas chefias funcionários oriundos da diplomacia, nunca foram eles os fautores das conflitualidades públicas em que esses serviços se envolveram. E que foi a partir da decisão, tomada em 2006, de escolher para a chefia da ação externa uma figura alheia à diplomacia que se iniciou a triste polémica que hoje atravessa esses serviços. Os diplomatas não têm o monopólio da ética, longe disso, mas, tal como os militares, têm uma vida profissional exterior para onde sempre podem regressar, cujo "esprit de corps" lhes induz um forte sentido de patriotismo e de serviço público, que lhes evita a fácil tentação de cair em certas derivas. É esta, pelo menos, a minha profunda convicção.

11 comentários:

Um Jeito Manso disse...

Caro Embaixador,

Ora aqui está um apontamento escrito com pinças. A diplomacia está aqui muito bem patente.

Não sei se a interpretação sobre a origem do mal se extingue aí, mas pode ser uma possível explicação.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Os diplomatas e os militares têm sempre um serviço público para regressar.

Estes não. Têm serviços privados para ingressar.
V

C.e.C disse...

Muito bem apresentado, sr. Embaixador.

Irónico, no entanto, como talvez pudéssemos ainda acrescentar uma terceira ramificação das secretas, ou pelo menos, do seu efeito-labor.

Basta ver o recente caso do "News of the World".

ARD disse...

In the eyes of posterity it will inevitably seem that, in safeguarding our freedom, we destroyed it. The vast clandestine apparatus we built up to prove our enemies' resources and intentions only served in the end to confuse our own purposes; that practice of deceiving others for the good of the state led infallibly to our deceiving ourselves; and that vast army of clandestine personnel built up to execute these purposes were soon caught up in the web of their own sick fantasies, with disastrous consequences for them and us.

Malcom Muggeridge
1966

domingos disse...

Acho que um elemento dos serviços de informação tem de ter uma personalidade muito bem formada e saber resistir às inúmeras tentações que lhe podem sair ao caminho. Talvez nos meios militares e diplomáticos seja mais fácil encontrar pessoas com esse perfil. Dizia-me um amigo que andou por essas áreas que quando ninguém se lembra de falar dos SI é sinal de que andam a trabalhar bem.

ARD disse...

One method of getting a psychological assessment of the national character of potential antagonists would be to go to a local bar and ask people, any people. A few glasses of scotch would be a lot cheaper than the cost of intelligence and diplomatic services, and would doubtless come up with similar results .

CHRIS BERTRAM
2010

Gil disse...

Can there really be any need for all this spying?' is the question most frequently put - and expecting the answer 'No' - when espionage is talked abou by those not involved in it. Nikita Kruschev, at the height of his rampanging as the Soviet leader, once professed to express the same view in a bantering exchange.
He sugested to Allen Dulles that the Americans and Russians should exchange spy lists because it would not make much difference. Anyway, he tought, a good many of them would turn out to be the same people.

Cristopher Dobson Ronald Payne,
i "The Dictionary of Espionage"
Grafton Books-Londres 1984

Isabel Seixas disse...

O Post é bem interessante em termos de sensibilização.

"Induz um forte sentido de patriotismo e de serviço público,"
In FSC

Pensei que fossem mesmo duas unidades curriculares /disciplinas
integradas no curriculum escolar de licenciaturas em ciências políticas...

Patriotismo e o seu sentido e ou
sentido do patriotismo na carreira diplomática...

Serviço Público
Concetualização
Além de requisitos do perfil de um diplomata para poder exercer o serviço público incluindo critérios de espirito de missão sem ser missionário claro, quero com isto dizer com remuneração condigna face á complexidade do trabalho compativel com o custo humano que exige em termos individuais.

PS entretanto fui consultar o plano de estudos da Universidade do Minho e tem uma unidade curricular de comunicação e uma de opção em cada ano curricular o que pode constituir em qualquer uma delas, presumo, um módulo com o tema que o Sr. refere.

Anónimo disse...

Pelo menos foi um post divertido...É por demais evidente a inutilidade de serviços secretos ao serviço de um país como Portugal. O que os embaixadores ou "homens das secretas" portugueses irão conseguir obter de diferente que um cidadão bem informado e bem posicionado??? E para que servirão essas informações? Portugal irá tomar as suas decisões baseado nessas informações? Esses tipos das secretas poderão servir melhor o interesse de empresas com gestão duvidosa que procuram influenciar decisores para ganharem concursos, licitações e projectos. Nada de novo...Agora não queriam fazer novelas de espiões internacionais num país como Portugal. Será mais uma para se rirem de nós...

gherkin disse...

Sem comentário.VERÍIDICO!
Perguntava-me um embaixador: "Então. Quais as últimas?" Respondi: "Certamente que o senhor embaixador deve estar bem informado!" Resposta: "Olhe que não. Nem por isso!"
Pergunta: Secretas dependentes dos diplomatas?
Cumprimentos do
Gilberto Ferraz

gherkin disse...

Não é de surpreender! Prova do atual "jornalismo" nacional! Quem o diz, sem qualquer arrogância, mas lamento, é um veterano profissional da informação.
Cumprimentos,
Gilberto Ferraz

Ai Europa!

E se a Europa conseguisse deixar de ser um anão político e desse asas ao gigante económico que é?