O "provedor do leitor" do "Diário de Notícias", o jornalista Óscar Mascarenhas, respondeu no seu jornal ao meu anterior post, no qual eu havia criticado o modo como havia sido reportada a atribuição do estatuto de persona non grata à embaixadora síria acreditada em Portugal. Fê-lo, devo notar, com grande elevação e sentido objetivo, que só posso saudar. Porque a questão merecia uma explicação complementar da minha parte, enviei-lhe a carta seguinte:
Meu Caro Óscar Mascarenhas
Registo, com agrado, o “fair play” com que o DN, por seu intermédio, aceitou a minha irritada nota sobre a questão da embaixadora síria. Entendo bem a dificuldade jornalística de “traduzir”, para um público não especializado, temáticas mais complexas. Mas a arte do jornalismo consiste, precisamente, em conseguir não perder o rigor, nesse esforço de simplificação.
Vamos à notícia:
- “Portugal decidiu cortar as poucas relações diplomáticas que tinha com a Síria”. A relação diplomática entre dois países é como a gravidez de uma mulher: ou existe ou não existe, não é “muita” ou “pouca”. Pode haver mais ou menos trocas comerciais, mais ou menos relações culturais, mais ou menos visitas bilaterais, de natureza técnica ou política. Mas o vínculo diplomático entre dois países é sempre um mero reconhecimento mútuo de duas soberanias. Dois Estados podem estabelecer entre si relações diplomáticas e nem sequer terem embaixadores acreditados nas respetivas capitais. Não era esse o caso de Portugal e da Síria, que, desde há muitos anos, trocavam representantes diplomáticos mútuos. Quanto ao facto dos embaixadores serem ou não residentes nas capitais onde estão acreditados, deve notar-se que, não tendo nenhum país meios ou interesses para assegurar a abertura de missões diplomáticas por todo o mundo, a esmagadora maioria opta por acreditar embaixadores que são residentes noutras capitais (às vezes, mesmo, diplomatas que permanecem na capital do próprio país que representam). Em todo o mundo diplomático, há muitos mais embaixadores não-residentes do que residentes. Só em Paris, residem cerca de 50 embaixadores que, estando acreditados em França, representam simultaneamente os seus Estados em Portugal. E noto que há Estados com representação física em Lisboa cujas relações económicas, culturais ou outras com Portugal são bem menos relevantes do que as existentes com alguns dessoutros países.
- Portugal “declarou 'persona non grata' a embaixadora síria junto da Unesco, a qual representava os interesses sírios também em Portugal”. Não era a delegada permanente da Síria junto da UNESCO que estava acreditada em Portugal. Quem tinha apresentado cartas credenciais no nosso país era a embaixadora da Síria em França, que, por acaso (como é hoje o meu caso), acumulava funções como delegada permanente junto da UNESCO. Foi na primeira qualidade, e não na segunda, que a acreditação da senhora foi concedida pelo nosso país. Alguns países designam um embaixador específico para chefiar a sua missão junto da UNESCO, mas não conheço nenhum caso em que esse diplomata seja, a partir dessa qualidade, acreditado na capital de qualquer país. Pelo que foi a França, e não a UNESCO, que decidiu considerá-la “persona non grata”, precisamente pelas mesmas razões pelas quais Portugal o fez.
- “A declaração de 'persona non grata' de Lamia Chakkour foi decidida porque em Portugal não havia embaixador sírio acreditado”. Esta frase inserida na notícia não tem o menor sentido. A Sra. Lamia Chakkour estava acreditada em Portugal e foi precisamente por esse facto que Portugal pôde declará-la “persona non grata”. O contrário é que não seria verdade: se acaso ela não estivesse acreditada (por qualquer atraso no processo de acreditação), esse nosso gesto não poderia ter sido assumido. Se, com o texto escrito, se pretende, de forma ambígua, aludir ao facto de não haver hoje, fisicamente, uma Embaixada síria em Lisboa, então a frase torna-se ainda pior: dá ideia de que, se acaso a senhora vivesse em Portugal, o governo português não tomaria o gesto que tomou...
- “O facto de Portugal não ter grandes relações diplomáticas com a Síria foi precisamente o que levou a diplomacia portuguesa a aceitar, em 2009, dois ex-detidos sírios de Guantánamo”. Volto a dizer que é muito pouco rigoroso utilizar o conceito de “grandes” (ou “pequenas”) relações diplomáticas. As razões da “escolha” dos dois cidadãos sírios para serem acolhidos em Portugal são mais complexas do que a frase deixa intuir, pelo que o jornal não deveria ter enveredado por esse caminho especulativo, sem dispor de uma base informativa sólida sobre a questão. Digo isto porque foi por meu intermédio que Portugal contactou as autoridades sírias, sobre a nossa decisão de acolher dois antigos prisioneiros de Guantanamo. Não obstante as diferenças políticas que mantínhamos entre os dois países sobre algumas grandes temáticas internacionais, as relações formais com o regime de Damasco eram, à época, perfeitamente normais. E, mais importante do que isso, não tem qualquer sentido pensar-se que Portugal é um país que assume, em política externa, um cinismo como aquele que a notícia deixa pressupor.
- Finalmente, uma nota sobre a “elegância” do título da notícia: “Portugal corta com a embaixadora síria na UNESCO”. Com todo o respeito, parece-me uma expressão mais própria para certos certos tablóides, mas o DN é que sabe... A fórmula usada ficaria bem melhor para “Luciana Abreu corta com Djaló”.
Com toda a cordialidade
Francisco Seixas da Costa
Embaixador em França (e também no Mónaco e delegado permanente junto da UNESCO...)
11 comentários:
A pequena faz o que pode, percebe, ela estudou Comunicação Social em Cascais e na nossa escola essas bizantinices da diplomacia (como as da economia, da História, das leis ou da escrita em português) não constam do curriculo, ela é moderna, percebe, despachada, e o provedor dos leitores também não tem tempo para essas coisas dos diplomatas, cale-se seu careta.
Patrícia de Menezes Vasconcellos (Vinhais)
em resumo e na pratica, obrigada a sair de frança, a embaixadora siria já não poderá optar por vir para portugal onde tambem estava acreditada.
continuará no entanto acreditada na unesco, presumo.
Sr. embaixador,
Sou uma ignorante em questões e relações diplomáticas, mas rejubilo por termos alguém que se preocupa com os desaires e desvarios dos nossos Média de "referência". Uma boa "ensaboadela" sempre que cometessem estas cretinices, com a elegância com que o sr. Embaixador o faz, seria meio caminho andado para que os nossos Média de "referência", não tivessem chegado a este ponto de mediocridade. Pena que a maioria ache que uma chamada de atenção e uma correcção baseada em factos, dê muito trabalho e ocupe muito tempo.
Felizmente que ainda há excepções... pessoas que não se estejam nas tintas!
Imagine Sr. Embaixador alguém, que como eu não sabe de Diplomacia... a interpretação que dá a um artigo desses. Felizmente que sei que os Media (de referência) são apenas um órgão de propaganda e de formatação, por isso não lhes dou a mínima credibilidade, aliás, julgo que quando divulgam algo, o facto que na realidade aconteceu é o oposto. Basta ver o caso da Hungria.
Bem haja.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma."
Joseph Pulitzer - 1847/1911
As nações prosperam ou decaem simultáneamente com a sua imprensa.
Joseph Pulitzer
Está à vista qual é o estádio da nossa nação... quase no fundo.
Imitando Emídio Rangel (se bem que noutro contexto) apetece-me comentar apenas: Mortal!
P.S. - O Diário de Notícias será mesmo um jornal de referência? Ou, pondo a questão de outra maneira, ainda há jornais "de referência"?
gostei de o que SEXA escreveu e também dos cinco comentarios..
Vale a pena acreditar no Portugal dos Portugueses e não o só no futebol !
Pior que as considerações do provedor do leitor são as explicações desculpabilizadoras dadas com ligeireza pelos responsáveis internos do DN. Um erro é desculpável, emenda-se, corrige-se. Mas insistir-se na falta de rigor como se o jornalismo fosse meia-bola e força, é problema de vista.
Pior que as considerações do provedor do leitor são as explicações desculpabilizadoras dadas com ligeireza pelos responsáveis internos do DN. Um erro é desculpável, emenda-se, corrige-se. Mas insistir-se na falta de rigor como se o jornalismo fosse meia-bola e força, é problema de vista.
...O que deveria ser um problema de Consciência.
Fui das que ainda estudou,: a TV mostra, a Rádio conta e a Imprensa explica... em pouco mais de duas décadas, os media (Imprensa) tornaram falsa a premissa...
Pois se fosse eu é que não cortava com a Srª Lamia Chakkour.
Espero, Senhor Embaixador, que na UNESCO tenham boas relações.
V
Senhor Embaixador
O seu post é o que chamo de serviço público. Bem haja!
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